O Diabo do Sertão escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 2
Ambições alinhadas


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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O sofá já estava deformado ao máximo quando o homem despertou. Cortando seu horrível e sonoro ronco, ele abriu os pesados e volumosos olhos enquanto, assustado, tentava entender o que se passava. Limpou a saliva que descera pelo canto de sua boca e, lentamente, apoiou-se no sofá para se levantar. Seu grande corpo deixou uma marca bem definida no confortável móvel e, após estalar os dedos, o corpulento homem se viu de pé em meio a espaçosa sala da mansão. Olhando lentamente para cima, seus olhos passaram pela madeira belissimamente polida que compunha a parede, além do conjunto de quadros que indicavam os membros daquela rica família: Francisca, Guilherme, Lino e Luana. E claro, o grande e poderoso Marcondes. Seguindo com o olhar um pouco mais para cima, ele viu aquilo que tanto desejava: o relógio.

— Já? — Não conseguiu segurar as palavras.

Colocou a mão direita no bolso e retirou um relógio. Para sua tristeza, o horário era realmente aquele. Marcondes passou então a olhar para o resto da sala: viu o belo rádio que havia comprado recentemente, assim como uma mesinha de vidro e um luxuoso crucifixo de ouro que embelezava a outra parede. Seus olhos também captaram, para a tristeza do homem, toda a desarrumação no hall de entrada. Havia bebida espalhada, roupas amassadas jogadas pelo chão e blocos de papéis largados como se não houvesse ninguém que cuidasse daquela casa. “Maldito Guilherme”, ele pensou antes de finalmente ir até o motivo de sua indignação e, apesar das dores nas costas, arrumar parcialmente aquela bagunça.

Enquanto erguia aqueles papéis encharcados de bebida, Marcondes viu que um deles era de grande importância.

Disgraça, Guilherme! — Gritou como se seu filho pudesse ouvir. — O que te impede de beber longe desta casa?!

Marcondes gritava para o nada, afinal de contas, estava sozinho em casa. Sua esposa saíra para levar Lino ao médico, pois o garoto parecia meio doente. Naturalmente, a bem comportada Luana seguiu a mãe. Guilherme, por outro lado... “Que moleque desgraçado”, uma voz ecoava na mente de Marcondes e ele concordava plenamente com ela. Olhando para o papel embebido, viu que era uma peça importante para a reunião que teria naquele dia. Correndo até a área de serviço, passou pela rica cozinha e chegou até o espaço simples, mas eficaz. Colocou o papel sobre uma tábua e, levantando o ferro de passar a carvão, aguardou até que o pesado utensílio estivesse suficientemente aquecido para tentar dar um jeito naquele papel molhado.

Ficou tão distraído que não ouviu os pesados passos em sua direção. Atrás do riquíssimo homem, um homem de barba bifurcada e rosto amargurado estranhava a atividade de seu patrão.

— Prefeito Maia? — Questionou com uma certa insegurança em sua grave voz.

As rugas no rosto de Marcondes Maia se contorceram na mesma proporção do susto do homem. Quase arremessando o ferro para longe, ele deu um salto para trás antes de recuperar a calma e guardar o objeto.

— Meu Deus, Valter! — Seu rosto estava vermelho de raiva e o grosso bigode que invadia suas narinas parecia mais arrepiado que o normal. — Isso é jeito de aparecer?

— Perdão, senhor — Valter timidamente se afastou. — É estranho te ver aqui.

— Eu estou apenas tentando limpar uma grande sujeira que meu adorável filho deixou — respondeu com um pouco mais de calma na voz e, logo em seguida, ergueu o papel um tanto quanto mais seco. As palavras ali escritas estavam legíveis, fato que lhe colocou um sorriso no rosto. — Perfeito!

Caminhando para fora da área de serviço, o prefeito viu o grande Valter o acompanhar lentamente.

