Por Favor, Fique Um Pouco Mais escrita por Lunnarea


Capítulo 2
Ye-jun, não pule refeições.


Notas iniciais do capítulo

Olá, já começo agradecendo 'cês que estão acompanhando a história, especialmente o pessoal que se dispôs a comentar, dá um feedback legal isso e me empolga bastante.
Obrigada galerinha, muito amor por vocês. ♥
Tenham uma boa leitura. ^^

Ah! Esqueci de avisar, eu estava pensando em usar alguns termos meio intraduzíveis, principalmente nos diálogos, para criar uma melhor imersão. Então acredito que devo deixar um glossário básico, mas me pergunto se é mais apropriado fazer isso nas notas iniciais ou nas notas finais. Se 'cês puderem opinar quando a isso, ficaria imensamente grata.
Neste, vou deixar aqui no início:

1 — Kimchi: É um dos condimentos principais da culinária coreana e consiste principalmente em hortaliças, que são fermentadas em uma salmoura juntas a temperos como gengibre, malagueta, alho, cebola e molho de peixe.
2 — Halmeoni: É uma palavra no coreano que é usada para se referir aos avós e, carinhosamente, a outros idosos.
3 — Won: É a moeda usada na Coreia do Sul, no texto foi usado o seu plural "wones".
4,5,6,7 — As quatro são as efígies das notas sul coreanas. A primeira é a Sin Saimdang, que foi uma pintora, poetisa, caligrafa e escritora, que tem sua imagem na nota de cinquenta mil wones. O segundo é o Sejong, que foi um rei que inventou pessoalmente o alfabeto coreano, que tem sua imagem na nota de vinte mil wones. O terceiro é o Yi I, filho de Saimdang, que foi um dos mais proeminentes estudiosos confucianistas coreanos, que tem sua imagem na nota de cinco mil wones. O quarto é o Yi Hwang, um importante estudioso do neo-confucianismo, que tem sua imagem na nota de mil wones.



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O pequeno animal felpudo despertou logo cedo, sequer havia dormido até muito depois do sol terminar de nascer e já estava ali, de pé, miando a plenos pulmões no volume máximo que seu corpinho podia alcançar, enquanto batia com sua pata diminuta no cotovelo do rapaz que dormia. Era um sono bastante profundo e apesar de todo o esforço, o felino não conseguiu sequer arrancar um resmungo torpe de Ye-jun, que sequer reagia a gritaria do gato. Aquilo não seria suficiente para fazê-lo acordar.

O animal teceu um plano que parecia bastante promissor. Caminhou pelo tecido macio do sofá, atravessando o arco que o braço esquerdo do rapaz formava naquela pose desajeitada, era um percurso bastante irregular para sua pequenez, foi forçado a subir pela almofada que o humano abraçava, conseguia ouvir a respiração profunda à medida que se aproximava, chegou próximo o suficiente do rosto do homem para que conseguisse esticar sua pata até tocar bochecha daquele rosto, seus pelos entraram em contato com a pele suave de seu dono enquanto insistia em cutucá-lo, tinha certeza que dessa vez iria conseguir bons resultados. Estava convicto de que não precisaria soltar nenhum de seus miados agudos para acordá-lo, não iria demorar para que atingisse seu objetivo uma vez que já estava ali.

O som abrupto provocado pela respiração do humano rompeu o silêncio fez com que o gato saltasse dali num disparo, antes de correr em direção a porta semiaberta que dava acesso a pequena varanda, passando através do vão largo o suficiente para que conseguisse passar. Já havia conseguido provocar o que queria.

— Atchim! — O soou alto pelo cômodo.

As orelhas peludas do animal perseguiram os murmúrios incompreensíveis que o rapaz emitiu com a voz ainda embargada pelo sono, podia descrever o que estava acontecendo só de ouvir, mas aquilo não era suficiente para conter seu espírito genuinamente curioso. Vagarosamente caminhou de volta para o interior do apartamento, se espreitou detrás da pequena bancada que dividia os cômodos e espiou dali o que acontecia na sala, suas orelhas estavam atentas ao menor dos sons, moviam-se de um lado ao outro buscando as menores vibrações no ar.

