Por Favor, Fique Um Pouco Mais escrita por Lunnarea


Capítulo 1
Prólogo — O Céu Silencioso


Notas iniciais do capítulo

Agradeço a quem chegou até aqui, espero sinceramente que gostem da leitura e se sintam à vontade para comentar o que quer que seja, eu adoro papear ao responde-los. Também sintam-se livres para emitir qualquer crítica, é uma forma bastante válida de me auxiliar nesse processo de escrita, sou bastante tranquila quanto a isso.

Nesse prólogo, espero que não se assustem, ele possuí mesmo um ar mais tenso, relativamente mais pesado e por isso pus o aviso de violência na história, os seguintes vão ter um ar bastante ameno comparado a este, que tem algumas cenas que podem ser desconfortáveis para quem lê, principalmente se houver uma forte aversão com sangue em específico. Por conta disso, deixo aqui o aviso, e compreenderei se preferirem pular a cena em questão, espero não ter amedrontado vocês, não é algo nada grave ou muito pesado, mas assim preferi.

Então, tenham uma boa leitura.



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O céu estava limpo, um imensurável azul sem fim, nuvens solitárias estavam pregadas em pontos quase que imóveis, se evidenciavam naquele cenário agradável e silencioso. Os rotores das hélices dos aviões já haviam passado há muito, o rastro de destruição deixado para trás, as balas que perfuraram paredes, bombas que derrubavam prédios, o fogo que se alastrava pela vizinhança, as sirenes mudas, civis caídos, sangue, morte, dor.

Era irônico o presente dos céus, por ele os mensageiros da morte trouxeram sofrimento, e, sem respeitar o luto velado, agora se apresentava na mais plena magnificência que podia atingir, indiferente a qualquer coisa. A fumaça negra que ascendia se misturava com o ar, o vento soprava-a para longe dos entulhos que restaram dos prédios, as partículas de poeira eram arrastadas pelo chão, eram pesadas o suficiente para serem levadas também.

Não demorou muito para que fossem ouvidos passos, o som do vidro sendo esmagado contra o chão, as instruções sendo passada aos berros, os gemidos baixos de dor, murmúrios sendo expelidos, a pressa do resgate e o característico cheiro ferroso do sangue preenchiam o ambiente em uma das muitas casas arrasadas pelo bombardeio. Entrou depressa, pelo que parecia ser o resto do batente de uma porta, um rapaz, usando um uniforme tingido num tom cáqui bastante nítido, que ostentava uma estrela vermelha em seu quepe, não demorou para notar a mulher que estava caída, seu rosto estava sujo com os detritos, o líquido rubro escorria do ferimento aberto próximo as têmporas e coloria sua pele com aquela cor escarlate.

Presa debaixo de um móvel de madeira escura, não conseguia escapar debaixo da pesada bancada de pedra que pesava sobre si, comprimindo-a contra o chão. Voltou seus olhos lacrimejantes para o rapaz a sua frente, notou a braçadeira branca que envolvia seu antebraço, o sinal da cruz vermelha estampado no tecido acalentou lhe, só eram necessários mais alguns instantes, suas pálpebras pesavam e um zumbido alto tomou-lhe a audição. Não conseguia ver o seu rosto, mas ainda sim esticou uma de suas mãos na direção do homem, como uma última súplica.

— Hong! Temos mais uma aqui. — Gritou antes de se aprofundar nos escombros, em direção a mulher que olhava fixamente em sua direção. Se abaixou quando chegou próximo a ela, envolveu a mão da mulher entre as suas em um impulso, encarou-a enquanto esboçava um sorriso em seu rosto juvenil, riso falso e tímido, mas o fez tentando tranquilizar a mulher, que tremia, o corte próximo a sobrancelha não parecia muito grave, não conseguia ver se ela havia maiores ferimentos e, enquanto a ajuda não chegava, não havia muito além daquilo que podia fazer.