— Eu preciso que você arrume algumas coisas pra mim, Valter — falava enquanto caminhava pela sua maravilhosa casa. — Limpe essa bagunça na entrada e, por favor, prepare uma bebida. Até hoje não sei se o Gustavo prefere um bom vinho ou o café de sempre.

— Eu vou preparar o café — Valter respondeu com obediência enquanto limpava o resto de bebida deixada por Guilherme.

Enquanto seu quase escravo fazia os serviços necessários, Marcondes sentou-se mais uma vez no seu confortável sofá e encarou rigidamente o relógio que insistia em se mover lentamente. Retirou mais uma vez o relógio de bolso para conferir e constatou que o horário era mesmo aquele. “O tempo voa enquanto durmo, mas anda a lentos passos quando estou vividamente acordado”, pensou com certo desdém antes de dar uma gargalhada boba. Até que os ponteiros finalmente encontraram a hora que ele queria.

Do lado de fora, um homem ainda mais rico batia palmas enquanto permanecia em cima de sua carruagem. O careca Gustavo Água-Santa mantinha seu eterno riso enquanto aguardava a aparição do prefeito Marcondes Maia. Não tardou para a porta ser aberta.

— Grande Marcondes! — Gustavo exclamou enquanto descia lentamente da carruagem. O velho acariciou seu cavalo antes de se direcionar ao prefeito. — Melhor dizendo: grande prefeito!

— São seus olhos, Gustavo — Marcondes se aproximou com os braços abertos e deu um tenro abraço no magnata da água. — O que está achando da cidade?

— Tão única quanto o nome. Água Funda? Quem pensaria em algo assim?

— É uma clara referência a tudo que o senhor pode nos ajudar, por que não? — E, dando uma gargalhada, o prefeito convidou o ricaço para adentrar a mansão.

Ao passar pela porta, Gustavo olhou com carinho para cada canto da residência: o lugar era maravilhoso. Apesar de suas doces palavras em relação a cidade, o magnata via um verdadeiro contraste: enquanto o resto do município era recheado de seca, pobreza e desesperança, a casa do grande prefeito refletia riqueza, luxo e fertilidade.

— Que lugar mais encantador, prefeito! — Gustavo Água-Santa rapidamente encontrou um confortável lugar no sofá. — Magnífico! E que bela família você tem.

Olhando para o quadro, Marcondes sentiu uma pontinha de desgosto ao ver a imagem de Guilherme. No entanto, ignorando tudo aquilo, sentou-se em seu lugar de direito e, mantendo um tom de voz o mais amigável possível, começou:

— Fico feliz em tê-lo aqui depois de tanto tempo, Água-Santa. Você sabe que essas pessoas sofrem, né? Falta fé, falta chuva e falta água. Eu, como um bom prefeito, tento ajudá-las, é claro. Por que não tentaria? — Enquanto dava seu discurso, Marcondes viu Valter se aproximar com duas xícaras de café e deixá-las na mesinha próxima. — Acontece que o povo num entende. Eles pensam que basta perfurar um poço e pronto, água pra todos o tempo todo.

— Oh, eu entendo bem, prefeito — com um tom um pouco mais sarcástico, Gustavo tomou seu primeiro gole do café. — Acreditam que podem fazer tudo sozinhos e que é simples assim. Mas eu estou aqui para te ajudar, é claro.

Com um sorriso no rosto, o magnata da água tateou seus bolsos até perceber que havia se esquecido de algo.

— Devo ter deixado na carruagem — disse enquanto caminhava para buscar aquilo que desejava mostrar.

Gustavo rapidamente retornou com uma expressão de puro desgosto.

— O que houve, Gustavo? — O prefeito questionou.

— Eles sumiram! — O rosto do até então sorridente homem havia se convertido em um misto de decepção e raiva. — Os malditos documentos sumiram!

— Calma. Quais documentos?

— As malditas autorizações que você pediu para que eu preenchesse com meus dados. As referentes à perfuração dos poços com exclusividade neste resto de fim de mundo.