Deparou-se com seu dono sentado sobre o sofá, não parecia em perfeitas condições, provavelmente não estava completamente desperto de seu sono ainda, mas ao menos seus olhos já estavam abertos e o semblante soturno e cansado dominava sua face mesmo após uma noite de sono. Devia se atrever a algo mais, constatou, para o gato era fácil de se estabelecer uma relação entre a partida daquela mulher há alguns dias e essa toda essa morosidade com a qual Ye-jun vem agindo desde então. O homem não estava disposto a fazer nada, tardava em levantar da cama, deitou-se tarde todas as noites que se passaram e a palidez em seu rosto denunciava que não estava sequer se alimentando direito – por opção, não necessidade – ficando sozinho durante a maior parte do dia, na frente do televisor ou iniciando a leitura de livros que não fazia questão de terminar e acabavam se amontoando um sobre o outro junto ao pé da pequena mesa de centro.

O felino sentiu falta do salmão que comia aos sábados, nunca houve sequer um único dia de atraso, mas ele não parecia disposto a sequer sair de casa, a primeira semana desde que a mulher se foi estava prestes a se completar e o mais perto que o humano havia chegado da porta foi quando recebeu uma correspondência ou nas vezes em que a Sra. Choi – que vivia no apartamento ao lado -  tocou a campainha para checar se estava tudo bem com ele, graças ao pedido que a amiga havia feito antes de ir. A presença dela naquela casa não era incomum pois desde os tempos de colégio ambas passavam bastante tempo juntas, uma amizade grande o suficiente para que visitassem o lar uma da outra e, mesmo após o término dos estudos não se afastarem muito, afinal, viviam lado-a-lado.

O rapaz espiava pela janela com o rosto tomado por desânimo, dali seus olhos não conseguiam observar nada, o céu estava coberto por nuvens espessas – pois estavam no ápice da temporada de chuva – e sequer podia saber se o dia havia acabado de nascer. Tornou o olhar para dentro do cômodo outra vez, buscando onde havia deixado o celular antes de cair no sono na última noite, com toda certeza podia abstrair-se com o aparelho durante longos minutos, enquanto lia as mensagens que se acumulavam ou assistia aos mais triviais dos vídeos ou as notícias banais que acabavam de sair nos jornais, enquanto desviava sua atenção do trabalho que se acumulava e da saudade que sentia. Não empregou nenhum esforço na sua busca, desistiu logo nos primeiros momentos de procura que se resumiam em percorrer os ambientes com os olhos, não se deu o trabalho sequer de averiguar se o telefone estava debaixo das almofadas ou do cobertor que encobriam a superfície do sofá.

Embora não tivesse a melhor das performances em achar pertences perdido, a desistência não foi totalmente culpa do homem, seu campo de visão foi invadido, no meio do processo, pelo animal felpudo e alaranjado que caminhava lentamente, como se quisesse camuflar-se no assoalho marrom do apartamento. O gato tinha consciência de que aquilo era o ponto fraco do seu dono, possuía total confiança de que agora ele conseguiria fazê-lo levantar dali. Não é de se esperar que aquele sentimento ainda indigesto prendia o rapaz dentro de casa, decerto era um problema complexo o suficiente para que o felino pudesse compreende-lo em sua integra, mas, por este mesmo motivo, que ele insistia naquilo. Se o agridoce da carência e da saudade era algo profundo demais para que pudesse assimilar, a afeição que nutria por Ye-jun decerto era suficiente para que se enchesse de preocupação.

Não havia percebido quando o par de olhos pousaram sobre si, mas logo que se deu conta que seu disfarce havia sido desvendado, teve que apelar para o seu segundo plano. Parou instantaneamente, sequer finalizou o passo que estava para dar, a pose meiga que treinou por todos esses anos teria que ser usada: justapôs suas patas enquanto se sentava no piso, ao passo em que sua cabeça se inclinava à direita tão lentamente que o movimento sequer era perceptível, as pupilas escuras do animal contrastavam com o tom dourado da íris, esboçavam um olhar pedinte e choroso em direção ao homem, tudo para que sua mensagem fosse transmitida. Logo teve a confirmação de seu êxito, não que estivesse duvidando dos encantos que possuía, afinal, detinha plena confiança em suas habilidades, mas o longo suspiro que o rapaz deixou escapar por entre os lábios anunciava que havia perdido aquela batalha e o sossego que estava tendo teria que se findar.

