O Diabo do Sertão escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 12
Cisão


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura :)



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O homem de rosto queimado sorria com os olhos: encarava aquela bela espingarda e se imaginava usando-a contra seus inimigos. Estava em um ambiente mal cuidado: uma salinha empoeirada com teias de aranha nos cantos, contando com uma pequena mesinha sem graça no centro e algumas cadeiras espalhadas. Em cima da mesa, apenas três objetos: a já citada espingarda, verdadeira amante do cangaceiro; um lampião metálico que permitia que o homem enxergasse alguma coisa naquele lugar escuro; por último, um pano velho que o auxiliava na limpeza.

Não importava a pobreza do lugar: Levy se alegrava em fazer aquilo. Tratava aquele instrumento de morte como se fosse um filho, ou talvez uma esposa. Era uma relação complexa, mas existia amor ali. Passou o pano na coronha, depois na parte externa do cano e, por último, no gatilho, guardou o instrumento de limpeza no bolso e voltou sua atenção para a nova aparência que a arma ganhara. Não brilhava, mas não parecia tão velha como momentos atrás. Olhou pelo cano e aprovou o que viu.

— Levy! — Uma voz vinda do lado de fora o chamou.

Saindo de seu estado de felicidade, Levy Queimado pensou em responder com algum impropério, mas manteve-se calado. Olhou mais uma vez para a espingarda e para as balas que carregava. Aquele seria um grande dia e mal podia por esperar para ver sua munição ser descarregada em cima de algum safado daquela tal da Lagoa da Esperança. João Cego havia contado tudo, e agora os cangaceiros estavam a minutos de partir para o local para buscarem Diabo e, quem sabe, conseguirem algo mais.

— Levy! — A voz se ergueu novamente.

Bufando de raiva, o homem levantou-se da cadeira, pegou a espingarda e colocou-a nas costas utilizando a alça de couro ligada ao armamento. Guardou o restante da munição nos suportes que existiam na própria alça e, caminhando a passos duros, abriu a porta e permitiu que a luz entrasse naquele lugar imundo.

num vem? — Era Eduardo Peixeira que estava do lado de fora. — Só falta você.

Sem dizer uma só palavra, Levy seguiu o companheiro enquanto atravessavam o acampamento. Era tradição: antes de qualquer tarefa fora dali, o grupo se reunia para virar alguns copos de cana e se preparar psicologicamente para o que estava por vir. Isso geralmente se dava com piadas, altas doses de álcool e jogos como dominó, gamão e pife.

Não tardou para a dupla adentrar a construção maior do terreno pertencente ao grupo: diferentemente da anterior, Levy se viu num lugar limpo, espaçoso e com janelas o suficiente para que o sol entrasse em abundância. Ali dentro, mesas se espalhavam e havia um pequeno balcão de madeira com algumas bebidas baratas, além de tabuleiros e outros jogos espalhados em uma estante.

— O homi finalmente chegou — Amanda Macho ergueu a voz enquanto tomava mais um gole daquela cana quente e forte. Estava sentada a mesa ao lado de Lucas Furado e Joana Arcanjo. — Se achegue mais!

Levy permitiu-se rir enquanto Eduardo lhe dava um tapinha nas costas. O homem de pele queimada logo se sentou e gesticulou para que lhe dessem um copo. Peixeira seguiu o exemplo. Afastado deles, Lúcio parecia dar explicações para os três filhos, ao mesmo tempo em que Regina aparentava reprovar aquelas histórias.

— A gente vai levar esse homi mau de volta ao lugar dele — Arcanjo referia-se a João Cego, que permanecia preso após as torturas. — Não tardar pra voltar não.

Caio, o filho mais velho, fez uma expressão de preocupação. Já as mais jovens Carmen e Carla, simplesmente seguiram adiante e foram brincar de “polícia e cangaceira”. Seguiam com suas arminhas de brinquedo acreditando que não havia nenhum perigo no trabalho do pai. Regina, que ficou apenas observando, havia desistido de argumentar: passara as últimas horas tentando convencer o marido a soltar o pobre homem caolho, mas nada adiantou. Contentava-se agora em apenas fazer seus filhos acreditarem que havia alguma segurança no mundo.

