O Diabo do Sertão escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 20
Corações ardentes


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura! =D



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Um paredão de fumaça separava os agentes da lei daquele vil criminoso. Foi tudo tão rápido: Augusto e os policiais estavam em mais um dia de trabalho como outro qualquer. Uma tonelada de papéis ocupava seus olhos e mãos, ainda que eles soubessem que teriam poucos resultados práticos a partir daquela tarefa. Não importava: eram as obrigações do emprego. Mais atrás, Diabo seguia tranquilo em sua cela. O homem estivera relativamente calmo durante seus dias de prisão. Parecia já ter aceito aquilo e, mesmo após a visita do padre, não mudara seu comportamento. Os policiais até comentavam que o homem tinha abraçado seu destino.

Entretanto, a paz e a monotonia foram rompidas com um grande estrondo. Augusto Nunes estava assinando um dos documentos quando, repentinamente, alvenaria e barras de ferro voaram por todas as direções. Teve sorte: apenas pequenas pedrinhas o acertaram, enquanto a barra de ferro foi aparada pelo seu birô. Vendo-se escondido atrás da mesa, o delegado sentia seu rosto coberto de poeira e materiais de construção. Colocando a mão no revólver, tentou ver através da fumaça: uma silhueta ameaçadora e esguia aos poucos aparecia. Ela trajava um chapéu e era possível ver que andava armada.

— Parado! — Destravando a arma, o delegado apontou-a para o bandido. Sentia tremeliques, mas tentava manter uma postura corajosa.

Através da fumaça, Valter caminhava lentamente. Não estava apenas de chapéu: também usava uma badana no rosto para cobrir sua identidade. Com o revólver em punho, deu breves passos até finalmente identificar o delegado.

— Largue essa arma, delegado — o bandido ordenou com serenidade. — Não quero machucar ninguém.

Augusto sentiu o frio da morte atravessar sua espinha. Sua visão periférica permitia ver o que aquela explosão fizera: a poucos metros de distância, dois policiais jaziam caídos e ensanguentados. Estariam mortos ou desmaiados? Seja o que fosse, aquele patife maldito era o responsável e não merecia trégua alguma.

— Seu desgraçado! — O delegado deixava a mais pura raiva falar.

Valter pressentiu: Augusto iria disparar. Tentando prever a possível trajetória da bala, o homem disfarçado de cangaceiro gingou para a direita. O delegado puxou o gatilho e a bala viajou de forma feroz. Atravessando a cortina de fumaça ainda existente, o projétil pegou de raspão no ombro do bandido. Valter deu um grito de dor enquanto sentia o ferimento aberto sangrar. Reagindo com velocidade, disparou contra o policial. Augusto não teve o que fazer: uma tremenda dor tomou conta de seu peito e o ele caiu no chão.

Longe de ser alvo de tiros ou explosões, Diabo observava aquilo com um misto de surpresa e empolgação. Sim, o padre avisara que ele seria salvo. No entanto, o ex-cangaceiro não acreditava que o processo se daria daquela maneira cinematográfica. Vendo o bandido esguio se aproximar de sua cela, Diabo rapidamente reconheceu aquele jeito silencioso de andar.

— Valter? — Estranhou o ex-companheiro de cangaço naquela posição.

Sem dizer uma palavra, Valter apontou o revólver para a tranca da cela. Disparando, viu a porta ser aberta e, finalmente olhando nos olhos de Diabo, falou:

Vamo logo embora!

Sem pestanejar, o prisioneiro correu para a liberdade. Seguindo Valter, atravessou o buraco feito na parede. Após passar por dentro da pequena nuvem de fumaça que persistia, viu-se numa Água Funda diferente: pessoas gritavam e corriam por todos os lados. “Uma bomba!” era a frase mais recorrente. Alguns curiosos até tentavam se aproximar, mas decidiram recuar ao ver as armas.

— Ali! — Valter apontou para um cavalo estrategicamente posicionado a alguns metros da delegacia.

Seguindo as ordens de seu libertador, Diabo correu sem olhar para trás. Montaram no cavalo e o bicho disparou logo após o homem esguio mover as rédeas. Sentindo um raro tremor, Diabo sorria por dentro: há uma boas semanas que não tinha um momento como aquele. Apesar de detestar a ideia de obedecer a ordens superiores, tinha que admitir: a adrenalina e o risco eram coisas que lhe davam genuíno prazer.