— Miso, você está com fome, não é? — Sua voz soou ligeiramente mais rouca que o comum, levantou-se ainda letargo sem deixar de fitar o animal.

O contato dos seus pés descalços com o tapete branco disposto no chão não era agradável, mas seu par de calçados estavam longe o suficiente para que valesse a pena ir buscá-los. O gato andou rumo a sua tigela de ração, suas patas diminutas contra o chão laminado produziam um som baixo e agudo, que era completamente ofuscado pelo pisar do homem que acompanhava o animal, este que era grave e significante mais alto que o do animal.

Se abaixou para alcançar o puxador da porta na parte inferior daquele armário, antes de abri-la por completo, acariciou a cabeça do felino, passado os dedos por entre os pelos macios no topo da cabeça do gato, que respondeu emitindo um ronronar contente ao receber a carícia. Dirigiu sua atenção a ração outra vez, terminou de abrir o móvel feito de uma madeira clara, mas sequer encontrou a embalagem da ração ali, possuía certeza de que havia restado um pouco de comida da última vez que serviu.

Fechou a porta lentamente antes de caminhar em direção a geladeira cinzenta do outro lado do cômodo para continuar sua busca, ali era o último lugar no qual podia nutrir esperança de encontrar algo que o gatinho pudesse comer, o ar gelado que escapava à medida que lentamente puxava a alça do eletrodoméstico era bastante agradável em um dia como aquele, não abriu inteiramente a porta, mas o suficiente para que pudesse espiar dentro do eletrodoméstico, daquela maneira podia adiar um pouco mais a sua decepção pois era improvável que ali encontraria ao apropriado para alimentá-lo.

Checou cada prateleira do refrigerador, desde as latas metálicas de refrigerante até os vidros onde a salmoura vermelha fermentava os vegetais e uma caligrafia bonita formava os dizeres: Ye-jun, não pule refeições. Mais um dos bilhetes que a mulher havia espalhado pela casa antes de partir, o rapaz já havia perdido a conta de quantos encontrou, e apesar de já ter se passado quase uma semana, não conseguia descarta-los. Não via razão para tudo aquilo, era crescido o suficiente para cuidar de si mesmo e não era como se ele estivesse ficado sozinho naquela casa, não era como se estivesse sozinho naquele mundo ou como se não houvesse ninguém com quem pudesse contar.

Era gentiliza demais para que ele pudesse retribuir, não seria apropriado que fizesse desdém disso, então preferiu por deixar as mensagens espalhadas pela casa ao invés de se desfazer delas, ao menos consideração por tamanho precaução ele podia demonstrar. Seus lábios formaram um sorriso singelo e sem maiores intenções, todos aqueles sinais espalhados pela casa deixados por ela carregavam consigo um pouco de sua presença, uma fração da sensação acolhedora que havia naquele ambiente ainda estava ali, foi longe o suficiente para além do alcance de um abraço, mas conseguia senti-la envolvendo-o com os braços como fazia quando ele era mais novo, sempre relutando contra aquela demonstração de afeto, de certo, se soubesse o quanto aqueles momentos se tornariam raros, não haveria reclamado de sequer um deles.

Procurou por detrás das outras coisas que haviam guardadas, mas não existia o menor sinal de algo que pudesse ser dado ao gato. Olhou imóvel em direção ao interior da geladeira, enquanto o frio entrava em contado com sua pele tépida, o frescor ali era bastante atraente e, se não fosse pela sua preocupação com o preço da energia elétrica, era sedutor o suficiente para que pudesse convencê-lo de passar o dia ali. Antes de começar a se mover e enfrentar o seu problema, inspirou profundamente o ar que preenchia pouco-a-pouco seus pulmões, juntando toda a disposição que possuía naquele momento, aproveitou para que espreguiçasse seus músculos das costas ao esticar os braços para cima, lentamente baixando-os ao sentir a sensação relaxante percorrendo o seu corpo, ignorou o estralo audível que soou do seu ombro esquerdo com o movimento, já estava acostumado com esse tipo de coisa cada vez que punha esforço nas juntas.

