O Diabo do Sertão escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 14
Sem tempo para sofrer


Notas iniciais do capítulo

É bom voltar a postar. Obrigado pela paciência ♥

Boa leitura!



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Debaixo da estrutura de madeira do teto, o local se apresentava de maneira simples. A cama de casal estava posicionada logo abaixo da janela de madeira, enquanto uma rede cruzava o quarto em seu sentido longitudinal. Era pequenino, mas aconchegante: só havia espaço para um baú e um criado-mudo. Acima do pequeno móvel, via-se uma vela sobre um pires e alguns fósforos. Aparentemente não haviam avançado com as instalações elétricas naquele quarto, o que provavelmente justificaria o preço mais baixo, além da amizade que a dona do estabelecimento tinha com o Padre Miguel.

Os olhos de José de Lima brilhavam. Aquilo não era melhor do que o que ele tinha na Lagoa da Esperança, mas havia um significado próprio: a sua independência. Sim, a independência das ordens do padre, da política e das ambições por um mundo melhor. O rapaz só queria ter uma vida boa com Beatriz ao seu lado. Isso bastava. Entretanto, ele não contava apenas com a sua esposa. Logo após ele, Socorro de Deus adentrou o quarto com a moça. A senhora fez uma careta ao conferir o pequeno espaço, mas sabia que iria servir. Bia, por outro lado, enxergava aquilo como uma semente. Era muito grata por tudo que Padre Miguel lhe fizera, mas agora ela poderia começar uma vida nova. A vida que ela carregava no ventre também parecia se alegrar.

— Acho que dá pro gasto — José comentou de maneira quase infantil. Aproximou-se da cama e se sentou nela. — Eita! É das boas!

Bia sorriu. Cruzou a rede e sentou-se do outro lado da cama. Era estranho pensar que dormiria ali. Como seriam os sons noturnos? Ela deixara a cidade há muitos anos e não se lembrava mais. Teriam luzes à noite que atrapalhassem o sono? Barulhos? Já teriam pessoas dirigindo carros em Água Funda, ou esse luxo ficara reservado aos ricaços da capital? Tais perguntas lotavam a cabeça da garota, mas, ao olhar para Zé, outra questão lhe invadia os pensamentos: como contar sobre o filho?

Socorro, que era incapaz de ler mentes, testava a rede ali disposta. Era elástica e trazia conforto suficiente para a senhora, ainda que ela preferisse dormir na cama. De toda forma, não faria essa desfeita para com o casal.

— Acho que já temos nosso cantin pra dormir, né? — Socorro levantou a questão. Aos poucos, suas costas se habituavam àquela redinha simples.

— Este lugar é bom — Beatriz sorria com os olhos enquanto encarava o pé-direito alto do quarto. — Não é muito quente e tem espaço pra nós três. Era isso que a gente queria, né?

José de Lima, que recebeu o olhar da mulher que tanto amava, deu uma gargalhada e concordou. Sentia uma euforia única. Havia recebido o seu “sim” momentos atrás e agora se via debaixo de um teto com a pessoa que mais amava. No entanto, vez ou outra imagens do assentamento invadiam a sua imaginação. Que destino tivera o padre, Antônio, Diabo e todos os outros? O pobre João estaria vivo? Antes que o incômodo e a preocupação viessem, voltou a olhar para Beatriz e disse:

Cum toda a certeza, meu bem! — Ainda estava sentado na cama, mas sabia que em breve deveria se levantar. O trio havia conquistado uma vitória, mas ainda havia o que ser feito. A estalagem não se pagaria pra sempre com o dinheiro do padre, nem com o desconto da proprietária. — A gente tem que arranjar trabáio. Eu já com uns negócio na cabeça.

Mudando de postura, Socorro prestava atenção no rapaz. De maneira igual, a felicidade de Bia agora parecia um pouco mais contida. De fato, eles podiam ter saído da Lagoa da Esperança, lugar em que todos trabalhavam. O conforto da cidade, no entanto, também exigia seu próprio tipo de trabalho. Não tinham mais que alimentar animais – com exceção do bom Carlinhos, que descansava amarrado do lado de fora da estalagem –, fazer cafés da manhã ou caçar. Por outro lado, deveriam empregar suas outras habilidades para conseguir dinheiro, o que poderia ser desafiador. Por sorte, o trio estava bem disposto para isso.