Respirando fundo, Marcondes coçava a sua cabeça enquanto segurava sua língua para não falar umas poucas e boas para Gustavo. “Como esse desgraçado consegue perder papéis tão importantes?”, sua mente lhe dizia. Ele concordava plenamente.

— Vejamos — Água-Santa tentava encontrar uma forma de negociar. — Vejo que você tem aí a autorização definitiva para a perfuração dos poços. Algo que vai me dar liberdade para comandar todas essas bandas e impedir que as pessoas se machuquem com esses equipamentos pesados e, da mesma forma, que não peguem uma água de má qualidade. Você sabe que eu me importo com o povo, não é?

A voz ao mesmo tempo jocosa e arrogante do magnata incutia uma certa raiva no prefeito, ainda que ele tivesse o grande desejo de lucrar com o esquema da água. Havia dois ganhos, afinal: financeiro, pois Gustavo lhe repassaria uma generosa quantia. Mas o principal era o político: as pessoas viam aquilo como um ato de heroísmo e, dessa forma, Marcondes garantiria sua reeleição naquele ano.

— Eu adoraria, Gustavo. Adoraria mesmo! — O prefeito tentava manter a calma, mas era impossível disfarçar seu rosto avermelhado. — Mas a descoberta de uma irregularidade dessas poderia colocar em risco minha eleição. Sabe comé: aquele tal de Farias tá chegando com tudo.

— O quê? — O ricaço deu uma tosse e, logo em seguida, uma gargalhada cheia de desprezo. — O grandioso Marcondes com medo de um politiquinho novo de meia-tigela? Você é grande! Você é um Maia. Sua família está aí há quanto tempo? Décadas?

— Sim. Mas os Farias também não são de se brincar. Eu simplesmente quero ganhar e você sabe que você ganha quando eu ganho. Então é melhor confiar em mim e colocar todas as ficha no meu trabalho — Marcondes disse com firmeza. Logo em seguida, pegou alguns papéis que guardava ali perto. — Tome. São cópias das autorizações. Preencha-as da maneira certa e, pelo amor de Deus, não as perca. Mim entregue esses benditos papéis e eu lhe darei a autorização exclusiva e definitiva, bom amigo.

— Claro — Gustavo levantou-se com certa raiva dentro de si. — É claro, meu amigo.

Distante daquela negociação, o assentamento da Lagoa da Esperança seguia como se aquele dia fosse outro qualquer: Socorro tratava os feridos, Padre Miguel contava os estoques de água e comida, Maria Beatriz consertava as roupas dos moradores e mais uma porção de pessoas trabalhava como podia. Nesse contexto, José apareceu com um largo sorriso no rosto.

— Eu e Carlinhos demos uma volta por aí. Adivinhem só o que conseguimos — ele se esforçava para não gargalhar como um idiota. Desmontando do jumento, pegou a bolsa que furtara de Gustavo Água-Santa e arremessou-a para o padre. — Peguei de um ricaço distraído. Ah, e ele ainda me deu um presentinho.

O rapaz mostrou a quantia de dinheiro que havia ganho do homem. Miguel a pegou e, sem dizer uma palavra, levou-a para a caixa de economias do grupo. Abrindo a pequena bolsa que recebera, viu alguns papéis com várias assinaturas e informações diferentes. Olhou por mais alguns segundos e, vendo que aquilo poderia ser útil, disse:

— Eu fico com isso — sua voz era serena, mas era possível perceber um tom positivo nela. — Nos será útil, creio eu.

Zé ficou com um sorriso bobo e, olhando para Carlinhos, ele imaginava o quão heroico era aquilo. Até que a pequena Beatriz apareceu e, de maneira nem um pouco delicada, perguntou:

tá roubando de novo? — Com as mãos na cintura, a moça segurava a barra da saia para evitar que erguesse os punhos e desse uns bons socos em seu namorado. — Eu num acredito nisso!