— Lúcio! — A voz forte de Levy o chamou. — Vem, vem, vem! É a última virada!

Deixando escapar um riso eufórico, o filho de Joana Arcanjo foi até o resto do grupo e pegou um copo velho e mal lavado, encheu-o de cana e, erguendo-o, bateu nos outros copos antes de finalmente colocar toda aquela bebida dentro do próprio corpo. Sentiu um ardor correr e dançar pela sua língua, seguir velozmente pela garganta, rasgando-o por dentro ao mesmo tempo em que deixava uma sensação de frescor. Depois, seguiu para regiões mais profundas do seu corpo e se misturou com líquidos e ácidos advindos de sua própria condição de humanidade. E, após um instante de agonia, sentiu um impulso para a ação e a extroversão.

— É hoje! — Exclamou com animação e ouviu todo o grupo gritar em retorno.

— Você terá sua vingança, Levy — Joana Arcanjo falou com estranho carinho, antes de tocar gentilmente no rosto do cangaceiro queimado.

E, com um sorriso meio forçado, Lúcio ergueu seu revólver e seus aliados fizeram o mesmo. Levy, por outro lado, levantou a sua espingarda: estava ansioso para usá-la no covarde do Diabo.

O grupo então lentamente deixou aquele bar improvisado. De encontro com o potente sol do sertão, olhavam para os cavalos dispostos a Norte dali: seriam o transporte perfeito para Lagoa da Esperança, afinal de contas, o lugar não era tão distante.

— Lúcio, Levy, Amanda, Lucas e Eduardo: vão cum Deus, meus fi — Joana Arcanjo disse com uma voz que trazia uma mistura enigmática de cuidado e ambição. Ela, talvez mais que Levy Queimado, almejava a vingança contra aquele (ou aqueles) que havia feito tão mal ao seu grupo, ou simplesmente a um dos seus. — Lembrem de Hugo. É por ele que nós tamo fazendo isso.

O quinteto aceitou aquela benção e as recomendações que vinham juntas de maneira implícita. No entanto, antes de pegarem os cavalos, os cangaceiros deveriam levar um sexto elemento humano: João Cego. Ainda confinado naquele quadrado feito de madeira, palha e sangue, o homem não imaginava o que o aguardava além das torturas recentes. Sabendo que ele seria tirado dali, Lúcio logo tratou de afastar os olhos de sua família.

— Acho melhor você levar as crianças pra dentro — disse para sua esposa. — Num vai ser bonito não.

E, ainda que contasse com certo desgosto, Regina Arcanjo deu um leve beijo no marido antes de conduzir seus filhos para dentro da casa. Lúcio então olhou mais uma vez para o seu grupo, que aguardava ansiosamente a liberdade para agir violentamente. Eduardo seguiu até aquela casinha sofrida. Iriam levar João Cego de volta para o seu lar, mas não seria da forma mais confortável ou humana.

No ponto de destino dos cangaceiros, a anormalidade havia se instalado. Havia um silêncio, mas não era um silêncio de paz. Muito pelo contrário, aquele era o silêncio fúnebre, ou talvez o silêncio da dúvida, ou quem sabe tudo isso junto. Não se sentia o bom cheiro das comidas preparadas por Socorro, ou mesmo o barulho das crianças brincando, nem as velhas piadas de José de Lima ou as brigas com Beatriz. O padre também não rezava em voz alta, nem João cantarolava aleatoriamente. Só havia o vazio da expectativa e do medo.

Com a barriga quase vazia, as pessoas olhavam para o horizonte como se esperassem ou o Apocalipse, ou a chegada do Senhor. O relógio de bolso de Padre Miguel parecia se mover mais lentamente que o normal, como se até o tempo conspirasse contra a boa vontade dos membros da Lagoa da Esperança. O único que talvez entendesse mais ou menos o que acontecia era Diabo. Próximo da cruz central do assentamento, o ex-cangaceiro estava sentado, usava um chapéu negro e tinha sua mão posicionada sobre o cabo do revólver posto em seu coldre. Era uma arma de verdade, com balas de verdade e capaz de causar mortes de verdade. Bastava isso para ele sentir algum conforto.