Pelo mesmo lugar por onde o outro havia entrado, mais um soldado uniformizado adentrou o ambiente, não possuía um chapéu, talvez tivesse o perdido em um canto qualquer antes da correria começar, sua respiração estava célere e o suor escorria pelo seu rosto sujo, juntou-se aos dois na cozinha logo ao adentrar no ambiente, onde a mulher estava sob a bancada marmórea, observando ele se aproximando, enquanto evitava emitir mais lamúrias. Torceu para que ela não tivesse maiores ferimentos, era bastante claro o que havia acontecido, um impacto naquela região poderia causar consequências graves.

Os dois médicos não precisaram de muito mais que uma troca de olhares para que se comunicassem, era óbvio afinal, a placa precisava ser removida o quanto antes. Tiraram primeiro os restos dos tijolos quem encobriam a bancada, sobrepuseram-na quando a parede que apoiava o móvel desabou, haviam restos da estrutura de madeira em meio as pedras. Os objetos e detritos sendo remexidos faziam com que as pequenas partículas de pó alçassem voo, pairando no ar do ambiente, enquanto ambos os homens atiravam os restos contra um canto distante do cômodo.

Retiraram partes o suficiente para que o mármore estivesse parcialmente exposto, se moveram para as extremidades diretamente opostas do objeto, seus dedos agarraram com firmeza a beirada, o material era incrivelmente suave apesar de sua rigidez e da poeira que o cobria. Suas pupilas se encontraram no meio tempo, a respiração descompassada era o único som que havia ali, baixo e sem sincronia. Bastou alguns instantes a mais para que começassem a se emparelhar, em uníssono.

O médico mais alto, que havia entrado primeiro na casa e avistado a situação, assentiu lentamente enquanto mantinha fixo o entreolhar que ele e o companheiro mantinham. As pequenas pedras correram pela superfície plana quando começaram a inclinar um dos lados do móvel, evitando que pesasse sobre a mulher que jazia debaixo dele. Os minúsculos grãos de poeira corriam também por ali, amontoaram-se uns sobre os outros a ponto de caírem pela beirada, se chocando contra o chão duro e espalhando o pó pelo piso e pelo ar, que agora era tomado pela poeira que se escondia no objeto, não ajudava o trabalho de seus pulmões, o ar estava seco o suficiente para os olhos de ambos evitar o incômodo, inconscientemente estreitaram as vistas quando a sujeira foi dispersa. Puseram-na recostada na parede ainda de pé que havia ao lado, parecia estável o suficiente para ser deixada ali.

Se abaixou e retomou a mão dela, fixou o olhar no rosto pálido e na expressão retorcida, claramente parecia tentar evitar o choro, que já vertia pelo seu rosto sem que percebesse. Não era à toa que a dor lhe tomava o rosto, não precisou observar muito para que notasse as lascas vítreas que rasgaram a pele fina da panturrilha da mulher, não pareciam presas muito a fundo na perna. Já haviam presenciado coisas parecidas durante os poucos meses que haviam sido enviados para o campo naquele maldito conflito, conheciam tudo o que precisava ser feito naquele momento, era preciso grande finesse naquele procedimento simples.

— Tudo vai ficar bem. — Sorriu enquanto retornou seus olhos em direção ao rosto choroso da moça. Enquanto Hong punha a bolsa que carregava no chão e tirava dali os pequenos utensílios metálicos, buscando os mais apropriados para a remoção dos cacos, o outro médico tirou de dentro de sua mochila um lenço branco, onde derramou um líquido translúcido bastante característico pelo seu cheiro forte que impregnou o ambiente.

Ela acompanhou os movimentos cuidadosos que o homem fazia, quando pôs lentamente o frasco sobre o chão, próximo ao joelho, e quando aproximou o tecido alvo e gelado de seu rosto que queimava em febre. Logo foi manchado pelo vermelho que escorria pela face da mulher, a ferida ardia enquanto era limpa pelo álcool que esterilizava a pele suja e o corte rente à sobrancelha escura. Não demorou para que o sangue deixasse a tez da mulher, o pedaço de tecido embebeu-o todo enquanto expunha o machucado, que não era muito grande.