— Ele era um homem muito rico — com os braços abertos, José de Lima tentava justificar. — Muito rico mesmo, Bia! Ele andava por aí na carruagem sem ninguém pra vigiar e, além disso, me deu dinheiro só por eu ter ajudado! Ocê acha que pobre tem dinheiro pra agradecer por alguma gentileza?

— Besta! — A garota acertou um tapa no peito do rapaz. — Crie vergonha na cara!

Começando a se encher de raiva, José segurou a mão de sua namorada, evitando que fosse acertado mais uma vez.

— Para! — A voz do rapaz se transformou na voz de um homem feito. — Eu só tentando ajudar, ocê não vê isso? Tá sempre me julgando, me punindo. Você é doida, menina?

— Padre — Bia começou a olhar para o sacerdote. — O que a Bíblia fala sobre roubar?

Fingindo não ter ouvido a pergunta da garota, Padre Miguel seguiu lendo algumas de suas anotações. Ao mesmo tempo, boa parte das pessoas do assentamento havia parado de realizar suas atividades para observar a briga do casal.

— Você está vendo? Até ele sabe que eu fazendo o melhor pelo grupo — Zé disse de maneira um pouco mais calma. — Bia, o Gustavo “sei lá das quantas” num vai sentir falta nenhuma do que eu peguei. Fique calma, eu tenho princípios.

Com os olhos cheios de lágrimas, Maria Beatriz ensaiou dizer algumas palavras.

— Você... Você... — até que a moça, colocando a mão sobre a boca em um sinal claro de enjoo, se retirou abruptamente da presença de seu namorado.

José de Lima seguiu os passos de Bia com os olhos sem entender muito bem o que havia acontecido. Ele então virou-se e viu os tantos olhares curiosos que se direcionavam para ele e para sua namorada.

— O que foi? Voltem ao trabalho! — Ordenou, ainda que não fosse uma autoridade ali.

Tentando distrair a cabeça de todo aquele embaraço, Zé quase não percebeu quando Paulo apareceu acompanhado de uma proeminente figura: Breno Farias. No entanto, Padre Miguel percebeu mais do que qualquer outra pessoa. Levantando-se de sua singela mesa de madeira, o sacerdote de cabelos brancos caminhou lentamente até se deparar com a carruagem do grupo. Ela, no entanto, não chegava nem perto da luxuosidade e condição da pertencente ao famoso Gustavo Água-Santa. A carruagem do assentamento, na verdade, era feita de uma madeira de baixa qualidade e tinha encaixes duvidosos, muitas vezes se soltando nos piores momentos. Era de se admirar que fora a pertencente a Gustavo que tenha sofrido algum dano momentos atrás.

— Breno Farias — Miguel já estava ao lado do veículo. — É uma honra tê-lo aqui.

Paulo, que já havia agilmente descido, ajudou o político a fazer o mesmo. Breno era um homem de baixa estatura, mas de aparência formidável. Trajava uma camisa branca da melhor qualidade, aliada a um fino colete de cor bege. Seu cabelo estava penteado para o lado e seu rosto estava livre de pelos. Era, definitivamente, a imagem da juventude e da nova política para Água Funda.

— Por favor, padre — o homem disse com extrema gentileza até finalmente tocar os belos sapatos de couro no chão. — Não fale como se não nos conhecêssemos há tempos.

Dando um largo sorriso, Miguel abraçou o político e agradeceu a Paulo pelo trabalho de transportá-lo de maneira discreta.

— Venha — Padre Miguel gesticulou. — Antônio está no alojamento. Sabe como é, ele não é mais tão jovem quanto antes. Está na hora de seu cochilo.

— Eu definitivamente não quero atrapalhá-lo, Miguel — Breno disse com tremenda educação. — Um homem que escapou da escravidão e optou pelo caminho do conhecimento merece todo o tempo do mundo.