— Eu vi que tem um hospitar aqui — a mais velha começou a apresentar opções. — Posso conseguir trabáio lá.

— Eu... — Bia estava pensativa. Era uma grande novidade para ela estar naquela posição. De certa forma, aceitaria qualquer trabalho, com exceção daquele a qual sua mãe era forçada a se dedicar. — Eu acho que posso achar uma casa pra ajeitar, arrumar e fazer essas coisa toda.

Zé reagiu com um largo sorriso, ao mesmo tempo em que balançava a cabeça de maneira afirmativa. Não se utilizava de palavras, mas dizia claramente “eu estou muito orgulhoso de você e quero passar o resto dos meus dias ao seu lado”. Apesar da falta da telepatia, Beatriz conseguiu ler bem essas palavras e sentiu um calor em seu coração. No entanto, o silêncio do momento se tornou incômodo. Faltava o homem da casa dizer o que ele faria, coisa que levou tempo para ser ouvida.

Após desmanchar o sorriso, José parecia pensativo. Ele entendia um pouco de animais, assim como de furtos e um pouquinho de lábia. “Político”, seria a palavra que viria em sua cabeça caso ele tivesse um pouco mais de instrução, o que não era o caso. No fim, ele acabou se sentindo perdido e inútil, mas sabia que não poderia ficar calado. “Honre as bolas que tem!”, pensou com vigor.

— O bar! — Falou alto, como se tentasse ofuscar os seus próprios pensamentos. — Deve ter algum trabalho lá.

Foi o melhor que podia dizer. No entanto, ficou feliz ao ver a alegria das duas mulheres ali presentes. Que sorte que não podiam ler seus pensamentos, algo pelo qual ele ficou extremamente agradecido.

— Então é isso — ele disse. — Com os trabáio, nóis consegue o dinheirinho pra viver bem.

— Sim — Bia concordou com os olhos brilhando de alegria.

— Que Deus nos alumine! — Socorro completou.

E, agora com a euforia dividia entre os três, eles sentiam que as coisas poderiam dar certo. “É apenas o começo”, a mente de José dizia. “O melhor ainda está por vir”. Olhando pela janela, o rapaz viu que o sol ainda estava lá no alto e era possível enxergar homens, mulheres e crianças andando pela cidade. Uma ideia simples surgiu em sua cabeça.

— Eu ia durmir, mas acho que é melhor adiantar as coisas — comentou com um ímpeto raro vindo dele. — Vou procurar os bares que tem aqui pra poder trabaiar. Socorro, cuida de Bia?

A moça fez uma careta, enquanto a senhora soltou uma risada. José então deu um beijo em Beatriz e pediu uma benção de Socorro. Com tudo dentro dos conformes, o homem do lar saiu do quarto para conhecer a cidade e buscar a sua fonte de renda. Milhares de dúvidas ainda habitavam sua cabeça, mas ele estava otimista.

No quarto, Socorro e Bia agora se entreolhavam. A alegria anterior havia dado espaço a um estranho momento de silêncio, dúvida e constrangimento. Maria Beatriz conseguia ler bem nos olhos da mulher mais velha uma certa carga de julgamento e pressão. E ela entendia bem o motivo: tinha que contar da gravidez.

— Isso já ficando irritante, Bia — Socorro se adiantou. — Acho que nem mesmo ocê se aguenta mais com isso.

— Eu quero contar. É só que... — E o silêncio veio. É, a garota realmente não sabia justificar toda aquela insegurança. Talvez tivesse uma justificativa dias atrás, mas ela sabia que José já havia dado indícios suficientes de que era um homem direito, ao menos dentro das possibilidades. — Vai ter o momento certo.

Aquela resposta enfureceu Socorro. A mulher não aguentava mais aquilo. Já acompanhava aquela novela há dias e não via qualquer progresso. Sempre as mesmas palavras, as mesmas desculpas. A repetição de um ciclo incontestavelmente barato e sem graça, ciclo esse ao qual uma garota jovem, inteligente e cheia de futuro se entregava. “Que menina idiota!”, Socorro pensou, mas sentiu compaixão. Entendia que mulheres grávidas podiam ficar estressadas ou afetadas pelo momento, mas também sabia que deveria agir. Talvez fosse o momento de usar palavras mais fortes. É, certamente estava na hora de colocar seus pensamentos na boca e fazê-los chegarem aos ouvidos da garota. Ás vezes, a compaixão poderia vir em forma de pancada.