Enquanto isso, na delegacia, Augusto Nunes se levantou assustado. Ele mesmo havia acreditado que o tiro que sofrera fora fatal, afinal de contas, havia sido direto em seu peito, quiçá no coração! Entretanto, ao levantar-se, o delegado pôde ver o que realmente ocorreu. Retirando um pesado objeto do bolso da camisa, viu que a medalha recebida pela prisão de Diabo havia salvo a sua vida. Completamente amassada, ela fora forte o suficiente para segurar a bala, restando ao delegado apenas a dor, mas permitindo que ele tivesse mais um dia de vida.

Olhando para seus companheiros, viu que eles aos poucos se levantavam. “Todos vivos graças a Deus”, concluiu aliviado. Respirando fundo, pensou por um momento em perseguir os bandidos. No entanto, colocando a mão no peito, acreditou que seria melhor esperar. Ele não teria tempo para chegar e, além disso, deviam haver policiais nas ruas para pegar os homens. “Eles podem cuidar disso por hoje. Já vi o suficiente por um expediente”, refletiu enquanto se sentava no chão, pensativo.

Nas ruas, o pensamento de Augusto se concretizava: seguindo o clamor popular, policiais nas proximidades pegavam seus cavalos e partiam em disparada. Atravessando multidões curiosas e assustadas, os agentes da lei logo puderam ver aquele cavalo marrom a alguns metros de distância. Sobre ele, Diabo e o bandido mascarado seguiam deixando um rastro de medo.

Olhando para trás, o ex-prisioneiro viu três policiais se aproximando. Os homens traziam armas e pareciam um tanto quanto ferozes.

— Valter! — Diabo gritou ao ver que a morte se aproximava. — Tem alguma arma pra mim?!

— No coldre! — Apressado, Valter dava golpes pesados no cavalo, a fim de que ele acelerasse a corrida.

Pegando o revólver no coldre de seu ex-companheiro, Diabo começou a apontar para um dos policiais. A perseguição ainda estava acontecendo em Água Funda, de forma que o ex-cangaceiro tinha certeza de que os agentes da lei hesitariam em atirar. Ele, por outro lado, não. Confiando em sua mira, destravou a arma e puxou o gatilho com força. A arma soltou um estalo brutal e a bala viajou com violência até acertar o peito do policial que ia mais à frente. O homem caiu e, contando com grande azar, foi esmagado pelos cascos do cavalo que vinha logo atrás.

— Uma arma de verdade! — O ex-cangaceiro comemorou, fato que causou estranheza em Valter.

Os dois policiais viram o perigo que corriam e, ainda que estivessem nas intermediações da cidade, levantaram seus revólveres. Não tardou para que começassem a disparar.

— Meu Deus! — Diabo gritou ao ver um poste ao seu lado soltar faíscas ao ser acertado por uma bala. Voltando a mirar nos homens da lei, disparou e errou. — Que desgraça!

Àquela altura, os sinais de urbanização iam se enfraquecendo. A rua calçada ia dando lugar a areia, enquanto as construções civis davam espaço ao puro vazio. Abutres voavam nas proximidades e tatus faziam buracos enquanto a perseguição seguia de forma frenética. Após errar mais um tiro, Diabo soltou um forte xingamento.

— Perdeu a mão, Diabinho?! — Valter brincou enquanto tentava esconder seu nervosismo. — A gente vai morrer!

Grunhindo de raiva, Diabo jogou a honra no lixo e atirou contra um dos cavalos dos perseguidores. Com a queda do bicho, o policial montado acabou sendo arremessado para frente, sendo deixado para trás na correria. Agora, apenas três homens estavam envolvidos no caso, tendo como testemunha apenas o impiedoso sol do sertão.

Com a mira no último policial, Diabo pôde sentir o jogo ganho. Puxou o gatilho com convicção e esperou ouvir o som da explosão da pólvora. No entanto, nada aconteceu a não ser um click. A munição havia acabado e, como resposta, o ex-cangaceiro viu um sorridente policial revidando com um revólver totalmente carregado. Puxando o gatilho com um misto de fúria e vingança, o homem também desistiu da honra: mirou no cavalo dos bandidos. De forma previsível, o projétil acertou a parte traseira do cavalo, fazendo-o relinchar de dor e cair no chão logo em seguida.