Antes de terminar de baixar os braços teve a atenção raptada pelo toque rápido e característico do celular que soou na sala, não pode evitar de levar o olhar por cima do ombro na direção de onde veio o som. Um brilho transpassava a folha da revista que estava aberta sobre a mesa de centro, era ali que ele havia deixado o telefone antes de cair no sono. Refez o caminho até a sala para conferir a mensagem que chegara, pressionou o pequeno botão da lateral do aparelho e a tela exibiu, nítida, os números indicando o horário, oito e vinte e quatro da manhã, sobre o plano de fundo sazonal que havia escolhido. Seus dedos correram sobre a superfície suave, tocou no ícone amarelo do aplicativo que avisava que haviam coisas ainda não lidas, da grande lista de contatos que surgiu sem demora escolheu o que aparecia primeiro, Ji-woo. Em não muitos caracteres formou um recado, que provavelmente foi digitado durante as pausas entre um cliente e outro na cafetaria em que trabalhava, dizendo que a comida do gato havia acabado. Logo quando leu a mensagem não hesitou em digitar uma resposta, apertando rápido contra as letras no calor do momento, indagando o porquê ele não havia ido comprar mais, mas aquele impulso não durou até que terminasse a frase, e ele apagou cada uma das palavras que iria enviar.

Não podia deixar o gato esperando até tarde, as pupilas escuras e vítreas focam eles com um olhar tão penetrante que conseguia sentir o peso delas sobre si, ou talvez isso fosse só a sua consciência o punindo por deixar o animal faminto, o que não passava de um dos caprichos do animal para fazer com que o rapaz saísse de casa, pois o gato estava muito bem alimentado. Antes de sair para o trabalho Ji-woo havia dado o que restou da comida para ele, o felino esperou que o homem fosse trabalhar para comer toda a ração, desde que o sol nasceu já havia vindo tramando seu plano e fingir a falta de comida estava incluso nele. Tudo correu como o que foi arquitetado, o felino ouviu um suspiro baixo que foi emendado com um murmúrio baixo e desanimado, não havia outra alternativa senão ir comprar algo na loja mais próxima dali.

Ao menos ter sido acordado cedo foi recompensador, naquele horário o bairro costumava ser bastante tranquilo e as ruas estavam vazias o suficiente para que conseguisse evitar manter contato com qualquer um, era um período perfeito para se sair até que o caos do horário de almoço começasse, onde os funcionários das dezenas de prédios de escritórios da vizinhança saiam, abarrotando as ruas e os restaurantes, criando aquela atmosfera movimentada e bastante desconfortável para qualquer um que desgostasse de grandes multidões.

O gato havia sossegado sobre o tapete branco assim que o homem entrou no quarto, esticou-se sobre o tecido depois de todo o esforço que fez para concluir seu objetivo depois que bocejou deixando os dentes afiados bem amostra, deitou o corpo na superfície macia e quente enquanto o sol tímido que adentrava pela janela, a pouca luz que conseguia escapar dentre as nuvens era mais que suficiente para que aquecesse o corpo do felino em uma temperatura confortável, pois o ambiente por si só era tomado pelo mormaço comum naquela época do ano. Não era nenhum incomodo para ele, o gato, pois qualquer lugar da casa se tornava confortável o suficiente para um cochilo diferentemente de quando chegava o inverno, onde as superfícies gelavam com o frio, tornando difícil encontrar um cantinho para se espremer e ter uma boa soneca.

Não viu quando ele saiu do apartamento, não quis abrir seus olhos para acompanha-lo, mas conseguiu ouvir seus passos, o chacoalhar das chaves e o bater da porta logo em seguida, a sequência de sons anunciaram o sucesso de sua missão. Nada mais estava no seu alcance para melhorar aquele quadro então achou apropriado prolongar aquele sono até o retorno do rapaz, ou mesmo depois disso.

