Entre vírgulas escrita por Heloísa Bernardelli


Capítulo 7
Capítulo 6




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— O que está acontecendo?

Lucjan perguntou pouquíssimo desperto, enquanto levantava a cabeça de seu travesseiro. A porta do quarto estava aberta, e as duas outras camas estavam vazias. Sem ter certeza do que o tinha acordado, foi empurrando o corpo para fora da cama e se esforçando para recobrar de uma vez os sentidos.

— Você não pode entrar aqui. — Ouviu Apolonia dizer. Soava quase como um rosnado. — Isso é invasão, e nós vamos chamar a polícia.

— Pola, tudo bem — Cela tentava conciliar.

— Me deixe falar com ele e eu vou embora, já disse!

Os pés de Lucjan pararam de acelerar pelo corredor, e ele achou que era uma boa ideia esperar alguns segundos até a vertigem passar.

— Por favor.

Seu coração correu na frente enquanto ainda tentava lidar com o tremor violento dos joelhos. Disparou pelo trajeto que restava até a escada, depois saltou os degraus, dois ou três por vez. A mão deslizando rápido pelo corrimão, preparada para qualquer desequilíbrio que pudesse vir a acontecer. Estava a meio caminho do andar de baixo quando a viu. Do lado de lá da porta que Apolonia interditava com o próprio corpo, Marlena ergueu a cabeça em sua direção, os olhos perdendo lágrimas pesadas. Ele supôs ser alívio pela maneira como, pouco depois, o corpo dela se desmanchou em seu abraço.

Lucjan arfou diante do impacto e da saudade. Sem conseguir dizer nada, beijou sua testa, os dois lados de sua bochecha, os cabelos que cheiravam exatamente da mesma maneira como ele se recordava.

— Teve dias que eu achei que nunca mais fosse ver você ­— Marlena confessou com a testa apoiada em seu peito, como se quisesse ter uma conversa direta com seu coração. Os olhos apertados escorriam sem parar, e ele podia sentir as mãos dela agarradas com desespero ao tecido de sua camiseta. Se curvou para conseguir apoiar a cabeça no topo da dela, na tentativa de acomodá-la um pouco melhor contra seu corpo. — Eu nunca me perdoaria, Lout. Eu nunca, nunca mais me perdoaria.

— Mena — Lucjan chamou com cuidado, mas só o que Marlena fez foi se aferrar ainda mais a ele.

— Me desculpa.

Nada, desde sua postura frágil até o tom dolorido de suas palavras, nada se parecia com a Marlena que Lucjan conhecia.

— Eu deveria estar do seu lado, eu prometi que estaria.

— Você está. — Ele tentou, colocando o rosto dela em suas mãos. — Está aqui agora.

Lucjan esperou, em silêncio e com os próprios olhos encharcados, enquanto Marlena o observava. Os dedos trêmulos tocando, quase sem encostar, diferentes pontos de seu rosto.

— Olha o que fizeram com você — ela soprou, descobrindo os hematomas que agora já tinham desaparecido quase completamente. Parecia tão machucada quanto ele.

— Tá tudo bem — prometeu. — Eu já tô bem melhor. Apolonia disse até que estou começando a parecer uma pessoa agora — brincou, olhando por cima do ombro de Marlena para procurar Pola, mas não havia ninguém mais ao redor.

— Me desculpa, Lout — Marlena pediu bem baixinho. — Eu nunca deveria ter deixado que a minha mágoa atravessasse a sua desse jeito, eu não deveria ter ficado tão longe.

— Mena. — E apesar de soar paciente, Lucjan também pareceu muito sério. —Você é a única pessoa no mundo que tem todo o direito de se sentir magoada comigo. Meus pais, meus irmãos, eu não machuquei nenhum deles com o que aconteceu. Se tem alguém com liberdade para escolher não ficar do meu lado nesse momento, é você.

Marlena negou rapidamente com a cabeça, e, mesmo se esticando na ponta dos pés, foi preciso que Lucjan abaixasse para que eles conseguissem se abraçar propriamente.

— Está pronto para ir pra casa?

Lucjan não respondeu imediatamente, porque não conseguia parar de repetir a pergunta dela dentro de sua cabeça. Gostaria que fosse simples como Marlena fazia parecer. Sentia como se tivesse esperado todos os dias por aquele convite, e agora ele não fizesse sentido.