Valter foi arremessado para frente, ao mesmo tempo em que Diabo se viu com a perna presa sob o cavalo. O policial desacelerou sua montaria e, aproximando-se com a arma erguida, pôde ver que o bandido mascarado estava desacordado, enquanto o homem cheio de cicatrizes gritava de dor.

— Seus desgraçado! — Gritou com ódio enquanto desmontava do cavalo com revólver levantado. — Eu vou acabar com isso aqui e agora!

Ignorando que tinha uma arma apontada para sua cabeça, Diabo tentava de todas as formas tirar sua perna debaixo do cavalo. O bicho era pesado e a dor não contribuía em nada.

— Últimas palavras?! — Cheio de emoção, a mão do policial tremia. Ele vira seus colegas serem alvejados, além de acreditar que mais outros haviam morrido na explosão da delegacia. — Fale!

Ignorando as ordens do homem armado, Diabo continuava insistindo em tentar se soltar do cavalo. Nervoso, o policial se aproximou ainda mais.

— Eu disse pra falar! — Sua voz não deixava dúvidas: estava a um triz de disparar. No entanto, Diabo permanecia fiel em sua tentativa aparentemente frustrada de se soltar. — Fi de rapariga!

A alguns metros dali, Valter já estava com os olhos bem abertos. Vendo o policial colocar o dedo no gatilho, o homem esguio pegou uma das tantas rochas do solo pedregoso e arremessou contra seu inimigo. O objeto voou e acertou o revólver, fazendo-o apontar levemente para o lado antes de um disparo contra o nada. O policial estava pronto para se voltar contra Valter e se vingar daquela maldita intervenção. No entanto, seu momento de distração lhe custou caro: juntando forças do inferno, Diabo conseguiu se soltar do cavalo e saltou sobre o agente da lei.

No chão, os homens se digladiaram pela posse da arma. Contudo, o ex-cangaceiro foi mais forte. Segurando a mão do policial de maneira dolorosa, ele rapidamente fez o homem apontar a arma contra a própria cabeça. Olhando para os olhos desesperados do policial, Diabo falou cheio de ódio:

— Últimas palavras? — E disparou.

Sangue e pedaços do crânio do agente da lei se espalharam pelo solo seco. Sentindo seu corpo em chamas, Diabo se deitou sobre a areia quente do sertão. Precisava respirar e, por mais quente que aquele lugar fosse, era melhor que uma cela. Aproximando-se com grande alívio, Valter tirou a máscara e olhou para seu ex-companheiro.

— Como nos velhos tempos, hein? — O homem esguio sorria como um jovem ao fazer besteiras que enchem o espírito de emoção. Ele sabia que arriscava muita coisa ali, mas tinha um pressentimento de que nada daria errado.

Ainda deitado, Diabo estava de olhos fechados. Aos poucos, seu coração desacelerava e, estando mais calmo, o ex-cangaceiro levantou-se, olhou para Valter e disse sem cerimônia:

— Seu ombro — apontou para o ombro ensanguentado do homem que lhe garantiu a liberdade. — E sim. Como nos velhos tempos.

Diabo sentiu um sorriso vir até o seu rosto, mas suprimiu antes que fosse notado. Valter, por outro lado, pressionava o ferimento enquanto fazia uma expressão de preocupação.

ter que costurar essa disgraça — afirmou com veemência. — Mas isso vai ter que esperar. Nós tem um lugar pra ir.

E, olhando para o cavalo deixado pelo policial, a dupla montou mais uma vez antes de seguir para seu destino. Seguindo o método de sempre, deram voltas e mais voltas para evitar que qualquer desgraçado os perseguisse. Aguardaram algumas horas até finalmente irem de fato para o destino desejado: um pequeno terreno obtido pelo Padre Miguel no meio do nada. Chegando lá, depararam-se com uma pequena casinha construída recentemente, além de uma extensão de terra árida e sem vida.

Sem saber ainda do que se tratava, Diabo questionou:

— Isso é coisa do padre? O homi realmente explodiu a delegacia?

— O homi é doido, Diabo — Valter respondeu enquanto desmontavam do cavalo e caminhavam lentamente até a casinha no meio da aridez. — Ele é doido como todos outros homens dessa terra dos inferno.