O elevador do prédio descia os andares rapidamente, o que causava um mal-estar inexplicável no homem, aproveitou aqueles instantes ali dentro para olhar-se no espelho e tentar ajeitar o seu cabelo levemente bagunçado, pondo fios escuro dispersos em seu devido lugar, havia esquecido de arrumá-lo antes de sair de casa, mas bastou corrigi-los uma vez para que o penteado desleixado se tornasse em algo mais apresentável, era a vantagem de usar um corte bastante curto.

Logo as portas se abriram quando atingiram o andar térreo, revelando o saguão bem iluminado e espaçoso, não trombou com nenhum outro morador do prédio ao cruzar o cômodo em direção a larga porta de vidro que dava acesso à rua, não esperava encontrar ninguém ali, mas ao deparar-se com o ambiente vazio tirou-lhe peso dos ombros, nunca foi próximo de nenhum dos vizinhos, senão cumprimentos cordiais ao se encontrarem, mal mantinha contado com algum deles, ao menos não tinha intenção de manter, pois todas as vezes que saia com a Su-min e se deparavam com outro morador do prédio, em especial as senhoras já de idade, ela arranjava algo para comentar e arrastava-o para a conversa e ele, para não parecer rude, aparentava fazer de bom grado. Sequer sabia que ela não fazia isso por acaso, sempre achou que isso devia-se a falta que os pais faziam na vida da mulher, que foi forçada a amadurecer cedo demais para cuidar dos irmãos, não via que, desde esses momentos, ela preparava-o para lidar com a vizinhança sem que estivesse por perto.

Apesar do sol não ser intenso naquele horário, os raios esparsos eram refletidos pelos vidros dos enormes prédios até atingir as ruas e calçadas de concreto e piche que ficavam encoberta pelos edifícios que transformavam o bairro, senão no cérebro, no coração de toda Seoul. Andou pela rua que cruzava os blocos residenciais, as árvores de cresciam na calçada formavam uma cobertura bastante agradável durante dias como aquele, criando uma atmosfera bastante fresca que divergia do que havia na avenida principal mais afrente, como um choque de mundos complementes diferentes, bastava apenas um único passo no encontro entre as duas vias para perceber essa disparidade entre os dois ambientes, enquanto um era composto por baixos prédios residenciais, cercado por árvores e bastante silencioso, o outro era a mais pura representação daquela cidade metropolitana, os arranha-céus de vidro das multinacionais, as calçadas largas e expostas ao sol junto ao som dos veículos andando sobre o asfalto quente compunham a cena.

Ao menos desta vez não precisaria ir tão longe para arranjar o que precisava, naquela ilha de tranquilidade em meio ao caos urbano uma pequena loja de conveniência, numa esquina antes do movimentado cruzamento da avenida, havia sido aberta há alguns meses. Decerto não era o melhor lugar para uma loja se alocar, estava escondida detrás dos edifícios enormes numa travessa de menor importância, exprimida entre outros estabelecimentos, mas era um perfeito oásis para qualquer um que não quisesse se atrever ao mar de gente na rua seguinte.

Não pôde evitar de encontrar com algumas pessoas no caminho, apesar da região ser razoavelmente vazia naquele horário, não estava completamente deserta, isso era reservado somente às madrugadas, entretanto mesmo assim ele não encontrou com ninguém que tivesse o reconhecido, ou ao menos que tivesse tentado cumprimentá-lo. A localização daquela loja era especialmente conveniente para ele, ficava na direção oposta das vendas que costumava visitar com Su-min quando iam fazer compras, era certo que, se tivesse se atrevido a caminhar por lá, algum dos lojistas iriam puxar papo com ele, eram especialmente simpáticos com os fregueses frequentes como eles.

