O Lobo-homem e o Feiticeiro Mestiço escrita por Melvin


Capítulo 3
Mordida de lobo.




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A pior parte de ter um coelho fresco era livrar-se dos pelos que ficam na boca, mesclado ao sangue e na carne. Era terrível salivar e tentar se livrar dos tufos que às vezes me faziam espirrar ou engasgar. Mas eu tinha tido sorte, depois de andar na floresta, encontrei o animal pego em uma armadilha, ainda vivo, e foi fácil.

Quando terminei, continuei deitado perto da armadilha, limpando o vermelho das minhas patas e procurando qualquer resquício de carne que eu tivesse deixado cair sobre as folhas caídas do bosque. De repente, meus pelos se eriçaram, um sentimento tenso me tomou e fiquei de pé com as orelhas erguidas para entender o que estava acontecendo. Pressenti uma movimentação rápida em meio às arvores e corri atrás. Era final de tarde, logo o sol ia se por e floresta ficaria completamente escura, segui meu instinto e os meus sentidos. Havia cinco lobos correndo na mesma direção, cada vez mais para o meio da mata.

De súbitos, vi um clarão entre as arvores a frente, seguido de um ganido de dor e alguns rosnados mais irritados. Tive que acelerar a corrida e alcancei um lobo próximo, me joguei para acima dele, o derrubando, depois o mordi, conseguindo perfurar uma de suas patas até sentir o osso duro. O larguei e continuei atrás do próximo. Eu sentia o cheiro de sangue mestiço, um humano mestiço com lobo. Mais clarões e palavras vinham de logo a mais a frente, e quando cheguei ao local do caos, vi Luahn e me perguntei o que ele estava fazendo ali. Ele girava seu cajado, lançando raios para os lobos que o cercavam, seu olhar passou em todos, inclusive contra o meu, mas não me reconheceu,  estava assustado e ao mesmo tempo determinado a sobreviver.

Fui surpreendido quando um lobo agarrou meu cangote, tentei alcança-lo com os dentes, enquanto os outros inimigos percebiam que algo estava errado entre nós, da mesma espécie e lutando. Aquele que me mordia havia visto meu ataque, lutei contra ele até ser jogado de costas no chão e o empurrei com as patas traseiras. Quando ele saltou para cima de mim novamente, peguei sua garganta e com um chacoalhar quebrei a traqueia. Fiquei de pé novamente e fui para próximo do mestiço feiticeiro, conseguindo me esquivar e morder algumas patas e colunas, parecia que minha mordida estava suficientemente mais forte que a mordida de um lobo comum.

Subitamente, meu corpo foi acertado por um raio, tudo ficou dormente e cai no chão, igual a alguns dos inimigos. O garoto tinha me pego por trás, me pareceu muito errado já que eu estava tentando ajuda-lo, apenas o encarei até o efeito passar. Para me deixar menos irritado com ele, o feiticeiro acertou um dos lobos que veio para cima de mim quando eu estava naquela situação parada. Assim que consegui mover as patas, fui me pondo de pé cambaleante, e até mordi uma pata de um lobo distraído que achou que eu não fosse ameaça.

O garoto foi derrubado quando um lobo preto puxou suas vestes longas e o manteve no chão ao arrastá-lo. Dois dos três outros lobos restantes se aproximaram tentando mordisca-lo, mas o garoto os acertava com o cajado, sem conseguir se concentrar num dos feitiços. Um dos animais pegou seu pé, o que o fez gritar e um o cheiro de sangue fresco surgir no ar.

Apesar da sensação anestesiada em meu corpo, corri até eles e saltei para cima daquele que arrastava o garoto, o fazendo solta-lo. O lobo negro era mais forte que os outros, pois conseguia resistir as minhas mordidas, e em um momento pegou minha garganta, travando a mordida ali. Aos poucos e ainda lutando, eu ia perder o folego, minhas unhas mal conseguiram um resultado ao arranhá-lo. Pelo canto do olho, vi o aprendiz de feiticeiro eletrocutar aquele que o mordia no pé, depois ficou de pé, mantendo os outros caninos afastados, e ele olhou para mim, se concentrou e bateu a ponta de seu veiculo de magia no chão, gerando uma onda forte o suficiente para desmaiar todos os lobos, o que me incluía e desmaiei.

 ...

Comecei a retomar a consciência minutos depois, sentindo um cheiro forte de sangue, suor, folhas podres sendo reviradas e terra húmida. Minhas pernas estavam esticadas e... sendo puxadas. Eu estava sendo arrastado! Quando lembrei que estava no meio de uma luta com lobos, chutei qualquer coisa e me pus de pé sozinho. Olhei o aprendiz de feiticeiro e depois olhei em volta, não vi nenhum outro inimigo, ainda estávamos na floresta e não parecia ter lobos nos seguindo. Voltei a encarar o garoto. Ele podia fugir de mim como fez o primeiro humano que me viu na forma lupina, mas não o fez.