Dentro da casinha, a mente por trás de todos os planos aguardava ansiosamente. Sentado em um banquinho de madeira, Padre Miguel tomava uma xícara de café enquanto era acompanhado de João Cego. O homem caolho estava morando naquele miserável lugar desde o dia em que o padre decidira comprá-lo usando parte dos ganhos da festa de São João. A outra parcela do dinheiro, como previsível, fora usada para as dinamites, a arma e o cavalo.

— Nem é tão ruim — João comentou logo antes de tomar mais um gole de café. — Acho que os dois quarto vão dar conta de todo mundo. É só espalhar os colchão.

— Este lugar foi um achado, João — o religioso respondeu. — Estaremos escondidos bem debaixo dos narizes deles.

— Mas e a minina? Ela já sabe?

— Bia? Mandei uma carta a ela. Caso ela e o namorado precisem, já sabem exatamente onde nos encontrar.

A conversa foi interrompida pelo aproximar da dupla de bandidos. Com olhos curiosos, Diabo se surpreendeu a ver João Cego. O velho carregava todas as cicatrizes e memórias da fatídica noite em que foram sabotar o poço. Entretanto, antes que qualquer reflexão fosse feita, o ex-cangaceiro se viu diante do padre.

— Diabo! — O religioso estendeu a mão para cumprimentá-lo. — É muito bom vê-lo aqui.

Sem dizer uma palavra, o ex-cangaceiro apertou a mão de Miguel. Então, deu alguns passos e, estando diante de João, disse:

— Eu fui um covarde com ocê — sua voz trazia mais fragilidade que o comum. — Te deixei pra trás quando mais precisou. Mim desculpe.

Sendo surpreendido por aquele pedido, Cego arregalou o olho. Sentindo uma estranha comoção tomar conta de sua alma, respondeu:

— Eu também fui covarde. Entreguei todos nóis. Mas num vou fazer isso de novo não! — Segurava as lágrimas enquanto dizia cada uma daquelas palavras. — O padre tem um plano. Vamo escutar o homi que os pecado serão perdoados.

E, sentindo um breve e estranho momento de paz em sua alma, Diabo resolveu dar ouvidos ao religioso.

Horas se passaram e a noite finalmente chegou em Água Funda. A tarde havia sido intensa: uma verdadeira multidão cercou a delegacia para entender o que tinha acontecido.

— Os cangaceiro tão explodindo tudo! — Um velho falou.

A ideia ecoou por toda a cidade, de forma que um clima de apreensão e medo rapidamente se instaurou. E, no meio desse furacão, estava José de Lima. O rapaz estava passando por dias um tanto quanto reflexivos. Desde que descobrira que seria pai, repensava suas ações. Será que não estava se arriscando demais? Será que os jogos e as apostas não poderiam trazer a ruína para sua família? Dúvidas, dúvidas e mais dúvidas. Ao mesmo tempo, preocupava-se com a obtenção de dinheiro: tendo voltado a apostar só mais duas ou três vezes, não encontrara um trabalho que julgasse válido até então. Talvez fosse melhor mudar seus parâmetros de julgamento, afinal.

Mas havia algo mais que atordoava a mente do jovem pai. Sua noiva ou esposa – ele não saberia dizer em qual classificação Bia se encaixava – havia se deparado com um terrível homem. Aquele tipo barbudo e de sotaque estranho não era apenas desagradável em seu hálito alcoólico, mas também era o responsável pela separação entre Maria Beatriz e a sua mãe. A pobre mulher era uma prostituta trabalhando para o maldito sem ter opção de fuga. Tendo consciência disso, Zé compartilhava a dor da filha que tanto sentia falta da mãe. E, com isso em mente, havia se comprometido a encontrar a mulher mais velha.

Estava andando pelas ruas da cidade com um pequeno cordão entregue por Bia. Nele, José podia ver duas fotografias: uma era de Beatriz com apenas um ano de vida, enquanto a outra era da mãe dela. Zé nunca tivera a oportunidade de conhecer a sua sogra e aquela ocasião estava longe de ser ortodoxa. Ainda assim, lá estava ele andando de bordel em bordel atrás de uma tal de Marcela, como era o nome da mulher. Passou pelas piores espeluncas, falou com os tipos mais estranhos, mas nada de achar a sogra.