— Eu quero ajudar — uma voz jovem adentrou os ouvidos do homem.

Movendo os olhos com pouco interesse, Diabo viu que se tratava de Saulo, o menino órfão que vivia atazanando a filha de Paulo e Judite.

— Eu pensei que você tinha ido embora com aquela família — comentou com sinceridade, mas mantinha os olhos no horizonte seco.

— Eu pensei nisso, mas... — pensou melhor nas palavras e viu que apenas sabia que não sabia. Sentou-se ao lado do ex-cangaceiro e sentiu-se livre para desabafar. — Eu sou órfão. Paulo não era meu pai e Judite não era minha mãe. Fui acolhido aqui e é aqui que ficar. Tudo bem?

faz o que quiser, moleque. Eu aqui só pra me vingar de um vagabundo.

— Quem?

Diabo pensou. Não gostava de lembrar daquela história: fazia-o se lembrar de si mesmo, e isso era doloroso demais. Doía mais do que levar uma tiro nas costas ou uma facada, e essas eram experiências que ele já conhecia muito bem.

— Um tal de Levy — resolveu dizer apenas o nome, mas se poupou de lembrar os detalhes. — Mim sacaneou um tempo desses.

— Eu posso te ajudar — Saulo fingiu ter alguma coragem. Talvez fosse apenas estupidez juvenil, teoria essa que Diabo acreditou plenamente. — Mas Antônio não quer me dar uma arma.

— Moleque — o ex-cangaceiro conseguia se ver naquele ímpeto e coragem estúpida. Talvez fosse ele mesmo anos atrás, quando o cangaço era um meio de vida, não um obstáculo. Quem dera tivesse alguém para lhe dizer que era melhor simplesmente fugir e viver uma vida qualquer trabalhando em um lugar qualquer. — Fuja. Saia daqui. num vai gostar de ver sangue.

— Eu já vi sangue e num tenho medo — o garoto levantou o braço e mostrou uma cicatriz mínima pouco depois do cotovelo.

— Que foi isso? Se furou num cacto?

Diabo soltou uma risada, ao mesmo tempo em que Saulo sentiu uma certa vergonha por saber que o homem cheio de cicatrizes maiores e mais feias estava totalmente certo. Recolhendo o braço, o garoto bufou com certa irritação.

— O que o sinhô sugere que eu faça? — Perguntou ao ex-cangaceiro com sinceridade.

— Bem, sair daqui a essa hora vai fazer você morrer nesse sol — Diabo pensou com cautela. — Se ajunte com Maria das Dores. A mulher parece boa e vai te ajudar. Eu acho, né.

Com um olhar de tristeza, Saulo se levantou lentamente e virou seus olhos para Maria, que estava sentada encarando o horizonte como todos os outros.

— Tá bom — ele falou em um tom um pouco mais animado. — Obrigado, sinhô Diabo.

O homem quis rir enquanto via o garoto se afastar. Era um momento estranho: tudo parecia dar errado, mas aquela breve conversa lhe trouxe algumas memórias de um tempo em que a vida parecia ser algo mais do que matar ou morrer. “Bons tempos”, sua cabeça lhe disse, ainda que sua alma soubesse que não eram exatamente “bons”. Eram apenas tempos ignorantes, tempos em que ele pensava ser feliz, ainda que não fosse. “Era apenas um jovem que não sabia de nada”, concluiu.

A alguns metros dali, no entanto, Antônio enfrentava uma verdadeira onda de tristeza e decepção. Sentado ao lado de Padre Miguel, o velho refletia sobre suas últimas ações e as consequências daquilo.

— Durante toda a minha vida, eu passei por situações terríveis. Fui escravo, vi a abolição e ainda consegui ter tempo para juntar alguns bens. Também fui traído, mas me vi no dever de ajudar terceiros. Juntei-me a você e juntos vimos esse lugar crescer. Ele sempre foi pequeno? Sim. Mas grande corações passaram aqui, e agora sinto que coloquei tudo a perder. Sinto que fiz com que todos nós nos despedaçássemos — o homem de pele escura dizia ao barbado.