— Sabe quando vai ser o momento certo?! — Socorro falava quase que aos gritos. Internamente, torcia para que ninguém invadisse o quarto por medo daquilo. — Quando tiver estirada no chão com sangue no peito! E José vai tremer e chorar porque num conseguiu salvar sua esposa! E aí vai contar pra ele do filho. E o homi enlouquece de vez! Esse é o momento certo?

— Mas Socorro... — Bia quis falar, mas seus lábios trêmulos e as lágrimas a impediram de dizer o que pensava.

— “Mas” nada! — A mulher mais velha estava com a mão trêmula, mas havia firmeza em seu olhar. — Pode ser que eu erre, ? Talvez o “momento certo” seja quando José de Lima tiver morrendo! Aí você vai querer contar que ele é pai, ? Acorde, menina!

E, após tais palavras, o silêncio retomou o controle do lugar. Beatriz não tentou retrucar: sabia que Socorro tinha razão. Não havia momento certo. Errado era adiar. E, entre lágrimas e tremeliques, começou a arrumar o quarto. Socorro optou por ver o que teria para o jantar. Queria que a garota tivesse tempo e solidão para refletir, além de desejar limpar a própria mente.

Não muito longe dali, havia quem também almejasse reorganizar o caos no qual a vida havia se transformado. Na igreja, Padre Miguel contava com mãos extras para arrumar o local: João Cego, Maria das Dores e Saulo. O trio havia chegado em Água Funda há pouco tempo e o religioso arranjara um espaço em sua minúscula casa. Não seria confortável, mas certamente era melhor do que viver ao relento. Além disso, eles estariam seguros ali, ao menos por enquanto.

Agora, todos buscavam ocupar a cabeça com qualquer coisa que fosse. O luto ainda estava presente em seus olhos e corações, mas eles lutavam para transformar aquilo em algo produtivo. Cheio de raiva, o pequeno Saulo espanava os bancos da igreja com mais vigor que o normal. Com o rosto ainda um pouco úmido das lágrimas, Maria focava sua atenção no altar, acompanhando os trabalhos do padre. João, por outro lado, parecia aéreo. Olhando para a imagem de Cristo crucificado, parecia pedir por respostas, mas elas não queriam vir. O peso da confissão ainda habitava sua consciência, mas ele também sabia que nada podia fazer para mudar aquilo. Só lhe restava seguir em frente.

— João — a voz do padre cortou os pensamentos do homem de um olho só. — Ajuda, por favor.

Miguel já havia deixado o altar e agora pedia auxílio para mudar a posição de alguns bancos e cadeiras. O velho logo se deu conta do fato de estar perdido em seus próprios pensamentos e correu para ajudar o religioso.

— O que é que vai mesmo, padre? — O tempo parecia passar de maneira estranha para João Cego, ao menos nas últimas semanas.

— A festa de São João — Miguel explicou. — Também servirá para arrecadarmos fundos para ajudar os mais necessitados.

Deu uma pausa e olhou para o pequeno grupo presente na igreja. “Nós”, foi a resposta que surgiu em sua mente, mas preferiu suprimir tal palavra.

— É — João se pronunciou. — É bom ajudar.

Prosseguiu com o trabalho braçal enquanto Saulo avançava para auxiliar Maria das Dores. O templo mantinha sua aparência singela, mas agora parecia ter ganho um pouco mais de espaço: com os bancos reposicionados, agora haveria a possibilidade de mais cadeiras serem colocadas nos espaços vazios, de forma que os fiéis não precisassem assistir a missa do lado de fora.

— Como eu posso ajudar mais, padre? — Maria das Dores via naquele evento uma oportunidade de ocupar sua mente ainda em luto.

— Bem, nós vamos precisar de comidas — o padre soltou um sorriso discreto. Ele já contava com as doações de outras famílias, mas era sempre bom ter algo a mais por precaução. Além disso, o religioso sabia que aquela ação traria alívio à moça. — Acha que consegue preparar alguns doces pra festa?

— Se a despensa tiver cheia, acredito que sim — ela concluiu com certa alegria na voz.

