O Diabo do Sertão escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 19
Carnificina


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura :)



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Com os lábios rachados, ele almejava água mais do que tudo. Caso não pudesse ter sua sede saciada, aceitaria a morte. Qualquer coisa seria mais proveitosa que as promessas que lhe foram feitas: dedos decepados, olhos arrancados e até mesmo castração. O pobre homem estava há dias naquele porão. Era escuro, seco e extremamente quente. Não tinha noção do tempo, tendo a única certeza de que não via uma só alma viva há dezenas de horas. O único sentido que parecia funcionar era a audição. Sim, ele escutava muitas coisas. E essas coisas lhe contavam uma história.

A história que ele ouvia parecia ser a seguinte: um homem mau havia perdido sua filha após um ataque planejado por um outro homem ainda pior. Para o azar do prisioneiro, ele também sabia qual o seu papel nessa história: era uma vida descartável, estando posicionada exatamente entre os dois homens maus. Também tinha filhos, mas ninguém contaria isso nas histórias. Sua família choraria, mas isso não seria lembrado. No fim, o nome dele poderia ser Ninguém. E, tendo consciência disso, o rosto seco de Ninguém umedeceu-se em lágrimas.

Logo em seguida, ele começou a ouvir passos. Eram firmes e vinham acima de sua cabeça. Não era de se estranhar: ouvia tais tipos de passos diariamente. Já havia decorado: era o pai, o líder. O homem vez ou outra esbravejava com os outros, como se quisesse descontar uma fúria há muito contida. Só baixava a voz quando uma mulher falava. A voz dela esbanjava experiência, indicando ser possivelmente a mãe do cangaceiro líder.

Por fim, o devaneio foi interrompido pelo bater da porta. Com brutalidade, o chefe do bando adentrou o porão portando uma peixeira e um pires com uma vela. A luz fraca pouco revelava de suas feições, mas Ninguém conseguia presumir: Lúcio, como era chamado o líder, se afogara numa mistura de tristeza e ódio há pouquíssimo tempo.

— Seu desgraçado! — Como um demônio, Lúcio Arcanjo começou a caminhar em direção do prisioneiro. Colocando a vela em um canto do porão, a escuridão quase total não era capaz de esconder suas intenções. Com a peixeira em mãos, deu lentos passos enquanto encarava Ninguém. — Como tá?

“O quê?”, o prisioneiro não entendia. Esperava a morte, não queria mais adiamentos. Por que o maldito cangaceiro perguntava como ele se sentia? “Ele quer me provocar, só pode”, concluiu antes de começar a responder.

— Eu... — sua voz saía de maneira falha e fraca, sendo quase inaudível. A secura da garganta de Ninguém ainda causava dor no pobre coitado. De toda forma, ele seguiu com a resposta. — Eu quero morrer.

Lúcio Arcanjo deu uma risada. Pela primeira vez, ele se via naquela posição. Ainda que fosse cangaceiro há anos, sendo tal profissão uma herança de seu pai, o homem nunca sentira prazer em torturar e machucar os outros. Claro, não era o que ele transparecia: para seus semelhantes, Lúcio fazia questão de aparentar estar gostando de cada um de seus trabalhos. Entretanto, não havia fingimento naquele momento. Enquanto observava o soldado ferido, o cangaceiro sentia-se alegre. “Por você, Carmen”, pensou enquanto dava passos cada vez mais vagarosos.

— Morrer? — Com uma voz lenta e cruel, o líder começou a encarar a peixeira que carregava. — Como assim morrer?

Ao ouvir a gargalhada perversa do cangaceiro, Ninguém tentou se levantar. Lembrou-se de um fato terrível: haviam martelado seus pés até os ossos virarem farelo.

— Ah, o Levy fez um bom trabalho! — Lúcio comemorou ao ver a tentativa fracassada do prisioneiro de se levantar. — O sinhor fala em morte, mas ocê sabe quem morreu sem pedir?

Sem qualquer forma de fugir dali, o homem atormentado ficou escutando enquanto fazia uma oração silenciosa. Tinha fé de que Deus poderia tirá-lo dali, ainda que as circunstâncias fossem terríveis.

— Responda! — Arcanjo acertou um chute da barriga dele, que cuspiu sangue logo em seguida. — Mim diga! Quero saber quem mais morreu!

— Todos os meus amigos — ofegante, Ninguém respondeu com grande esforço, ao mesmo tempo em que chorava como uma criança. — Vocês mataram todos. Eles num pediram por isso.