— Ei, amigão — disse querendo ser amigável, mas eu via o cajado em mãos, pronto para se defender. Ele tinha alguns arranhados e sangue espalhado nas roupas — acabou. Está tudo bem, mas precisamos sair da floresta.

Dei alguns passos na direção dele, farejando algum ponto em que ele estivesse sangrando demais, não achei muita coisa além do calcanhar, e, sem uma razão, Luahn estendeu a mão em minha direção, alcançando minha testa. Não era essa minha intenção, mas seu afago até minhas orelhas tinha carinho, como quando o humano encontra um cão, e eu entendi porque os cachorros gostam, dava uma sensação confortável e de confiança, era estranho. De repente, o folgado ergueu meu queixo com sua mão, me fazendo encará-lo, não estava mais com o cajado pronto para me enxotar caso resolvesse morde-lo em um bote. Ele sorriu.

— É você! — Recuei. Odeio feiticeiros, essas capacidades de pressentir o que os rodeia, me deixava exposto, e eu não gostava disso. — O cara sem nome.

O encarei até ouvir um uivo distante que o humano provavelmente não ouviu, então passei por ele e segui para longe da floresta. Acho que ele entendeu porque veio logo em seguida.

Na orla, citei mentalmente ‘lobo-homem’ e me virei para o garoto em silencio.

— Incrível! — disse ele com cara de espanto.

— Nem tanto. Temos que nos afastar daqui, mais lobos virão depois do que aconteceu.

— Ah, sim! Tem razão! — e ele seguiu andando de volta ao vilarejo, mancando de leve e indo na minha frente.

— Porque você estava na floresta? — perguntei.

— Pegando umas plantas. Nada demais, foi pedido do mestre. Mas acho que nem ele esperaria que uma horda de lobos descesse as montanhas e estariam no vale. Mas eu devia ter percebido. Assim que cheguei, Flora contou que um garoto quase foi morto por um lobo hoje cedo, perto do rio. Era um sinal de que nem tudo estava em paz. — Lembrei-me rapidamente do primeiro garoto que encontrei, mas nem fiz nada para ele acreditar que ia mata-lo para gerar aquela historia. — Alias, me desculpa, eu acho que acertei você uma vez. — ele me olhou. — Eu estava assustado e ainda não tinha entendido completamente que você estava no meu lado. Sabe, parecia que cada lobo queria encher o estomago com um pedaço de mim.

— Eles queriam mata-lo, não comê-lo.

— Hm. Também não seria bom, não é?

Não respondi e por um tempo ele ficou em silencio. Logo, pude começar a ouvir o som de água. Estranhei, até ter certeza de que estávamos indo em direção a um rio.

— Não me olhe assim — disse ele ao parar na margem. — Precisamos de um banho, estamos sujos de sangue, saliva, terra e suor... Além disso aposto que vai ajudar a despistar esses animais.

Um leve arrepio de raiva pela palavra animal me atingiu. Lobos não são animais, são lobos e ponto.

O rapaz livrou-se da capa cor de avelã e deixou seu cajado sobre o tecido, tirou as botas e a túnica e seguiu para água enquanto a noite começava a se instalar. Joguei as mãos ao solo querendo meu corpo de lobo e na nova forma caminhei para a água até o raso, onde me deitei encoberto e dei algumas chacoalhadas e mergulhadas para ficar mais limpo. O garoto riu, esfregando-se e limpando-se, depois veio em minha direção, não me deu tempo de me afastar, o peso da água também me deixou lento, ele esfregou o pelo de meu pescoço, onde o lobo negro conseguiu deixar alguns ferimentos e meu sangue escorrido estava secando. Pouco depois disso saí da água em um pulo e na margem chacoalhei o pelo e o corpo. O humano ainda ficou brincando na água por mais alguns minutos até sair, usar sua camisa para secar-se, vestir sua capa e seguir para o vilarejo, o que me fez assumir a forma humana para segui-lo.

— Você realmente não tem nome? — perguntou quando já andávamos em meios às casas. Balancei com a cabeça, negando, e não tinha a menor ideia de para aonde ele estava indo, mas como minha missão era estar perto, estava sendo feito. — Certo. Sabe, para ser sincero, eu sabia que você estava me seguindo quase o dia todo — o encarei, surpreso, e ele sorriu de leve. — Desde que toquei as suas runas, eu sabia quando você estava próximo, querendo ou não. Talvez por isso eu tenha corrido mais para dentro da floresta, eu sabia que você estava lá e só queria alguma ajuda naquele lugar vazio. Só não esperava que você fosse um lobão cinzento e cruel... Eu vi como você pegou aquelas gargantas, é assustador! Mas não me atacou e está me obedecendo, é um bom sinal.

— O quê? — estranhei.