O outro, que havia sido encarregado de remover os estilhaços cravados na perna esquerda da moça, cruzou o olhar com o companheiro que já havia terminado de tratar a ferida em uma das têmporas da vítima, assentiu breve, sinalizando que podiam prosseguir com aquilo. Inspirou por um longo momento, expirando o ar enquanto relaxava os músculos rígidos, permitiu que suas preocupações se esvaíssem momentaneamente com aquele sopro, uma sensação estranha subiu até o topo de sua espinha dorsal. Focou os fragmentos com o olhar, o silêncio instalado no ambiente ajudou-o a focar naquilo e o cheiro do álcool que antes pairava no ar havia se dissipado.

Vagarosamente recolheu parte a parte do objeto com a pinça prateada, os pedaços triangulares estavam cobertos pelo líquido rubro escapava devagar pelos pequenos rasgos que restaram ali. Ela tentou evitar qualquer movimento brusco, controlou qualquer impulso por pânico, mas o tremor receoso que tomava sua perna não cessava, tentava espiar o que acontecia a cada vez que a pinça recolhia uma lasca que estava presa em sua panturrilha, mas o soldado que estava a sua frente impedia-a pondo a mão cálida rente o suficiente ao rosto da mulher para evitar que ela visse o que se passava ali, desviando olhar dela em sua direção. Teria que se contentar em desvendar com base nas sensações que corriam pelos seus nervos, as fisgadas haviam cessado e agora sentia o atrito do pano macio contra a sua pele, estava gelado, provavelmente embebido com o líquido antisséptico, o aroma que dominou o ambiente outra vez era inconfundível, e sentia o frio sendo espalhado pelo tecido sobre os inúmeros ferimentos que foram abertos em sua perna.

Quando terminou de limpar a derme daquela parte do corpo da mulher tornou o olhar para a bandeja prateada onde repousava alguns instrumentos, pegou aquele que se assemelhava com uma tesoura com a ponta fina o suficiente para capturar com grande precisão a agulha deixada sobre a superfície de alumínio, o fio já estava preso em sua extremidade, ao fim da curvada peça diminuta e metálica. Com movimentos precisos, levou o objeto na lateral de um dos cortes de onde tirou há pouco um dos cacos, não ouve resistência da pele quando forçou o objeto contra ela, a agulha adentrou deixando a pequena incisão em seu caminho, enquanto trazia consigo o fio preso a ela.

Pouco a pouco, com meneios tão vagarosos quanto os primeiros, a sutura tomava forma e fechava a primeira ferida quando a agulha emergiu para a superfície uma última vez, fechando o último ponto do corte, e a linha sendo cortada pela tesoura empunhada pelo médico. A mulher inconscientemente prendia a respiração cada vez que o objeto adentrava em sua pele, a sensação de quando a ponta metálica era forçada contra sua epiderme era agoniante, conseguia perceber perfeitamente as camadas do tecido sendo partidas, distinguia-se da dor que era sentida pela mulher, que já estava acostumada, talvez pelo efeito da adrenalina que pulsava junto do sangue em suas artérias, ou pelo longo período que teve de senti-la até seu resgate chegar.

Os outros ferimentos também foram costurados como aquele primeiro, um a um, a sutura não demorou muitos minutos, mas estes foram alongados o suficiente, seja pelo silêncio fazia, que era entrecortado pelas partes que se desprendiam da casa, como pequenas pedras que se soltavam das paredes, por tábuas que desprendiam-se do teto, ou pelos tijolos que caiam das partes já desabadas da estrutura da residência, alguns destes sons sequer vinham dali de dentro, mas eram emitidos pelos prédios decadentes dos arredores, tão avariados quanto este em que estavam.

Sentiu a malha sendo envolta em sua panturrilha, diferentemente da outra vez, não havia nenhum líquido espalhado sobre a gaze que apertava levemente sua perna, enquanto completava as voltas dadas em sua perna, cobrindo a sutura antes exposta. As tramas abertas da fazenda pressionavam delicadamente a pele, não era doloroso, comparado ao que havia enfrentado há pouco, o aperto que era feito enquanto o curativo tomava forma não podia ser evitado, não valia de muito se a bandagem estivesse frouxa ao redor dos ferimentos. A civil conseguiu ver o militar cobrindo a costura que havia feito, deixou de ser impedida desde quando último ponto foi dado.