De longe, José observava tudo com uma certa estranheza. Beatriz, por outro lado, optara por preencher a mente com mais trabalho: nem o namorado ou os acontecimentos do assentamento tiravam a concentração da moça.

— Você sabe que ele quer vê-lo — o padre argumentou. — E eu também sei quem você quer ver.

Dando um sorriso, o político acompanhou o religioso. A dupla seguiu para o alojamento de Antônio, conhecido como um dos líderes do assentamento. Padre Miguel bateu levemente na porta antes de adentrar o local. Estava escuro e quente, mas qualquer sombra era um alívio perante o sol impiedoso do sertão.

— Padre e... — Antônio custava para enxergar com propriedade e lembrar. — Breno. Eu lembro. Breno Farias, nosso futuro prefeito.

— Se assim Deus permitir — o político se aproximou e apertou a mão do homem.

O alojamento não era exatamente grande, mas contava com um espaço suficiente para acomodar o trio: além do colchão no qual Antônio estava sentado, havia uma mesa cheia de papéis, duas cadeiras, velas e uma coleção de livros em uma estante improvisada. Um lugar que poderia ser chamado de “luxuoso” quando comparado com os existentes ao lado.

— Gosta muito de ler, Antônio? — Breno olhava para os livros que se amontoavam ali. — É uma coleção e tanto.

— Aprender nunca é demais. Enxergar pelos olhos de outros homens e mulheres é uma atitude que te muda para sempre, Breno — Antônio se levantava levemente, sendo possível ouvir o estalar de alguns ossos. — Você com certeza deve ler muito, jovem. Mas sei que não é para falar de livros que você está aqui. É óbvio que você quer saber do Diabo, não é? Não o do inferno, mas aquele que está bem entre nós.

Farias e Miguel se entreolharam e sorriram com as palavras do homem mais velho. O político pegou uma das cadeiras e, finalmente sentado, começou:

— Sim. Paulo foi até a minha casa e me disse sobre o tal cangaceiro desaparecido. Você já deve ter ouvido as histórias, não é? — Breno deu uma pausa e olhou diretamente para os olhos profundos de Antônio. Ouvindo tudo com atenção, Miguel sentou-se na cadeira que restava. — Não chamam ele de “Diabo” por razão nenhuma. Eu soube que ele já matou dez homens usando uma faca. Ah, e todos os dez estavam com revólveres, espingardas e toda arma que você possa imaginar. Se isso é verdade? Eu não sei. Mas quando pensamos em política, não é exatamente a verdade que importa, afinal. O que você pensa, Antônio?

— Eu penso que esse homem, independente de seus feitos no passado, pode ser de grande valia para a sobrevivência de todas as pessoas daqui — o velho deu um sorriso ao fim de suas palavras. — Mas temo que ainda levará um tempo para ele se recuperar. Socorro está fazendo o que pode.

— Eu entendo. O importante é que tenhamos ele sob o nosso controle. Você garante isso?

— Garantimos — Padre Miguel respondeu no lugar de Antônio.

A única coisa que não era garantida, na verdade, era a segurança. A quilômetros de distância, três homens caminhavam em direção de um grande terreno. Eles usavam roupas de couro e um chapéu típico da região. Eram conhecidos como “cangaceiros” e a própria menção do nome poderia causar medo, esperança ou dúvida, dependendo de quem a ouvisse. No entanto, aquela não seria a vez da esperança. No centro do terreno, bem depois das árvores secas, da terra infértil e dos ossos do gado morto, uma casa se destacava. Dentro dela, um homem conversava com sua esposa e filhos.

— Não saiam daqui por nada, entenderam? Por nada! — Ele caminhou lentamente e, olhando para o crucifixo grudado na parede, fez o sinal da cruz.

— Não, pelo amor de Deus, não! — Sua esposa suplicava enquanto seus filhos choravam sem entender exatamente o que aconteceria. — Entregue as joias! Aqui, minha aliança!