Cada lágrima que ia de encontro ao chão fazia Lúcio sorrir. Ele se sentia vingado por todo o sofrimento que despejou dos olhos enquanto o grupo enterrava a pobre Carmen numa pequena caixa de madeira no meio do vazio sertanejo. Podia sentir que, daquela forma, a alma da sua filha finalmente descansaria na casa do Pai. Sangue só se pagava com sangue.

— Resposta errada! — O cangaceiro chutou mais uma vez o prisioneiro. Retirando uma pequena fotografia do bolso, Lúcio mostrou-a para Ninguém. Nela, podia-se ver um bebê: era Carmen com apenas um ano de vida. — Carmen. Esse é o nome dela e essa é a única fotografia que nós tem. Ela era uma criança quando um de seus amigos atirou nela. Ela morreu sem pegar em nenhuma arma!

Agora, as gargalhadas cruéis de Lúcio haviam sido suplantadas pela mais pura revolta. Já havia se passado dias do ocorrido, mas o líder do grupo ainda não concebia a ideia de ter uma filha morta daquela forma. De todos ali, ela era a que menos merecia aquele destino.

Vendo a foto com dificuldade, mas sabendo tratar-se de uma criança, Ninguém ficava cada vez mais tenso. Fechava os olhos como se quisesse deixar de ver a realidade: de fato, os agentes da justiça haviam assassinado uma criança. Para piorar, ele agora se encontrava de frente com o pai da coitada.

— A gente num sabia — o prisioneiro tentava justificar enquanto sua face se contorcia em dor e angústia. — Marcondes disse que só tinha bandido. Só bandido! Eu nunca atirei em criança, sinhor!

— A mãe dela... Minha mulher... — Lúcio tentava reencontrar as ideias. Naquele momento, ignorava o homem torturado e focava nos eventos recentes que insistiam em assombrar sua mente. — Ela nem mesmo olhou na minha cara. Eu queria que ela me punisse, que me dissesse como eu errei. Mas nem isso. Nem isso!

Com a voz ficando mais grave a cada palavra, Arcanjo soltou o diabo e começou a bater ferozmente no prisioneiro.

— Você intende agora?! — Lúcio dizia enquanto chutava o homem. — Perdi minha filha! Minha mulhé não olha na minha cara! E perdemo nossa casa! Tudo por conta de um disgraçado feito você!

Entre exclamações, socos e chutes, o cangaceiro se satisfazia com a violência. Não tivera a chance de descontar no verdadeiro assassino de sua filha: ele havia sido rapidamente morto pelos outros membros do acampamento no dia do ataque. Além disso, ele e seu grupo tiveram que se mudar rapidamente para um novo abrigo. Agora, ele podia finalmente sentir um breve gosto de vingança.

— O que... O que... — Ninguém tentava falar, mas era sempre interrompido por um novo golpe de Lúcio. — O que quer que eu faça?!

— Ah, meu querido — o tom irônico na voz de Arcanjo fez o prisioneiro se arrepiar. Segurando a peixeira, o cangaceiro recuou alguns passos. — vai ser uma mensagem pra Marcondes.

Afastando-se de Ninguém, Lúcio foi até a saída do porão. Chegando lá, soltou um grito:

— Levy! A caixa!

Bastaram alguns segundos para o cangaceiro de rosto queimado aparecer. Além da caixa, trazia consigo seu típico sorriso zombeteiro. Sentiu-se ainda mais animado ao ver o estado deplorável do prisioneiro.

— Vai ser agora? — Levy questionou. — Ele já contou tudo?

— O homi já entregou até a alma — Lúcio respondeu.

A caixa tinha cerca de um metro de comprimento por cinquenta centímetros de largura. Contava ainda com a profundidade de quarenta e cinco centímetros, além de uma tampa e alguns pregos para fixá-la após a preparação da encomenda. Olhando para ela com um misto de curiosidade e apreensão, Ninguém logo compreendeu qual era a intenção dos cangaceiros. Isso o fez sentir um pavor ainda maior do que o que sentira nas últimas horas.

— Não! Não! Não! — Começou a repetir de forma desesperada e irritante. — Isso não, por favor! Isso não!

Levy gargalhou ao ver o estado de espírito do coitado. Olhou para Lúcio e, logo em seguida, colocou os olhos na peixeira que o líder do bando carregava.

— Isso vai dar conta do trabáio? — Questionou com a maior naturalidade do mundo. — Vai precisar fazer bem direitin pra caber na caixa.

— Ah, Levy — com olhos diabólicos, Arcanjo olhava para o homem que moraria na caixa. — Eu não tenho pressa nenhuma.