As ferramentas que o médico usava para tratar os cortes já estavam devidamente guardadas dentro da bolsa verde, a tira de decido que compunha o curativo já estava devidamente envolta e presa à perna da mulher, fixa o bastante para não se desprender com maiores movimentos. Deixou o tecido manchado de sangue ali mesmo, largado no chão junto ao pó, já não teria maior serventia depois de sujo. Usou as costas das mãos para limpar o suor que brotou na testa, ela cheirava ao líquido antisséptico e ao odor ferroso que impregnou em seus dedos.

— Ela precisa descansar um pouco — O soldado levantou enquanto pegava a mochila — A casa não parece muito estável também, não podemos deixar ela aqui — completou.

A mulher fitou o médico ao seu lado, ouviu atentamente o que foi dito, apoiou-se no chão com uma das mãos, seu corpo estava bastante dolorido devido ao peso que teve de sustentar por todo esse tempo, parou um pouco quando sentiu a primeira fisgada de dor ao apoiar o joelho da perna saudável no chão, enquanto se levantava. O militar a sua frente, por reflexo, levou sua mão até o ombro frio da mulher.

— É melhor não forçar muito. — disse para a ela enquanto tornava o olhar para a atadura. Andou em direção a porta, parando ao lado do companheiro — você consegue carregar ela até lá, não é? — indagou antes de continuar a rumar até a saída, não esperou que houvesse uma resposta, sequer precisava de uma.

Esperou do lado de fora até que o soldado saiu com a mulher em seu colo, segurando-a firme. Aquela era a primeira vez que a mulher viu o que havia acontecido, dali de dentro não pôde reparar no bairro arrasado pelos aviões, o pó era revirado pelo vento gelado daquele inverno, as pilhas de entulhos amontoadas na rua. Seu peito se contorcia a cada corpo que via largado na via, ou as manchas rubras nas calçadas, provavelmente poderia reconhecer cada uma daquelas pessoas se olhasse bem de perto, não haviam muitos estranhos na vizinhança, todos conheciam um ao outro, mesmo que apenas se cumprimentassem com um rotineiro bom dia, era desesperador ver todos aqueles que, naquela manhã, estavam nas mais perfeitas condições, apesar da guerra acontecendo ao longe, os risos infantis e as conversas das senhoras sentadas nos degraus de suas casas eram suficientes para que, por um momento, esquecesse de tudo aquilo. Isso agora não se passavam de memórias que transbordavam sua mente e caíam como lágrimas com o choro que havia reprimido até agora. Foi forçada a encarar aquela realidade quando foi carregada para fora da sua casa escura e demolida.

Não percebeu quando começaram a andar, estava absorta em seus pensamentos, o suficiente para que enxergasse ainda os resquícios dos vultos daquelas almas que antes viviam suas vidas ali. Enquanto se aproximavam do acampamento dos militares, foram-se rareando os soldados que buscavam por sobreviventes dentro das casas desabadas, mas, também, o som dos choros ecoando pelas vielas se tornaram mais audíveis. Quando ergueu o olhar pela última vez antes de se entregar a febre que ardia seu corpo, e sucumbir ao peso de suas pálpebras, enxergou as barracas igualmente dispostas em torno da praça central, o lugar parecia bastante movimentado, mas não encontrou nenhum rosto familiar enquanto procurava com sua visão embaçada. O primeiro sentido que falhou foi sua visão, não tardou muito para que deixasse de ouvir também, ou sentir qualquer outra coisa.

O soldado pôs o corpo imóvel da mulher desmaiada dentro de uma daquelas tendas abafadas, deitada na cama que foi improvisada no chão, cobriu-a com o cobertor branco que estava dobrado em um dos cantos da barraca para evitar que seu quadro piorasse, não podia esperar até que ela acordasse, continuaria ajudando as missões de busca que provavelmente durariam alguns dias a mais.