A fachada do estabelecimento era bastante característica da rede de lojas que pertencia, reconheceu-a assim que apareceu no seu campo de visão, próxima ao final da rua, as grandes janelas de vidro ocupavam quase todo o espaço que havia nas paredes e eram indistinguíveis da porta quando vistas de longe, mas esta era facilmente reconhecível pois, além de estar numa posição bastante privilegiada, uma pequena cobertura de concreto, que servia para impedir que a chuva molhasse as mesas e cadeiras dispostas no exterior da loja, evidenciava a entrada.

 Chegou na loja sem muito esforço, as portas se abriram automaticamente quando pisou no degrau baixo que corrigia o desnível entre a calçada e o piso, fazendo com que o ar frio dali de dentro, escapasse para o exterior quando o menor dos espaços surgiu entre os vidros, o ambiente estava hermeticamente fechado até então, seja do calor que fazia ou da cacofonia do movimento urbano que ecoava do lado de fora. Luzes fracas complementavam a iluminação natural, enquanto cores claras dominavam desde o piso branco às paredes cobertas por painéis pálidos de bordô, e estendia-se até as estantes igualmente claras que eram preenchidas pelas embalagens pouco chamativas que complementavam o estilo minimalista que a franquia possuía. Ali dentro a atmosfera era impressionantemente díspar daquela que podia se observar pelos vidros, como se fossem dois universos plenamente inertes quanto a presença um do outro cujo as discrepâncias tornavam-nos ambientes completamente heterogêneos, mesmo durante as frações de segundos que durou o abrir e fechar da porta enquanto Ye-jun adentrava. Nesses instantes o ambiente não se deixava macular pela pressa urbana embora o silêncio do ambiente tivesse sido violado pelo rolar dos pneus contra o asfalto ou pelo intenso andar na calçada no outro lado da rua.

Havia um único cliente ali dentro, uma senhora que tinha a sua idade denunciada pelos fios cinzentos que compunham quase que integralmente seu cabelo e pelas rugas que se salientavam nos cantos dos olhos, que estavam parcialmente escondidas pela armação fina dos óculos que usava para corrigir a visão. Alguns vegetais estavam sobre o balcão, enquanto ela guardava outros dentro da sacola que trouxe consigo, mas parecia muito mais interessada em manter a conversa com o atendente que terminar de acomodar os talos de alho-poró, seus olhos meigos quase se fechavam por conta do riso, mas apesar disso, era perceptível que o sorriso não era totalmente sincero, mas se tratava de uma fagulha de alegria em meio ao cotidiano tão acostumado que a mulher vivia que parecia ser algo pequeno para quem olhava de fora, mas era algum dos únicos momentos na qual podia desfrutar de alguma companhia durante o dia.

— Dae-young — continuou a senhora num tom baixo e quase pedinte —, você devia de me fazer uma visita e buscar um pouco de kimchi¹, tenho bastante em casa, e também alguns...

— Halmeoni!² — O atendente interrompeu-a com uma voz melosa, enquanto curvou-se sobre a bancada, apoiando os cotovelos na superfície branca do móvel, repousando a cabeça na palma das mãos. — Você não precisa fazer isso. — Escrutinava a mulher à sua frente com uma expressão bastante risonha, ostentava um grande sorriso que comprimia a bochechas entre seus olhos largos e os lábios finos, formando um esgar verdadeiramente encantador em sua face, que era analisada em suas minúcias pelo homem que entrou há pouco na loja. Não haviam percebido a presença dele ali e ele não pretendia interromper a cena, mas foi capturado pela cena agradável que aquecia seu coração.

— Sempre acabo fazendo demais, nunca acerto na quantidade desde que passei a morar sozinha — insistiu —, não deixe de passar lá mais tarde, aproveita e leve alguns...

— Kimchi? — Impediu que ela chegasse a falar sobre os bolinhos pois, se deixasse, ela não pararia de oferecer mais coisas. — Eu realmente estava sem, então, quando eu terminar aqui, eu posso passar para buscar, que tal?