— Você não sabe o que virá a seguir. Pode ser que tudo saia da melhor forma possível e que, ao fim do dia, José, Socorro e todos os outros voltem. Talvez mais pessoas venham e possamos viver com calma e felicidade — o religioso tentava enganar a si mesmo.

— Por favor, Miguel — Antônio mostrou-se irritado pela primeira vez em tempos. — Somos dois velhos numa terra mais velha ainda. Sabemos como as coisas funcionam. Estamos presos entre dois planos, um de ação e outro de consequência. O que fazemos num acaba sendo refletido no outro. Tomamos péssimas ações e isso nos trouxe até aqui. Sei que é horrível encarar os fatos, mas é muito improvável que o dia de hoje passe sem mortes. Isso eu já aceitei.

— Não! — Miguel rejeitou com força. — Nós temos um projeto! Não podemos nos esquecer disso. Tudo que fiz até agora foi por esse povo, foi pelo bem maior! O poço, os acordos com Breno, tudo! Eu não vou abandoná-los num desafio desses. É por eles que fazemos isso! É pelo sertão inteiro!

— Você não faz isso por eles — o velho falou com convicção, o que causou choque no padre. — Faz isso por você mesmo, pois insiste em provar como você se importa mais com os outros do que consigo próprio. É vaidade, padre. Eu também tenho a minha, mas cansei disso.

E, saindo dali cabisbaixo, Antônio deixou um Padre Miguel sem resposta para trás. Acompanhando tudo de longe, Maria das Dores estava sentada ao lado do pequeno Saulo, e tudo que pensava era sobre como a Lagoa da Esperança poderia voltar a ser o que era. No entanto, seus pensamentos minimamente felizes logo foram interrompidos pela imagem que surgiu no horizonte.

Com os pés cheios de feridas e a pele rachada em decorrência do sol, um quase desnudo João Cego caminhava em grande sofrimento. Cortes cobriam todo seu corpo, e sua única vestimenta era a calça velha que sempre usava. No seu rosto, até mesmo seu olho de vidro parecia denunciar a tristeza que o momento vivido lhe causara: não era apenas dor física; o homem havia sido mentalmente quebrado.

Quase parando de andar em decorrência da dor, o velho sentiu o cano letal da espingarda de Levy tocar-lhe as costas.

— Anda, peste — o cangaceiro ordenou.

E, ainda que dor se acentuasse a cada passo, João seguiu as ordens para tentar preservar sua vida. Até que ele finalmente viu o assentamento.

— Padre — disse com uma voz fraca, quase muda, a ponto dos cangaceiros nem se incomodarem.

Do outro lado, os últimos moradores da Lagoa da Esperança já estavam cientes da ameaça. Olhando quase que para o sol, viam seis silhuetas distintas: cinco á cavalo e uma que caminhava lentamente. Diabo já havia destravado o seu revólver, enquanto Padre Miguel dividia o seu olhar entre os poucos inocentes que ainda viviam por lá e os algozes que se aproximavam.

Não tardou para as silhuetas sombrias darem lugar a rostos e feições bem definidas. Via-se Lúcio Arcanjo com sua típica expressão que misturava uma raiva forçada com uma dúvida que sempre se mostrava em seu olhar. Ali também estavam Amanda, Eduardo e Lucas, o trio que sempre fazia o que o chefe ordenava. E também Levy, homem conhecido pela sua agressividade. Talvez um segundo diabo, afinal. No entanto, foi João Cego quem atraiu a maior parte dos olhares: em um estado deplorável, o bom velho conhecido pela sua força aparentava estar mais fraco e indefeso que uma criança recém-nascida.

— O que eu fiz? — Antônio deixou escapar, ainda que ninguém tenha ouvido.

De pé, Diabo apontava o revólver firmemente na direção de Levy. No entanto, ele sabia que estava em desvantagem: seus ex-companheiros estavam em maior número, além de todos estarem armados. Não havia chance de lutar daquela forma, não em um campo aberto.