Bastaram mais alguns minutos para os trabalhos estarem concluídos. Olhando para o padre, Maria das Dores gesticulou que iria para a casa do homem. Saulo prontamente acompanhou a mulher, tendo em vista que ele poderia ser útil no preparo de qualquer coisa que fosse. Além disso, o garoto estava cada vez mais afeiçoado dela. Miguel sorriu e gesticulou para que fossem em paz. Ficou na igreja com João Cego, que voltava a encarar a imagem do Messias crucificado.

— A vida anda dura, não é? — O padre sentou-se ao lado do homem de um olho só.

— Eu fui mole, padre — João desabafou. — Eu... Eu...

Não conseguia extrair mais palavras do seu sofrimento. Elas simplesmente se embaralhavam, explodiam e dançavam naquele vale de lágrimas que se formava. Miguel prontamente colocou a mão no ombro do homem e, ainda que não dissesse uma palavra, comunicou “eu estarei sempre aqui, amigo”.

No entanto, o momento não perdurou. Sem nenhuma educação, Breno Farias adentrou a igreja causando um estrondo quando as portas se chocaram contra as paredes. Com o rosto vermelho, ele não se parecia nada com aquele político promissor e inovador que tantas pessoas admiravam. Na verdade, a cada dia tinha-se a impressão que ele parecia um novo Marcondes. Talvez fosse. Só Deus saberia dizer. Porém, naquele momento, a curiosidade foi o que assaltou o padre primeiro.

— Mas o que é isso? — Falou sem pensar muito no possível estrago causado nas tão singelas portas.

Calado, o político caminhou a pesados passos até finalmente se sentar ao lado do padre. Parecia ignorar por completo a presença de João Cego, enquanto o velho sentia uma aura estranha no momento. Breno, por outro lado, encarava o altar, mas era óbvio que seus lábios cerrados tinham muito para contar.

— Breno? — Miguel já estava achando aquilo estranho demais.

Ainda parado, Farias deu três longas respiradas antes de pronunciar suas primeiras palavras.

— Não adianta — disse com um misto de ódio e desânimo. — Nada adianta!

— Nada? Nada adianta o quê? — O padre queria saber, ao mesmo tempo em que João se fazia de cego, surdo e mudo. Talvez fosse melhor assim. — Seja explícito, homem!

— Nada do que a gente faz funciona, entendeu?! — De maneira explosiva, o político se virou para o padre e gesticulou de forma violenta. Dando mais uma respirada funda, refletiu sobre suas palavras e deu continuidade ao assunto de uma forma mais elucidativa. — Nossas ideias, nossos planos. Os papéis, o tiro, o poço, tudo! Absolutamente tudo! Não importa o que fazemos, parece que bastam uns dias pra fama do Marcondes voltar. E de mim? Eles não falam nada! Sou um ninguém, padre, um ninguém!

Sem aceitar aquele tom raivoso, o religioso resolveu revidar na mesma moeda.

— O que você esperava?! — Seus olhos agora pareciam soltar raios. Breno pôde sentir os pelos dos braços se arrepiarem. — Não adianta você ter tudo que tem na mão, se não aproveita o momento certo pra aparecer. Cadê os seus discursos? As doações, as ajudas? Eu não gosto disso, mas é como a política funciona, Breno: as pessoas esquecem e você deve lembrá-las a todo momento. A vergonha de hoje é esquecida amanhã, assim como a honra. Eles precisam ouvir a sua voz a todo momento, e sempre é necessário lembrá-lo dos erros de seu adversário. Era assim há milênios e sempre será. Será que você não aprendeu nada com seu pai, avô e bisavô?!

O político ficou calado. No entanto, seus lábios cerrados agora não pareciam querer dizer nada. Na verdade, eles pareciam intimidados, reduzidos a pó diante da dura verdade dita pelo padre. O que dizer? Como refutar? “É, o velho tem razão”, foram as palavras que ecoaram apenas na mente de Breno Farias.

— Parece que não — Miguel interpretou o silêncio como ignorância e ingenuidade. — Deixe que eu faça as regras então: conte-me o que realmente te traz aqui. Notícias, ideias ou qualquer outra coisa. Como deve saber, a Lagoa da Esperança já teve perdas em demasia. E você sempre perde quando eu também perco, Breno.

Ainda que se sentisse contrariado, o político resolveu não revidar. Ele sabia: estava carregado de muita raiva e frustração. Não poderia tomar decisões estúpidas, afinal de contas, a eleição estava há poucos meses de acontecer. Precisava ser frio, esperto e resiliente. É, talvez o padre tivesse algo a ensinar. “Vamos seguir o jogo dele”, pensou antes de começar a apresentar suas palavras.