A mulher apenas assentiu depois de guardar dentro da sua sacola de pano os vegetais que faltavam, ajeitou os óculos antes de se despedir de Dae-young, enfatizando que ficaria esperando ele ir. Saiu logo em seguida, deixando o rapaz acenando enquanto acompanhava ela sair pela porta com as pupilas, que se assemelhavam a hematitas por conta da cor cinzenta, mas antes que completasse seu trajeto rumo a porta, cruzou o olhar com o cliente estático que observava atentamente aquela cena. Levantou-se assustado enquanto um murmúrio fremido escapou de sua boca, tentou levar uma das mãos para abafar som, mas foi lento demais, seu coração pulsava veloz dentro de seu peito e sentia sua face queimar em vergonha e em rubor enquanto tentava evitar rir da situação.

Forçou um pigarro enquanto se recompunha, baixou a mão que cobria a sua face enquanto arrumava a sua postura e só então olhou novamente em direção ao cliente que mantinha sem muito vigor as sobrancelhas franzidas e seu maxilar retraído, um quê de melancolia também formava seu semblante, expressada em traços mais mínimos de seu rosto, como nas bolsas que repousavam sob seus olhos e os lábios finos que se retorciam nos cantos. Conhecia as minúcias que formavam a fisionomia bonita, porém não estava ainda preparado para revê-las, haviam demais embaraços com os quais queria lidar primeiro, contudo suas vontades não pareciam ser condizentes com os planos traçados pelo futuro e aquele rapaz em específico que apareceu diante de si era o mais explícito sinal que poderia ter.

— Senhor, posso te ajudar com algo? — indagou solicito exibindo um sorriso tímido na face ainda corada.

— É... Eu — Desviou o olhar em direção as prateleiras na esperança de achar a ração sem precisar da ajuda do atendente, mas as inúmeras embalagens dos mais variados tipos expostos sobre as estantes não facilitavam a sua busca, principalmente quando ele procurava-a sem sequer sair do lugar. Levou a mão direita sobre a cabeça, passando os dedos sobre os fios curtos e macios do próprio cabelo, para que ganhasse mais tempo, mas nada adiantou pois não havia sequer noção de onde estavam os produtos destinado aos animais, respirou fundo antes de continuar. —, onde é que estão as rações para gato? — Virou-se para a direção de Dae-young, o rosto do rapaz era bastante familiar, mas não sabia de onde o conhecia, não era um rosto muito comum e com certeza se já o tivesse visto a face ficaria gravada em sua mente, estudamos juntos no ginásio? Não parecia ser mais velho que ele, a possibilidade de terem a mesma idade era bastante válida, mas ele possuía certeza de não ter conhecido alguém com este nome.

— No final da terceira fileira, à direita — Indicou com um leve aceno de cabeça.

Agradeceu antes de ir até onde foi indicado pelo atendente, caminhou por entre as prateleiras até chegar ao final do corredor, ali era ligeiramente mais gelado que na frente da loja, pois os freezers estavam dispostos logo adiante, a temperatura caia gradualmente ao se aproximar daquele espaço fazendo com que o choque entre sua tez tépida e o frio arrepiasse os pelos de seus braços desnudos.

Se abaixou quando viu o que procurava, os sacos de ração estavam na prateleira mais baixa da estante, analisou atentamente cada uma das embalagens, se perguntava quem fornecia aqueles produtos para a loja, todos seguiam o mesmo padrão de cores claras mescladas com o branco, sem imagens ou coisa similar, as únicas coisas que desviavam a atenção ali eram os caracteres no rótulo do produto, que era exatamente o que lia em busca de mais informações sobre o conteúdo de cada embalagem, a pontada de culpa por não saber sequer o que o próprio gato comia atingiu-o em cheio, transformando ainda mais seu semblante vacilante e moroso.

— Essa é a que normalmente as pessoas costumam levar — mentiu, pois aquela não era a mais vendida, apesar de ser exatamente a que Ye-jun havia vindo buscar. Dae-young era agraciado com uma boa memória que servia para aprender os gostos dos clientes que frequentemente vinham até a loja —, peixe branco e atum. — concluiu.