Logo saiu dali e se deparou com o companheiro sentado sobre alguma das caixas postas próximas a entrada, ficaria surpreso se houvesse algum remédio ou qualquer outro tipo de suprimento ali dentro, senão munição para seus rifles, faziam alguns dias desde que o último caminhão chegou até ali, os últimos pedidos estavam atrasados e as reservas estavam sendo consumidas bem mais rápida que o previsto. Ao fundo conseguia ouvir, apesar dos choros baixos de angústia e das passadas velozes de alguns jovens recrutas que se empenhavam com seus afazeres, os operadores de rádio tentando se comunicar com quem quer que estivesse do outro lado.

O amigo, em sua frente, mantinha entre os dedos um cigarro, enquanto expelia a fumaça pelos lábios, não era fácil distingui-la ela do vapor da água que se formava por causa do clima frio. Não se lembrava de quando aquilo tinha se tornado comum, mas era certo que, desde que foram enviados para lá, não havia um único dia que não deixasse de vê-lo fumar, não era preciso ver também, a sua farda já estava impregnada com aquela fumaça malcheirosa.

— Devia parar de fumar — Sentou-se junto a ele — você é um médico, sabe bem o quão mal isso faz.

— Sou um mal exemplo para os novatos, não? — retorquiu enquanto mantinha o olhar fixo no céu incrivelmente azulado, não havia mudado muito desde a última vez que o viu. Levou o cigarro até a boca outra vez, inspirou o fumo até que ele chegasse aos pulmões e deixou que ele escapasse antes de continuar. — Quando tudo isso acabar eu paro. — Virou o rosto da direção do colega.

Ao invés de responde-lo, ele tomou o cigarro de entre os dedos do outro, devia de larga-lo no chão e o esmagar com seus pés, mas não o fez. Levou-o até a boca, ainda estava aceso, e era o suficiente para que pudesse, assim como o parceiro, também tragou a fumaça branca que se emancipava com o queimar do invólucro, e deixou-a presa a seu peito por um longo instante antes de libertá-la. Deixou o objeto escapar de entre seus lábios, fazendo-o cair no chão rochoso daquele pátio aberto no centro da cidade, desviou seu olhar para ele, mas o toque da mão fria em seu queixo cálido o impediu.

Percebeu a proximidade entre os dois quando o ar quente da respiração alheia se chocou contra a pele do seu pescoço desnudo, os lábios tépidos do rapaz beijaram sua bochecha em um único movimento, rápido e preciso, antes que fossem vistos naquele conluio minimamente doce. O rubor tomou conta da face daquele que recebeu o beijo, o olhar surpreso evidenciava o sorriso que tomou seu rosto, mesmo tendo-o tampado com a mão que levou ao rosto.

— Wei, você se preocupa muito com o que os outros pensam — Tateou a caixa sobre a qual sentava até achar a mão do homem ao seu lado, teve o ato retribuído, os dedos dele entrelaçaram-se com os seus assim que fizeram contato. Não havia problema se fosse por um só momento. — Viu como não é difícil? — riu um riso anasalado — devíamos aproveitar, podemos morrer a qualquer momento, capitão. — brincou.

Ele sabia muito bem disso, talvez mais do que todos que ali estavam, não podia culpar Hong por aquilo, especialmente quando estava tentando se distrair naquilo que estavam imersos, nunca conseguiria se acostumar com aquela sensação de insegurança que o perigo iminente trazia consigo, apesar de vive-lo intensamente durante os últimos tempos desde que foram arrastados para aquele conflito em terras estrangeiras.

 Antes que se deixasse levar por mais tempo naquele clima ameno que se instalou, que fazia seu peito aquecer com tamanha ternura partilhada entre os dois demonstrada nos sorrisos estampados nos rostos dos dois, as mãos dadas e o olhar mutuo e afetuoso eram os únicos meios de contato que se permitiram naquele momento.