— Notícia: soube que Marcondes está indo buscar Diabo para mantê-lo preso. Parece que o governador virá para a cidade em breve e mostrar o homem mais procurado da região atrás das grades será bom pro prefeito — Farias fazia várias negativas com a cabeça enquanto falava. Não acreditava que haviam perdido Diabo de maneira tão fácil e estúpida. — Mas eu tenho um plano, ou ao menos uma ideia.

— Fale — o religioso foi direto.

— Até agora, a gente só tentou atacar Marcondes Maia de maneira direta. Quer dizer, é óbvio que o homi sabe que fomos nós. Claramente isso não tem funcionado, padre. Mas e se ele começasse a desconfiar de seus aliados? E se colocássemos alguém como Gustavo Água-Santa contra ele?

“Interessante” foi a palavra que veio ao padre. Sim, aquilo tinha o seu sentido. Um ataque advindo de dentro poderia ser bem mais impactante que provações externas.

— Já pensou em como isso se dará? — Miguel queria ter maior segurança.

— Eu tenho uma ideia vaga. Conheço um bom homem para o serviço, mas se quiser acompanhar para ver como funciona, tudo bem — a face raivosa de Breno estava aos poucos se animando com as possibilidades que surgiam em sua imaginação. — Mas quanto a Diabo? Acha que ainda existe esperança pra ele?

— Olha, a coisa não estava muito boa da última vez que nos falamos — o padre lembrou com pesar. Porém, tinha boas ideias consigo: não ficaria inerte. — Mas acho que ainda posso dar bons motivos para trazê-lo para o nosso lado. E acho que já sei uma maneira de soltá-lo.

— Perfeito — o político respondeu. Naquele momento, um sorriso estampava o seu rosto. Dando um aperto de mão no padre, logo deixou a igreja trajando uma nova máscara: longe do ódio, parecia novamente um nome em ascensão. Era a esperança e a renovação em pessoa.

Por outro lado, Marcondes Maia também lutava pela sua imagem. Enfrentando o desconforto de uma carroça, o eterno calor do sertão e a companhia desagradável de dois homens, o prefeito se aproximava do acampamento dos cangaceiros. Era a vista de sempre: aridez, areia e ausência de vida. Conduzindo os cavalos, Valter mantinha-se impassível. Por outro lado, Augusto Nunes parecia nervoso. Ainda trazia a marca em seu rosto do último encontro que tivera com os bandidos. Não levara uma surra de verdade, mas ele se lembrava bem da sensação de medo e impotência. Seria horrível revê-los, mas não lhe restava outra escolha: era pago para isso.

Não tardou para que as construções dos cangaceiros aparecessem e, junto delas, os tantos olhos que acompanhavam a carroça. Levy Queimado logo tratou de ir em direção ao prefeito, enquanto Eduardo Peixeira observava mais distante.

— Que surpresa encontrar o sinhô por essas terra — Levy disse jocosamente. — Quer alguma bebida chique, majestade?

Não vendo graça naquela brincadeira, Marcondes logo tratou de descer da carroça e cumprimentar o cangaceiro. Apertou a mão do bandido com força e, logo em seguida, Valter e Augusto fizeram o mesmo. Ainda no tom de brincadeira, Levy os conduziu terreno a dentro. Seu hálito fedia a álcool e ele parecia mais feliz que o normal. Isso trazia ainda mais desconforto para Augusto, que não conseguia acompanhar tais emoções.

O grupo andou alguns metros e mais rostos logo trataram de aparecer: Amanda Macho olhava da janela do bar, enquanto Lucas Furado brincava de bola de gude com os filhos de Lúcio e Regina Arcanjo. A matriarca do local, Joana, logo tratou de aparecer quando ouviu as vozes estranhas adentrarem o lugar.

— Prefeito Maia — a mulher disse com um tom mais carinhoso e menos irônico que o de Levy. — Não sabia que o sinhor viria mesmo.

— Dona Joana — Marcondes abaixou a cabeça e estendeu as mãos como se pedisse por uma benção. — A honra é toda minha por estar aqui. E outra: num sô que nem esses políticos que prometem e nada fazem. Sou homi de palavra!