Tentando uma escapatória final, Ninguém se debatia de todas as formas. Não adiantou. Lúcio, caminhando com uma frieza que ele mesmo desconhecia, logo se aproximou de sua vítima e disse:

— Não se avexe não — com a voz calma, começou a cortar lentamente os pés quebrados do prisioneiro. Entre gritos de intensa dor e pavor, o cangaceiro aproveitava cada vagaroso segundo. — Tamo só começando.

Assistindo à cena há alguns metros de distância, Levy Queimado sorria. Suas mãos coçavam para participar daquela carnificina, mas ele sabia: era uma vingança bem pessoal para Lúcio. Disso, o homem de rosto queimado entendia bem: ainda ansiava pelo momento em que reencontraria Diabo. De alguma forma, ele podia sentir que não tardaria. O diabo do sertão ainda pereceria pelas suas mãos e aquela maldita dívida seria paga. “Diabo vai sofrer igual ou pior”, o cangaceiro pensava. Tinha uma fé quase religiosa nisso, mas deveria aguardar o tempo e o destino darem suas respostas.

Dias se passaram e, longe daquele antro de horror, um homem aparecia em Água Funda com uma nova feição. Divergindo de sua confiança usual, Gustavo Água-Santa agora era acompanhado por um pistoleiro. O homem fora contratado logo após o incidente envolvendo o suposto cangaceiro, cangaceiro esse que deveria estar bem preso nas rédeas de Marcondes. “O prefeito vai ter o que merece”, Gustavo pensou com grande raiva. Ainda sentia falta de alguns dentes, mas seus olhos já não pareciam tão castigados. Os hematomas espalhados pelo resto do corpo – ainda que persistentes – estavam ocultos pelas suas vestimentas.

O ricaço não pensava em uma vingança de ordem física. Não, machucar ou matar Marcondes Maia estava fora de questão. Isso seria, no mínimo, péssimo para os negócios. Ainda que o prefeito pudesse ser um traidor desgraçado, o homem pagava em dia e isso fazia toda diferença. Sendo assim, Gustavo pensava em outra forma de compensação: financeira. O pistoleiro ao seu lado servia apenas para garantir a sua segurança e nada mais. Nunca se sabia quando outro maldito cangaceiro poderia aparecer.

Conduzindo sua carroça de sempre até as proximidades da residência do prefeito, percebeu algo distinto. A fachada havia sido reformada e a pintura, que antes estava descascando, agora jazia brilhante e bonita perante a luz do sertão. Além disso, os degraus que precediam a porta de entrada haviam sido trocados: se antes a madeira parecia meio envelhecida e até mesmo frouxa, agora traziam uma sensação de segurança apenas de olhar, além de estarem polidas, garantindo uma aparência exemplar.

— Parece que o prefeito anda ganhando muito dinheiro com a desgraça dos outros — Gustavo comentou com o pistoleiro, soltando um risinho abafado logo em seguida. Talvez a sua consciência o acusasse do mesmo, mas ele era um pouco surdo nesse quesito. — Fique aqui, homi. Se eu demorar, já sabe. Se ouvir algo estranho, já sabe. Se eu gritar...

— Já sei — o pistoleiro de olhos bem separados se adiantou. — Já com o revólver destravado.

— Só não mate meu cavalo — Água-Santa ainda lamentava a perda de seu velho amigo. No entanto, sua preocupação com o novo cavalo era outra. — Este aqui foi meio caro.

Acenando com a cabeça, o pistoleiro indicava o óbvio: já sabia. Finalmente descendo da carroça, Gustavo olhou aos arredores a procura de qualquer rosto que lhe fosse conhecido. No entanto, encontrou as velhas caras empobrecidas de sempre. Ele podia até conhecê-las, mas não eram úteis naquele momento. Virando seus olhos para a casa do prefeito, começou a subir as escadas e pôde comprovar que a aparência delas não mentiam: eram realmente firmes e não davam nenhum indício de fragilidade ou frouxidão. “Ele vai me pagar até com essas escadas”, pensou de maneira firme.

Chegando até a porta, seguiu com o prosseguimento de sempre: deu três batidas e aguardou. Geralmente, o prefeito estava na sala se estressando com seus pensamentos de poder e corrupção, sendo hábil para abrir a porta. Em outras ocasiões, Valter seria ágil nessa questão, fazendo valer o seu salário. No entanto, naquela manhã, a situação transcorreu de forma diferente. Após as três batidas, Gustavo aguardou um, dois, três minutos. Nada. Ficando irritado, bateu mais vezes na porta. Vendo que ninguém viria, resolveu encostar o ouvido nela.