— Calma, Diabo — Lúcio foi o primeiro a falar logo que viu o homem.

Ao seu lado, Levy estava agitado, mas se segurava para não cometer nenhum descontrole. João permanecia ali – na frente de todos –, enquanto ansiava pelo momento em que seria liberto para voltar à sua família.

— Nós viemos em paz — o líder dos cangaceiros disse sem muita emoção.

Olhando tudo com nervosismo, Padre Miguel sentia seus lábios tremerem. Via-se também esfregando as mãos umas nas outras, assim como sua perna direita quase criando vida e saltando descontroladamente. Respirou. Precisava de calma para fazer funcionar qualquer palavra que fosse proferir.

— Nós não queremos guerra — o religioso falou.

Ouvindo aquilo, os cinco cangaceiros caíram na gargalhada. Era simplesmente cômico ver um homem desarmado falar como se estivesse em posição de negociar. Tudo que viam era apenas um excelente atirador com uma arma, nada mais. Isso poderia até pôr medo a alguns, mas eles sabiam que estavam no mundo real: Diabo não era nenhum herói das histórias de cordel.

— Só queremos duas coisas: uma delas é Diabo — Lúcio explicou sem muita cerimônia.

Nesse momento, o ex-cangaceiro imaginou-se disparando cada uma das balas que tinha contra seus ex-companheiros, ainda que alimentasse ódio apenas contra um deles: Levy. No entanto, olhando rapidamente ao seu redor, viu Maria das Dores e Saulo. O garoto, que antes vestia uma armadura de coragem e insensatez, agora quase se encolhia atrás da mulher, demonstrando todo o medo e a imaturidade de uma criança. Não. Diabo não queria recriar aquela cena que ele tantas vezes viveu: um quadro de sangue, morte e uma criança ou jovem no meio disso tudo. Ele mesmo se enxergava ali.

E, ainda que o ódio queimasse como fogueira em seu coração, o homem com a face cheio de cicatrizes abaixou a arma lentamente, deu um último olhar para Saulo e gesticulou para que o garoto deixasse aquele lugar para sempre. Seus olhos então passaram por Padre Miguel e Antônio, mas a única coisa que transmitiram foi desprezo pelos dois líderes do assentamento.

— Que seja — disse com grande raiva em sua voz, logo antes de jogar o revólver na areia quente do sertão.

Eduardo e Amanda se entreolharam com estranheza, enquanto Lucas indagou:

— Mas já?

Os questionamentos vinham dos dois lados: Padre Miguel também imaginava um desenrolar diferente. Pensou em levantar a voz e dizer qualquer coisa que fosse, mas o medo logo se apossou de seu corpo enquanto via Diabo voltar para seu antigo grupo.

— Eu pensei que ia tentar se defender, Diabo — Levy falou de forma jocosa, quase sem segurar o riso. — Tava esperando o tiroteio começar. Você me decepciona.

Diabo rosnou, mas sentiu alívio ao ver o pobre João Cego retornar lentamente ao assentamento. Antônio e Miguel rapidamente trataram de acolher o homem coberto de ferimentos que logo se transformariam em cicatrizes.

— Está feito — o padre disse com gravidade. — Deem logo o fora daqui.

— Não — foi Levy quem falou dessa vez, ao mesmo tempo em que Eduardo amarrava as mãos de Diabo. — Lúcio foi claro: nóis queremo duas coisas.

— Uma foi Diabo. Vocês nos deram e nós devolvemos o Cego. Mas tem outro negócio ainda — Arcanjo retomou.

— O quê? — Antônio questionou, quase como se pressentisse o mal que estava por vir.

Lúcio parou por um instante. Do alto de seu cavalo, olhou para Levy, Amanda, Eduardo e Lucas. Ele não queria fazer aquilo, mas logo tratou de se lembrar do que João Cego havia feito dias atrás: o velho tirara a vida de Hugo Sangrento, membro adorado do grupo. Não, isso não podia sair de graça. O que diriam de seu bando? A dívida precisava ser paga.

— É o seguinte — o cangaceiro líder tornou a falar. — Cês tiraram a vida de um dos nossos. Não posso deixar por isso.