Até que, colocando a cabeça para funcionar, decidiu fazer as perguntas certas.

— Oh, amigo — disse para um bêbado qualquer numa das espeluncas que visitou. — Ocê conhece um homi barbudo, bêbado e que fala de um jeito mei estranho?

O homem na frente de José balançava de um lado para o outro, mantendo-se equilibrado por pura intervenção divina. Soltando um sorrisinho idiota, o ser embriagado respondeu:

— Barbudo e bêbado tem uma ruma — soltou uma gargalhada ridícula e, quase caindo no chão, teve que se apoiar em Zé. — Mas que fala estranho? Deve ser o francês!

— Francês? Da França? — José de Lima tentava processar aquela informação.

— Não, de São Paulo — o bêbado deu uma gargalhada jocosa capaz de despertar os mortos.

— Ah, — o rapaz sentiu-se bobo por cair naquela brincadeira idiota. — Mas então, onde eu acho o homi francês de São Paulo?

— É, veja bem... — o homem embriagado começou a fechar os olhos. Zé pensou que fosse apenas uma piscada mais lenta que o normal, mas foi surpreendido de forma negativa: o bêbado estava a ponto de dormir. Acabou despertando com um susto. — Ai meu Deus! É na última rua, última rua! Siga aí uns metro que chega. Vai ficar do lado direito.

Ao dizer isso, apontou para a esquerda. José sentiu a confusão invadir a sua mente mais uma vez, mas preferiu não fazer mais perguntas. Acenando com a cabeça como forma de agradecimento, deixou aquele lugar fedorento e seguiu o caminho indicado. Após alguns metros, olhou para a direita e viu apenas a entrada de uma casa. No entanto, o lado esquerdo trazia algo completamente diferente: coberto por tijolos e grades, o bar e bordel que ali estava parecia uma prisão.

“Cabaré do Francês”, uma placa de madeira podia ser lida acima da porta. “É, com certeza é aqui”, Zé concluiu antes de bater na porta. Era de ferro e contava com uma pequena abertura que ficava na altura da cabeça. Rapidamente, um homem careca e mal encarado apareceu através dela.

— Quem é? — Ele olhava fixamente para José, que estremeceu diante daquelas feições malignas.

— Zé? — Respondeu perguntando.

— O que veio fazer aqui?

José de Lima ficou calado por breves segundos. Não estava esperando que fosse entrevistado naquelas circunstâncias, ainda mais diante dos acontecimentos extremamente recentes na cidade. No entanto, apelou para o lógico:

— Vim namorar — falou com um tom soturno na voz, algo que serviu para convencer o vigia da veracidade daquela intenção.

Sumindo da vista de Zé, o homem mal encarado só voltou a ser visto pelo rapaz depois que a porta foi aberta.

— Pode entrar — com feições mais leves, o careca agora até parecia ser alguém amigável. — Aproveite!

Adentrando o local, José se impressionou. Enquanto o lugar aparentava ser uma prisão do lado de fora, o ambiente interno revelava um valor completamente oposto: era o salão da liberdade, ou melhor, da libertinagem. Homens ricos e importantes de Água Funda enchiam a cara próximos do balcão, enquanto músicos talentosos tocavam violão, tambor e sanfona num palco muito organizado. Lá não havia a confusão presente em outros bares e espeluncas: havia mesas bem distribuídas, sofás espalhados e, como previsível, quartos confortáveis e afastados uns dos outros.

Enquanto caminhava em meio aquele mar de pessoas cheirosas e bem vestidas, José procurava pela mãe de Beatriz. A foto que tinha em mãos fora tirada há anos, tendo quase duas décadas. Ainda assim, o rapaz apostava que a mulher não havia mudado tanto desde então. Desviando de homens e mulheres, não tardou para que ele sentisse um leve puxão na gola de sua camisa.

— Você é novo por aqui, querido? — Com os cabelos claros e olhos verdes, uma moça de feições belíssimas se aproximou de José de forma insinuante. — Parece perdido. Quer que eu te ajude a encontrar o caminho do quarto?

— É, é... — sentindo suas mãos suarem, Zé gaguejou. Era um homem fiel e não cairia perante tais tentações. Além disso, tinha uma missão clara: deveria encontrar sua sogra. — Moça, eu casado.