Ruídos de conversa e gargalhadas. “Uma festa?”, Água-Santa imaginou. O prefeito estaria numa situação tão vantajosa a ponto de festejar dessa forma? “Minha nossa, não acredito que vou ter que fazer isso”. Juntando bastante ar, gritou o mais alto que podia:

— Marcondes Maia! Alguém em casa?! — Teve que dar uma pausa para tomar mais ar. — Gustavo aqui fora!

Colocando novamente o ouvido na porta, o ricaço percebeu que a conversa havia parado. Então começou a ouvir os pesados passos do prefeito. Afastando a cabeça, voltou a apresentar a típica postura de um magnata. Poucos segundos depois, a porta finalmente foi aberta.

— Oh, Gustavo! — Do outro lado, um estranho e sorridente Marcondes se apresentava. Seu rosto não apresentava a vermelhidão usual, além de que seus pelos faciais pareciam bem aparados. Com um olhar que aparentava genuína felicidade, gesticulou para que Gustavo adentrasse a residência. — Como é bom te ver. Vamos, entre!

Estranhando aquela recepção um tanto quanto agradável, Água-Santa viu-se desarmado. Antes, estava preparado para soltar os cachorros em cima do prefeito. Agora, não sabia exatamente como reagir. Tinha ciência da questão que permanecia pendente, mas precisava de uma brecha para adentrá-la.

— Gustavo? — Maia questionou ao ver o ricaço parado. — Não quer entrar?

Saindo de seu devaneio, Água-Santa fingiu um sorriso e adentrou a casa. Do lado de dentro, deparou-se com uma continuação das belezas exteriores: o piso estava polido, as paredes pintadas e até mesmo os móveis mudaram de lugar, apenas a sala permanecendo idêntica ao que sua memória lhe dizia. No entanto, os olhos do velho foram em outra direção: sorridente, uma família tomava seu café da manhã na sala de jantar.

Francisca, a matriarca da família, passava manteiga em alguns pães enquanto sorria de uma orelha a outra. As crianças, Lino e Lina, tomavam um copo de leite quente cada, ambos comportando-se de maneira exemplar. Guilherme, por outro lado, mantinha sua expressão emburrada de sempre, mas sem ser tão desagradável quanto seu potencial permitia.

— Quer comer algo, Gustavo? — Marcondes apontou para a farta mesa. — Temos café, leite, pães, manteiga, bolachas e algumas frutas. Água também, claro.

O prefeito soltou uma gargalhada estridente e deu um tapa amigável nas costas de Água-Santa. O magnata da água mantinha-se rígido, como se estivesse em um ambiente completamente hostil. “Quem dera ele estivesse sendo vil comigo”, pensou consigo mesmo. Acreditando ser um bom ator, fingiu mais um terrível sorriso e caminhou até a mesa. Sentando-se em uma das confortáveis cadeiras, começou a se servir. “Vai chegar a hora de falar, sim! Vai chegar”, rezava.

— Olá, Gustavo — Francisca falou de forma educada. Era a primeira vez que a mulher do prefeito falava diretamente com o homem, sem arrodeio. — Quer que eu te sirva?

— Não, obrigado — Gustavo gesticulou negativamente com a cabeça e com as mãos enquanto falava. Estava tudo errado: estavam todos sendo bons demais com ele. Quer dizer, a própria vida de Marcondes parecia boa demais. Cadê o caos, as brigas e as discussões infrutíferas? Algo estava muito errado em todo aquele mar de amor. — Eu fico com as bolachas.

Ao dizer aquilo, o velho deu uma brecha para que a atenciosa Francisca percebesse algo de diferente nele. Seus dentes, antes tão bem cuidados, agora estavam ausentes. Quer dizer, não eram todos, mas era perceptível que três ou quatro estavam fazendo falta na boca do ricaço.

— Gustavo — ela o chamou com preocupação. — O que houve com você? Seus dentes...

Ela deixou escapar. Sabia que estava sendo indiscreta, no entanto, sentiu genuína preocupação pelo homem. Marcondes sempre falara muito dele, deixando claro como ele era importante como aliado, sem falar de todo seu serviço supostamente prestado pelo povo do sertão. Ficando sem jeito, Água-Santa tentou esconder a verdade.

— Ah, acontece que eu caí... — por um breve momento, pensou em prosseguir com aquela mentira. Mas lembrou-se: estava ali para cobrar uma dívida de fidelidade. Não seria a hora revelar tudo? — Quer saber? Eu fui pego por um desses malditos cangaceiros. Estava indo para uma cidade vizinha até que o desgraçado me atacou sem mais nem menos. Matou meu cavalo e me deixou cheio de hematomas. Desgraçado!