Ao ouvir isso, João Cego arregalou os olhos. Lembrou-se de como acertou aquele cangaceiro no pescoço e se amaldiçoou por isso. “Estaríamos livres dessa desgraça se não fosse por aquele ataque”, pensou com pesar. Sentia também uma tremenda culpa: havia entregue o seu grupo e agora era tarde demais. Ao seu lado, Miguel jazia congelado. Não sabia o que dizer ou fazer. Já estava ficando farto daquilo: aquele dia estava lhe roubando todas as palavras e a sua capacidade argumentativa. Tudo que fazia era ouvir, sentir e sofrer. Que destino terrível! No entanto, Antônio já estava anestesiado pela culpa e pela experiência. E, em meio a uma proposta horrenda, encontrou uma chance de redenção.

— Que eu pague o preço — disse sem pestanejar, atraindo os olhares de todos.

Afastados da confusão, Maria e Saulo tiveram que fazer força para que seus queixos não caíssem. Miguel olhou seu companheiro de lado e sentiu um grande pesar em seu peito. Já amarrado, Diabo sentiu que o homem ainda tinha um pingo de honra, ainda que isso não fosse exatamente a sua especialidade. E João? O pobre velho se afogava em culpa.

— O véi tem colhão — Amanda comentou com uma ponta de admiração na voz.

Antônio deu um passo a frente, até que sentiu o peso da mão do padre sobre seu ombro.

— Você não pode fazer isso — o religioso afirmou.

— Se eu não fizer, quem fará? — O ex-escravo questionou. — Você?

“Não” era a resposta verdadeira, e Miguel sabia disso, por mais que não quisesse admitir. Optou por responder com o silêncio, e viu seu bom amigo caminhar em direção da morte com serenidade. Lúcio encarou o homem e sentiu uma espécie de freio moral tomar conta de si. Era apenas um velho e dar um tiro nele ali – daquela maneira – parecia simplesmente errado.

— Lúcio? — A voz de Levy interrompeu os pensamentos do homem. O cangaceiro de pele queimada erguia sua espingarda e dava um discreto, mas maldoso sorriso. — Posso dar as honras?

Arcanjo olhou mais uma vez para Antônio. O velho respondeu o olhar com tranquilidade, ao mesmo tempo em que seus aliados sofriam em silêncio.

— Pode — o líder dos cangaceiros finalmente respondeu. — Mas use a minha. O véi merece um enterro digno.

Retirando o revólver do coldre, entregou-o a Levy. O queimado ficou um pouco desapontado por não puder usar a espingarda que limpara momentos atrás, mas ficou satisfeito em poder matar um daqueles desgraçados da Lagoa da Esperança. Apontando a arma para o peito de Antônio, Levy disse uma última frase antes de disparar:

— Por Hugo Sangrento!

Estava feito. Sem grandes batalhas, a dívida foi paga. O corpo de Antônio rapidamente desabou e o sangue começou a se espalhar por suas roupas. Sentindo dor, o homem começou a chamar por sua mãe pouco antes de um brilho se apossar de seus olhos. Miguel rapidamente se aproximou para acudi-lo, mas não tardou para a vida deixar aquele corpo velho e sofrido.

Ainda em estado de choque, o padre levantou o olhar e viu os cangaceiros encarando aquilo de diferentes formas. Levy contava com uma espécie de sorriso vingativo, enquanto Lúcio parecia querer esconder seus verdadeiros sentimentos. Os outros variavam entre a felicidade e a solenidade do momento. Diabo cultivava o ódio de sempre.

— Nós teremos nossa vingança, Diabo! — Miguel falou em voz alta, gerando ainda mais risadas por parte dos cangaceiros. — Eu prometo!

E, vendo aquele bando de assassinos sumir no horizonte, o padre encarou o corpo de seu bom amigo mais uma vez. Olhou para trás e viu João Cego em prantos, assim como Maria das Dores e Saulo. A lagoa não tinha mais esperança alguma.


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Notas finais do capítulo

Muito obrigado pela leitura! O que achou do capítulo? Quais as expectativas para o futuro?

Até logo :D



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