— Calma, amigão. Só estou dizendo que você está a um passo atrás de mim — e apontou para o chão, infelizmente era verdade — um sinal de submissão, e que não precisei de nada para que viesse comigo ou tomasse um banho, nem petiscos e nem feitiços, nem mesmo te expliquei para onde vamos e você continua aqui... Contudo, eu tenho uma sensação que você não gosta completamente de mim — era verdade, pura verdade — mas está comigo. E eu vou te dizer, um mago com um amigo peculiar assim, ajudando, causa um bom impacto no povo e nos inimigos também. Aprecio a companhia de alguém como você, amigão.

— Não me chame de amigão.

Ele riu.

— Ainda bem que você disse, porque eu já estava me cansando disso também. Até amanha penso em alguma coisa. Vamos.

O aprendiz de feiticeiro passou pela porta da estalagem, já era noite, e seguiu andando.

— Não é aqui? — questionei, já que era aonde pediu para me encontrar.

— Não. Eu disse para me encontra aqui, mas nós vamos para os fundos.

Por uma rua estreita ao lado, chegamos a um anexo do prédio alto e cheio de vigas de madeira da estalagem. Ele abriu a porta e disse que podia entrar. Enquanto ele tirava sua capa e acendia uma pequena lareira no canto, observei sua toca simples que parecia empoeirada porém confortável.  Nunca havia estado na toca de um humano.

— Ignore a bagunça — ele sentou-se numa cadeira e tirou suas botas. — Estive numa viagem com o mestre, ele disse que era a ultima etapa do treinamento e foi bem proveitosa. Já esteve fora de casa?

— Nunca tive uma casa.

— Ah, que triste... — ele avaliou o ferimento no calcanhar, distraído, depois foi num armário e buscou uns frascos, levou  alguns minutos misturando coisas e amassando-as em uma cumbuca. Virou-se para mim. — Senta aqui — indicou sua cadeira. Hesitei, mas acabei obedecendo e ele sorriu. Depois de espalhar sua estranha pasta nos ferimentos do meu pescoço, me fez levantar para que cuidasse de si mesmo. Enquanto esperei, um novo uivo soou, chamando minha atenção para a janela.

— Você pode entendê-los?

— Você os ouviu? — talvez o garoto  já tivesse habilidades.

— Não, mas pelo jeito que você deu atenção a janela eu palpitei que seja capaz de ouvir o que não ouço.

— Os lobos que te encontraram são apenas buscadores. Agora estão juntando-se para virem atrás de você.

— Nossa. Só porque derrubei alguns? — parecia levemente preocupado.

Então percebi que Luahn estava completamente inocente, não sabia que os lobos raivosos estavam atrás dele por ter meio sangue de lobo e isso motivava a raiva da caçada.

— Não pode ficar nessa cidade. — avisei e ele estreitou os olhos, desconfiado.— Vão seguir o seu rastro e o lugar que você mais está é na casa de seu mestre.

A expressão dele mudou, compreendeu que seus amigos corriam algum perigo. Encarando o nada, o feiticeiro refletiu.

— Você está certo. Não posso fazer todos enfrentarem os lobos por minha culpa. Tenho que me afastar até a raiva desses animais contra a minha pessoa passar. Amanha, preparo tudo para ir. — Senti que não era apenas por isso, ele parecia apreciar a fuga por outros motivos. — Amigão, por hoje pode ficar, mas amanhã terá que arrumar um novo lugar se não for comigo.

— Eu vou com você.

Ele sorriu, presunçoso.

— Estranho, eu bem que pressenti isso.

— Não me chame de amigão.

— Ah, é verdade. Vou te chamar de... — e ficou me encarando. — Peludo!

— Não seja idiota!

Riu.

— Claro, é muito infantil isso. Chamarei você de... Fiel, o que dará para usar em qualquer forma, e quem sabe um dia você se lembre do seu nome.

Rosnei, mesmo não sendo um lobo, e ele sorriu mais. Odiava que ficasse me encarando, então desviei o olhar. A toca dele só havia uma cama, baú, cadeira, banco, armários e um tapete de cordões de lã. Joguei-me ao chão, tornando-me lobo e ele assistindo, caminhei até o tapete, arranhei-o um pouco, o cheiro da ovelha era fraco, deitei-me e fechei os olhos esperando o sono. Pelos sons que ouvi, o humano arrumou sua cama, e de repente escorreguei para os sonhos, com flash’s da minha vida simples de lobo selvagem, caminhando para qualquer lugar, caçando qualquer coisa, enfrentando inimigos. Depois de longos minutos, notei uma sensação morna nos pelos e meu mundo do sonho me levou aos momentos com uma mãe, que eu já havia esquecido, e era um filhote com as lambidas carinhosas dela, era confortável e bom. Abri os olhos, ainda bem sonolento, notei o cheiro do garoto próximo e logo sua mão explorando meus pelos. Ele era um completo folgado, me acariciando enquanto durmo.

— É tão fofinho... — sussurrava — parece quentinho...

Rosnei e ele se afastou. Estiquei o corpo e virei para o outro lado, enrolando-me para cair no sono novamente.


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Notas finais do capítulo

Em breve a fuga.