O silêncio naquele canto afastado foi rompido por um instante, invasivo e anunciando o que viria a seguir, calou a todos que estavam reunidos mais ao longe, dispersos no entorno de outras tendas ou assentados na fonte cinzenta no centro da praça. Antes que o primeiro corpo caísse vazio contra o chão rochoso, em um baque grave, ou que o estojo de chumbo emitisse o característico tilintar agudo quando batesse contra o piso, mais projéteis foram atirados contra o acampamento, cortando a distância entre a viela antes vazia e as instalações ali dispostas, das janelas dos prédios ao lado ocidental do pátio até as barracas as balas cruzaram em um par de milissegundos e, quando não deixavam buracos nas pessoas pegas de surpresa, sem reação, atingiam violentamente as paredes do lado oposto.

Não houve sequer tempo para fogo cruzado, a agilidade na qual os inimigos alvejaram o campo não deixou com que houvesse retaliação. Após o rompante bruto, do sangue expelido pelos baleados manchando as ruas de paralelepípedos, a tropa invadiu o hospital improvisado. A quietude destacava os disparos feitos contra os semimortos que se arrastavam caídos, que negavam até aquele momento a se render à morte, mas o mais incrível não era a velocidade que aquele pequeno instrumento metálico que ceifava vidas à cada ver que o gatilho era apertado, pois o olhar sem remorso com o qual os soldados disparavam. Quando a insensibilidade não tomava conta de suas faces, o triunfo o fazia, naquela mistura de alegria e satisfação que certamente descontentaria qualquer um que os visse. Quanto daquilo era culpa deles? Assim foram instruídos a fazer, morrer pela pátria, era isso que estavam fazendo, ao menos era isso que tinham em mente, enquanto cruelmente invidiam cada uma das barracas onde os feridos repousavam. Disparo. Sequer olhavam para o rosto de suas vítimas antes de meter-lhes entre os olhos uma bala.

O desabroche abrupto do ataque não foi alertado por nada, as redondezas não estavam sendo bem vigiadas devido ao bombardeio logo cedo, muitos dos militares, assim como eles, estavam empenhados nas operações de resgate. Quando eclodiu, os dois soldados também foram pegos de surpresa, sequer estavam preparados para isso, mesmo seus rifles não estavam ali com eles.

O capitão foi o primeiro a reagir quando ouviu o primeiro disparo, por reflexo levou suas mãos até a cintura, buscando o cabo da arma que estava guardada em seu coldre, mas seus dedos não a acharam ali, também não havia pego-a depois que as sirenes soaram de manhã. O outro soldado também não vacilou, mas ao invés de tentar revidar, agarrou o companheiro ao seu lado puxando-o consigo em direção ao chão, saindo do alcance os inimigos ao se esconderem detrás das caixas na qual antes sentavam.

Wei não conseguiu pensar em nada para lidar com a situação, a pressão do momento e a surpresa eram tamanhas que não conseguiu achar uma saída para aquilo, já haviam sido avistados pelos militares, estavam em um número muito inferior e sequer tinham uma boa posição para que pudessem revidar, seria questão de tempo até serem neutralizados também. Antes que pudesse planejar algo, Hong levou as mãos até o seu rosto, fazendo os dois se encararem. A expressão séria não se encaixava bem em seu rosto, os pares de olhos escuros estavam imóveis focando o do companheiro, a respiração desregulada e os batimentos céleres eram audíveis naquela distância que estavam. Já tinha tomado uma decisão, acariciou o rosto pálido com o polegar, não percebeu quando seus olhos começaram a verter lágrimas, mas sua visão começou a embaçar quando o choro lhe escapuliu, sem desmanchar seus lábios retorcidos ou sua feição tensa. Um pisar apressado e cacofônico ressoou próximo dos dois, detrás da pilha de materiais onde se escondiam. Não restaria muito mais tempo aos dois.

Desceu com as mãos até as suas costas e abraçou o companheiro, a fricção entre as fardas era perceptível enquanto seus braços enlaçavam o corpo, e quando os braços de Wei envolviam também o seu tórax em retribuição, a proximidade entre os dois impedia o calor de escapar e se dissipar naquele ar frio daquele dia incrivelmente azul de inverno. Quanto mais prolongasse aquilo mais riscos corriam, então sem maiores cerimônias teria que explicar o seu plano para ele.