Aquelas palavras soavam bastante convincentes para o homem, possuía vagas lembranças da Su-min, que acabava comprando a comida todas as vezes, lhe falando sobre o sabor da ração envolver peixes, saber que era algo bastante comprado também influenciou sua decisão, não hesitou em pegar o saco de ração sugerido pelo funcionário. Seguiu o atendente até o balcão próximo a saía para que pudesse pagar pela compra, pôs a embalagem sobre a superfície alva para que o outro pudesse pegá-la e passar o código no leitor do caixa. O som baixo emitido pelo aparelho quando a luz infravermelha fraca foi exposta contra a tinta escura foi abafado pelo toque do celular do cliente, que prontamente puxou o telefone do bolso da calça cinzenta de moletom e levou-o à orelha, após se desculpar silenciosamente, tomou certa distância da bancada e se virou, ficando de costas para Dae-young, que não conseguiu ouvir muito do que estava sendo dito, pois embora estivesse curioso com o conteúdo da conversa, não atreveu-se a se aproximar para escutá-la, ainda sim conseguiu entender algumas palavras que saiam baixas da boca do homem. Durante o tempo em que ele não estava ali, o atendente aproveitou para colocar a ração dentro de uma das sacolas de papel que haviam disponíveis, deslizou-a sobre a superfície lisa da bancada pondo-a próxima da outra borda.

Não demorou para que finalizasse a ligação, se aproximou do balcão outra vez enquanto encerrava a ligação e bloqueava o aparelho com o deslizar dos dedos sobre a tela, um sorriso acanhado desabrochou em seu semblante e instigava o interesse que o atendente tinha sobre o assunto, mas não eram próximos o suficiente para que se permitisse perguntar sobre o telefonema, desviou o olhar do cliente e levou-o a tela que exibia o valor a ser pago.

— São vinte e três mil wones³ — informou durante o tempo que voltava sua face para o homem.

Deixou o celular que ainda tinha em mãos sobre o tampo e levou-a dentro do mesmo bolso, puxando de lá uma carteira escura abriu-a e sem delongar tirou uma nota amarelada dentro muitas outras, deixou-a dobrada sobre o balcão, com Saimdang4 direcionada para cima, e empurrou-a com a ponta dos dedos para perto do atendente, que pegou a nota logo que o outro deslizou-a até ele. Calculou rapidamente o troco enquanto guardava-a na gaveta no seu devido lugar, três Sejong5, um Yi I6 e dois Yi Hwang7, envolveu as seis notas no papel que foi emitido pela pequena impressora com a conclusão do pagamento como se fosse um invólucro e entregou diretamente nas mãos do rapaz que acompanhava cada um dos seus movimentos ágeis com os olhos.

Ye-jun logo colocou as notas dentro da carteira e devolveu-a para o bolso de onde havia a tirado e pegou a sacola de papel bege que repousava sobre o tampo, foi a vez de ele ser fitado enquanto se movia em direção a saída, ouviu o agradecimento do funcionário, não viu a reverência que foi feita, mas tinha certeza de que havia sido feita pois era um procedimento básico do atendimento. Dae-young não levantou o olhar até que as portas se fechassem quando o cliente deixou a loja, mas quando o fez viu o celular do outro sobre o balcão.

Esticou os braços para pegar o aparelho, conseguia ver o homem ainda através das janelas largas, mas antes que pudesse fazer algo mais, o som da porta quebrou aquele silêncio breve outra vez antes doutros clientes adentrarem no estabelecimento. Não iria conseguir devolver o aparelho até que estivesse livre, ele sabia onde o rapaz morava, estava incerto se deveria ir até a sua casa pois isso certamente pareceria estranho.

Antes que se deixasse levar por demais pensamentos a aproximação do casal de fregueses que entravam desviou a sua preocupação para algo mais imediato, cumprimentou-os com entusiasmo de sempre, enquanto deixou um sorriso gentil tomar conta de seu rosto jovial outra vez.


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Notas finais do capítulo

Estou ansiosíssima para saber o que vocês acharam, teve um tom diferente do prólogo eu diria.
Ah! Não se esqueça de comentar acerca do glossário, preciso saber onde ele fica melhor, como disse antes. Ficaria bastante grata se 'cês opinarem acerca disso.
Obrigada desde já.

Até breve.



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