A mulher retirou o anel que levava no dedo anelar esquerdo e colocou-o na mão do marido.

— Não — ele respondeu com certa grosseria e devolveu o anel para a esposa. Carregando um revólver antigo, caminhou para o lado de fora, deixando sua família para trás se afogando em lágrimas de preocupação.

Do lado de fora, o pai de família se deparou com os três cangaceiros. Os rostos eram conhecidos: Lúcio Arcanjo, o líder; Hugo Sangrento, com sua face preenchida por cicatrizes terríveis; Eduardo Peixeira, conhecido pela sua letalidade com a arma branca.

— Senhor... — Lúcio Arcanjo, que deu um passo a frente, começou a olhar para uma lista que segurava com as duas mãos. — Manoel! É isso. Por favor, nós não queremos brigar. Só queremos que pague a conta.

Havia uma doçura na voz do homem que tornava toda a situação ainda mais terrível. Lúcio guardou a lista e, observando que a vítima da cobrança carregava uma arma, colocou a mão em seu próprio revólver. Hugo e Eduardo acompanhavam o líder de maneira silenciosa, mas não menos ameaçadora.

— Deixem minha propriedade em paz! — O pobre homem pegou o revólver e apontou para Lúcio. — Eu vou atirar!

Respirando fundo, o cangaceiro começou a caminhar lentamente em direção do fazendeiro.

— Você sabe o que acontece se atirar, senhor Manoel? — Arcanjo continuava com sua caminhada, enquanto Manoel tremia intensamente. — Eu provavelmente vou bater as botas. Isso parece bom, num é? Mas a verdade é que não. Acredite em mim: eu que mantenho essas raposas na coleira. Se num fosse por mim, o Hugo já tinha colocado uma bala na sua cabeça. Entenda: se eu morrer, esses dois vão matar você, torturar seus filhos e estrupar sua mulher. É isso que você quer?

Àquela altura, Lúcio Arcanjo já estava a um braço de Manoel, que sentia um suor frio descer pela sua face.

— Eu... Eu... — o homem sentia um medo que se apoderava de seu corpo e alma. — Deixe minha família em paz, pelo amor de Deus.

E, vendo que seus maiores pesadelos poderiam se tornar reais, Manoel entregou o revólver para o cangaceiro. Mais atrás, Hugo e Eduardo davam gargalhadas.

— Bom garoto — Lúcio disse com extrema calma antes de ter um surto de violência. Acertando o fazendeiro com a coronha da arma repetidas vezes, gritou sem parar. — Você é doido? Quer apontar uma arma pra mim? Você sabe quem eu sou?! Sou Lúcio Arcanjo, fi de Emanuel Arcanjo!

Ao fim daquele momento de fúria, Manoel se encontrava no chão com o rosto cheio de sangue e calombos em decorrência dos fortes golpes de seu algoz.

— Agora se levante e vá buscar meu pagamento! — O cangaceiro ordenou.

Erguendo-se com dificuldade, o pobre homem entrou na casa sem olhar para trás. Poucos segundos foram necessários para ele retornar com, não só a aliança de sua esposa, mas com uma caixa cheia de joias da família. Sem dizer uma palavra sequer, colocou a caixa aos pés de Lúcio Arcanjo.

— Um bom homem sempre paga suas dívidas. Parabéns, senhor Manoel — o líder disse com sarcasmo. Segurando a caixa de joias, virou-se para seus companheiros que olhavam animados com o ocorrido. — Segure, Hugo. Um nome a menos na lista. Vamos ver quem mais tá devendo ao chefe.

Foi o que falou antes de puxar mais uma vez a sua lista. O dia estava longe de terminar: ainda havia muito trabalho a fazer.


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Notas finais do capítulo

Bebam água e muito obrigado pela leitura ♥

Deixem nos comentários seus pensamentos e ideias em relação a esse princípio de história ;)

Até breve!



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