Levantou a mão e mostrou o anel em seu dedo. A mulher soltou uma risada e, segurando a mão do rapaz, respondeu:

— A maioria daqui é. Vem, vamos nos divertir. Ela nem vai saber.

José de Lima começou a ser conduzido pela dama da noite. Ela segurava sua mão com força e tudo que ele sentia era um nervosismo inexplicável. Olhando para os lados, podia jurar que tinha visto alguém conhecido. No entanto, era apenas sua consciência gritando para que deixasse aquilo para trás.

— Moça, olha — Zé freou e fez a moça largar sua mão de forma gentil. — Eu procurando outra pessoa. é linda, mas num posso mais, entendeu?

Enquanto dizia isso, José não pôde ver o olhar de decepção da garota de cabelos claros. Olhando para os lados, o rapaz atrapalhado viu uma outra mulher sair de um dos quartos. Com o cabelos negros cacheados, ela trazia feições maduras e tinhas olhos que se pareciam muito com os de Maria Beatriz. “É ela!”, ele concluiu.

— Então, bem... — ainda tentava se justificar para a jovem prostituta. — Fique com Deus!

E, saindo sem olhar para trás, Zé seguiu na direção de dona Marcela. Desvencilhando-se das tantas pessoas no caminho, acabou tropeçando em um pé conhecido. Equilibrando-se com dificuldade, só percebeu o grave erro quando ouviu o grito:

— É ele!

Olhando para trás, José de Lima sentiu seu espírito congelar. Visivelmente embriagado, um furioso Guilherme Maia apontava o dedo de forma ameaçadora.

— Esse fi duma quenga roubou o anel da minha família! — Guilherme o acusava aos gritos. — Ele roubou no jogo e tomou o que é dos Maias!

Zé sentiu-se cercado. Uma muralha de olhos se ergueu, todos eles voltados para o pobre rapaz. Tentou se defender.

— Calma lá! — Gritou, mas sua voz saiu trêmula. — Foi uma aposta! A-P-O-Z-T-A! Num teve nada de roubo!

— É com “S”, seu jumento! — Um amigo de Guilherme apareceu. — E roubou sim! Eu vi!

Mentiras, mentiras e mais mentiras. Sentindo-se acuado, José esqueceu-se completamente de dona Marcela. Recuando lentamente, ele via aquela muralha de olhos se aproximar cada vez mais.

Nóis pode negociar! — Zé sentia cada osso de seu corpo tremer. — E eu num roubei não, viu?!

vai ver a negociação! — Arregaçando as mangas, Guilherme Maia caminhava com fúria em direção do rapaz da Lagoa da Esperança. — Brito, segure ele!

Brito, que era o amigo do filho do prefeito, rapidamente segurou os braços de Zé. Agindo com covardia, Guilherme logo começou a acertar o rosto de seu rival com fortes socos. A cada golpe recebido, José de Lima se amaldiçoava por ter resolvido ganhar dinheiro com apostas.

— Eu devolvo — disse entre um soco e outro. — Só me deixe quieto!

Recebeu outro soco como resposta. Tendo seu supercílio cortado, o rapaz começou a sentir o sangue quente se espalhar pelo seu rosto. Sentiu que não escaparia dali com vida, a não ser que reagisse de forma drástica. Inspirando-se no momento em que reagiu contra Diabo, balançou o corpo e se desvencilhou de Brito. Pensou em correr para a porta, mas uma multidão bloqueava o seu caminho. Quando olhou para trás, viu que Guilherme se aproximava com toda raiva do mundo. No susto, Zé pegou uma garrafa da mesa mais próxima e acertou o rosto de seu algoz com ela.

Vidro partido e silêncio. Com as mãos no rosto, o filho do prefeito parecia gemer como uma criança. Por fim, sangue começou a escorrer e algumas gotas atingiram o chão. Foi então que ele gritou:

— Meu olho! Ele furou meu olho!

Vendo que a situação só tinha a piorar, José de Lima saiu correndo. Sem olhar para trás, só pensava em despistar os possíveis perseguidores. No fim, tinha certeza de apenas uma coisa: estava completamente lascado.


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Notas finais do capítulo

Muito obrigado pela leitura :D



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