— Vê aquela porta ali atrás? — Fez uma pausa após a pergunta, engoliu em seco antes de continuar, tinha certeza que o amigo conseguia avistar a porta que servia de entrada para uma grande casa atrás de si, não demorou muito para tornar a falar. — Corra para ela quando quiser. — Embora tenha sentido os braços ao redor de si o apertarem mais a cada palavra, para evitar que ele escapasse, não enfrentou muita dificuldade em se soltar do laço, enquanto levava a ao até ao cabo da arma, onde seus dedos agarraram-se firmemente.

Em nenhum momento olhou nos olhos de Wei, não tinha coragem o suficiente para encará-lo, não por medo do que iria ver, mas por temer pôr tudo a tudo a perder agora que não haviam mais razões para perder mais tempo, não podia desperdiçar esse momento por puro capricho. Ignorou qualquer súplica que o rapaz vez também, e afastou-o com a mão que estava livre quando tentou tomar a arma de suas mãos. O som dos passos estavam bastante próximos, e mesmo a pequena vibração do solo evidenciava isso, não adiantava mais tentar prolongar aquele momento.

— Vou tentar ganhar o máximo de tempo que puder, então, por favor, — pediu — não fique aí parado. — E se levantou, empunhando a pistola com a mão direita, buscando o primeiro alvo que visse pela frente.

Antes que ouvisse o primeiro disparo, o outro correu em direção a porta e adentrou na casa, não parou por nenhum instante, não parou quando ouviu o primeiro disparo, não parou quando ouviu o primeiro grito de agonia, esboçou um sorriso inocente quando não reconheceu aquela voz, mas não podia parar, e não o fez. Continuou correndo por dentro da residência, cruzando os corredores pisando forte no assoalho do chão enquanto os demais disparos ecoavam ali dentro, se havia alguma chance, por menor que fosse, de que no final daquilo tudo Hong saísse vivo, ele teria de se agarrar a ela, não deixou de correr, isso era o mais importante. Não conseguiu evitar de pensar que, se obedecesse ao que lhe foi ordenado, na manhã seguinte poderia reencontrar o seu amado.

Não deixou de correr e escapou por uma das janelas no fundo do edifício, o vidro já havia sido quebrado, mas um dos fragmentos que restaram na estrutura amadeirada do objeto, entrou em contato com a mão do homem, lacerando-a bem próxima ao polegar, no espaço entre ele e o dedo indicador. O corte não causou dor nenhuma quando foi feito, no calor do momento, focou-se em continuar correndo até onde aguentasse, onde suas pernas não conseguissem prosseguir e o ar de seus pulmões fossem insuficientes para que avançasse além dali, mas agora quando ele já estava longe do acampamento de onde havia evadido, que não ficava muito imerso no interior da cidade, ele caiu no chão, exausto o suficiente para que sequer tentasse se levantar, sua respiração estava agitada, o suor escorria pelo seu rosto, e conseguiu sentir a sola dos pés machucadas.

Pulsava veloz o coração em seu peito, como se quisesse escapar pela boca, e ficou ali, deitado na grama, encarando o céu naquele tom azul que havia amanhecido sem demais nuvens, com o sol tímido brilhando, enquanto o silêncio ganhava cada vez mais espaço enquanto a sua respiração descompassada se ajustava. Mas, se conseguiu em alguns segundos, deixou de ouvir sua inspiração forte, que puxava o ar puro do campo para seus pulmões, não conseguiu acalmar o coração, que insistiu em sua doer apesar de tudo.

Agora, quando deixou de correr, conseguiu perceber que a ilusão de que, quando acordasse no outro dia, não teria mais o companheiro ao seu lado. A menor possibilidade na qual se agarrou naquele caminho até ali sequer havia existido durante uma fração de segundos, dentre todos os prováveis futuros, não existia um único no qual os dois escapassem dali juntos.


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Notas finais do capítulo

Então pessoal, gostaram? Fiquem tranquilissimos ao opinar sobre quaisquer coisas, adoro esse tipo de interação, é bastante útil receber o feedback de quem lê, para achar eventuais erros ou pontos em que melhor preciso trabalhar.

Espero vê-los aqui outras vezes, até breve.



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