Levy deu um riso abafado, mas logo foi reprimido pelo olhar inquisidor de Joana. A mulher também cumprimentou Augusto, que manteve-se sério. Quanto a Valter, ela segurou as palavras: já conhecia o homem e tinha ciência de que ele sabia o que ela pensava dele. Valter entendeu o recado silencioso e simplesmente seguiu com o grupo sem dizer uma só palavra.

Não precisava, afinal de contas, todos ali sabiam: Valter já fora um cangaceiro. Já pertencera ao grupo em questão e já cometera crimes a mando de Marcondes Maia. Entretanto, as prioridades do homem mudaram e ele acabou deixando o bando. A cisão não foi violenta ou traumática, mas deixou alguns membros decepcionados. Joana Arcanjo era – sem dúvidas – um deles.

Seguiram com toda a educação que se espera de um bando de criminosos e seu mandante. Ao ver o delegado, Amanda Macho tratou de provocá-lo.

— Como anda essa testinha, doutô? — Fez uma careta para o homem.

Augusto lembrou-se de sua esposa e filhos e manteve-se quieto. “Não é hora de reagir”, repetia incontáveis vezes mentalmente. Marcondes achou graça daquilo, mas preferiu não tocar no assunto.

— Venham, tomem um cafezinho — Joana os conduziu até uma mesa larga e logo se viu pegando o café.

O trio de forasteiros sentou-se e aguardou. Marcondes não tinha ansiedade: já havia experimentado muito recentemente os péssimos resultados nascidos da pressa e da inconsequência. O prefeito sabia que teria o Diabo em suas mãos naquele dia, mas não tinha porque adiantar as coisas.

— Muito obrigado, dona Joana — disse ao ver sua xícara quase transbordar de café.

A velha repetiu a gentileza com Augusto e Valter, ainda que não nutrisse os melhores sentimentos pelo último. Depois sentou-se e tratou de encher a sua própria xícara. Sem colocar açúcar, logo deu alguns goles enquanto buscava um assunto para tratar com o prefeito.

Enquanto isso, Levy se afastava daquela reunião. Apesar dos efeitos do álcool, ainda tinha consciência de sua função ali. Passara bons momentos com Diabo, isto é, dera-lhe vários socos, pontapés e cusparadas nas últimas horas. Ficara triste por não poder matá-lo, mas sabia que – infelizmente – não era o chefe do bando. Deveria buscar o homem e entregá-lo ao prefeito. “Ele vai sofrer muito mais”, gostava de pensar. Isso, de certa forma, dava-lhe certo alívio.

Assim que adentrou o cubículo da tortura, pôde ver o seu inimigo levar as mãos aos olhos. A luz que rompia a escuridão o cegou por breves segundos, mas Diabo não precisava ver para saber de quem se tratava: Levy fedia a álcool, queimaduras e morte.

— Seu disgraçado infeliz! — Diabo não poupou palavras.

O homem de pele queimada respondeu a ofensa com mais um chute no homem ferido.

tem sorte! — Chutou-lhe mais uma vez. — Por mim, nóis tinha arrancado a sua cara fora! Agora vem logo!

E, tratando com a menor gentileza possível, Levy puxou o ex-cangaceiro amarrado enquanto ele tentava se debater de maneira inútil. Com as mãos e os pés atados, Diabo se locomovia de maneira que beirava o ridículo. Isso, por si só, só aumentava a fúria do homem, que nada podia fazer.

Não demorou para que o bom café de Joana Arcanjo fosse interrompido pela entrega da encomenda.

— Toma aí o seu homi — Levy disse com pouca delicadeza logo após abrir a porta.

Pela primeira vez de frente com Diabo, Marcondes Maia riu. Augusto manteve-se parado, enquanto Valter nutria uma certa pena pelo seu ex-aliado.

— Eu pensei que ele fosse maior — o prefeito comentou jocosamente.

Diabo revidou com um cuspe direto no rosto de Marcondes. O político enfureceu-se e acertou um soco no ex-cangaceiro.

— Ai, ai — Maia parecia irritado com o cuspe, mas feliz pela oportunidade de dar um soco em alguém sem ser julgado. — A cadeia te espera, Diabinho.

E, despedindo-se de Joana e dos outros cangaceiros, Marcondes Maia, Augusto Nunes, Valter e Diabo partiram de volta à Água Funda. Já na carroça, o prefeito comemorou:

— A reeleição agora é uma certeza!


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Notas finais do capítulo

Muito obrigado pela leitura!

Até breve :D



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