Francisca pensou em censurar o homem, tendo em vista que havia crianças na sala. No entanto, sentia empatia pela dor exposta. Marcondes, por outro lado, estava com os olhos arregalados. Aquilo não podia ser possível. Os cangaceiros estavam mortos! Teve que questionar:

— Isso foi quando?

— Ah, já tem umas semanas — Gustavo buscou a memória traumática em sua cabeça e sentiu calafrios. — Ele era forte, alto. Deus me livre daquilo de novo!

Fazendo as contas em sua cabeça, o prefeito concluiu que o ocorrido fora antes do ataque contra os cangaceiros. Ainda assim, uma questão pairava livremente: por que algum cangaceiro desobedeceria sua ordem e atacaria Água-Santa? Aquilo era um absurdo! De toda forma, Marcondes respirou fundo e aceitou a ideia de que aquilo fora apenas um erro que não se repetiria.

— O crime é uma coisa terrível — Maia começou a fazer o velho teatro na frente de sua família. Francisca já começava a se sentir desconfortável. — Mas não se preocupe, meu amigo: a guarda estadual foi dar conta dos cangaceiros. Aposto que já devem estar se reportando com o governador para falar sobre o sucesso da missão. Um brinde a Sérgio Bezerra!

— Mas... — Gustavo queria encontrar uma forma de cobrar a dívida de confiança. No entanto, tinha honra o bastante para não estragar o teatro do aliado de forma tão explícita na frente da família. — Espero que o prefeito e o governador possam ressarcir o sertão após tantos anos de perda.

— Ressarcir — Marcondes repetiu enquanto processava a ideia. — Mas é...

Antes que pudesse concluir sua fala, ouviu uma forte batida advinda da porta. Levantando-se, seguiu o som enquanto Água-Santa o acompanhava.

— Valter não trabalha mais aqui não? — O ricaço perguntou.

— Parece que meio adoentado — Maia respondeu.

Chegando até a porta, abriu-a. Do lado de fora, viu apenas uma pequena caixa jogada no chão. Era grande e estava fechada por pregos muito bem colocados. Ao ver o objeto, Gustavo olhou para o pistoleiro que o aguardava do lado de fora e perguntou:

— Quem deixou isso aí?

— Foi um minino da rua — o homem armado respondeu.

Estranhando aquilo, o prefeito rapidamente puxou a caixa para o lado de dentro da casa. Pegando um martelo, usou um dos lados da ferramenta para retirar os pregos. Com algum esforço, viu que a caixa poderia finalmente ser aberta. Nesse momento, estava na sala acompanhado de Gustavo Água-Santa, enquanto sua família se deliciava com as últimas porções do café da manhã.

— Minha nossa! — Marcondes não conseguiu esconder o horror ao abrir a caixa. — Jesus, Maria e José!

Um odor fúnebre espalhou-se por toda a casa, causando nojo e pavor em todos os presentes. Ao ver a expressão de horror no rosto do marido, Francisca agilmente levou as crianças para o quarto. Guilherme, curioso, aproximou-se ainda mais, o que foi motivo de arrependimento.

Dentro da caixa, Gustavo, Marcondes e Guilherme viam a definição de carnificina: um homem fardado com os membros decepados, tendo seu sangue e vísceras espalhadas por todo o espaço. Seu rosto sem vida denotava sofrimento, ao mesmo tempo em que vermes e outras desgraças se apossavam daquele templo da morte.

— Ele... ele... — Marcondes sentiu uma grande tontura e suas palavras pareciam se embaralhar em sua cabeça. — Era um dos soldados! Um dos homens do governador, meu Deus!

Com a pele pálida, Gustavo se benzia freneticamente. No fundo, ele agradecia: todo o sofrimento que tivera que passar fora pouco se comparado a do pobre homem encaixotado. Guilherme, por outro lado, já havia corrido para vomitar no banheiro mais próximo. Não voltaria para a sala tão cedo.

— Os cangaceiros — Água-Santa disse enquanto sentia sua boca seca. Já havia concluído: assim como o prefeito abandonara os bandidos do sertão, eles haviam feito o mesmo com o político. — Foram eles.

E, quase como se tivesse poderes proféticos, o silêncio que se seguiu após as suas palavras foi rompido por um grande estrondo. Uma explosão havia acontecido não muito longe dali.


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Notas finais do capítulo

Muito obrigado pela leitura, pessoal! Estamos chegando na metade da história, acreditam? :D
Eu ficaria muito feliz se vocês contassem nos comentários o que estão achando da obra como um todo, assim como suas expectativas para o que vem a seguir.

Até o próximo capítulo o/



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