Era o que queria, não era? Ter para onde ir quando decidisse que não podia mais ficar. Sempre que sozinho, se pegava levantando alguns planos. Imaginava seu quarto alugado em um apartamento na Varsóvia, um ou dois colegas para dividir as contas, um cargo ainda não tão legal em qualquer uma das muitas escolas de idiomas. Talvez aulas particulares para complementar a renda. Tinha dias em que ia um pouco mais longe e passeava pelos cômodos de um lugar que era só seu. Não precisaria muito. Cozinha e sala poderiam dividir um mesmo espaço, desde que seu quarto tivesse lugar para uma cama grande o suficiente, e que o espelho do banheiro ficasse na altura de seu rosto pela primeira vez desde que não era mais uma criança. Talvez até pudesse ter o sofá preto que queria. Ah, e uma daquelas máquinas de fazer pipoca.

Mas quando Marlena fez a proposta, quando a chance de ir estava bem ali, agarrada ao seu corpo, Lucjan não soube o que responder.

— Lout?

Ele se ergueu dos braços dela, os olhos um pouco esquivos.

— Eu não sei, Mena.

Marlena não pareceu ofendida, mas ele sabia que estava.

— Não é que eu não queira ir — ele acrescentou rapidamente. — Mas você perguntou sobre estar pronto e, bem, eu não sei se eu tô.

— Certo — ela soprou e levou as mãos à própria cintura. Lucjan a observou respirar fundo, depois encará-lo pacientemente. — Você não precisa vir agora. E não precisa vir nunca se não quiser, mas você pode — Marlena disse, com a desenvoltura que Lucjan tanto admirava. Ela sempre dizia o que queria dizer. Nada nas entrelinhas. Sem metáforas ou coisas subentendidas. — O que quero dizer é que você tem a opção de vir. Eu me mudei do meu dormitório para um apartamento de dois quartos assim que soube que você estava em um abrigo. Parece um pouco precipitado levando em consideração o fato de que ninguém queria me dar o endereço daqui, mas... — Ela pausou, provavelmente porque precisava de fôlego, depois deu de ombros. — Quando quiser, eu usei nosso dinheiro para comprar uma cama para você, e aquele jogo de xícaras cinzas que nós juramos que teríamos quando fossemos morar juntos.

— Ok. Você está sendo altamente persuasiva agora.

— Eu sei, me desculpa. — Ela se rendeu, com a cabeça deitada para trás. — É difícil controlar quando eu quero tanto que você venha comigo.

Lucjan riu, enxugando os olhos e o nariz.

— Eu vou.

Marlena ergueu a cabeça de uma só vez, e Lucjan temeu que os olhos dela, de tão arregalados, rolassem para fora da órbita.

— Não hoje — ele adiantou. — Eu preciso conversar com o pessoal e, você sabe, ficar pronto.

— Você pode vir no começo do mês — Marlena disparou, colocando as mãos no alto de seus braços. Iluminada. Ela parecia mesmo reluzir. — Assim eu vou ter tempo de achar o apartamento de dois quartos e comprar a cama.

— Marlena!

— É brincadeira! — ela gritou, se divertindo com a própria piada. — É brincadeira, está tudo pronto para quando você chegar.

— Você acha que... — Contendo um suspiro, Lucjan tentou encontrar as palavras certas. Talvez algum dia tivesse a destreza em diálogos que Marlena tinha. — Você está pronta? Eu não quero que se sacrifique, Mena. Eu realmente não suportaria descobrir, em algum momento lá na frente, que você tá fazendo isso por culpa ou pena.

— Eu tô fazendo isso porque sou sua melhor amiga, Lucjan. É o que melhores amigos fazem.

Ele lambeu os lábios lentamente, tentando ganhar tempo e encontrar um jeito de lidar com a emoção que o sufocava lentamente.

— Sobre estar pronto, Lout, isso é tão superestimado — ela murmurou. — Nós só precisamos estar prontos para admitir que nunca estamos prontos, e aí as coisas começam a caminhar.

Lucjan observou o sorriso esperto que desenhava os lábios dela. Tinha quase certeza de que estava saltitando muito discretamente.

— Coragem, homem! — gritou de repente. — O pior já passou — Marlena prometeu, depois se esticou para ganhar outro abraço. Este mais demorado e menos aflito. — Eu venho te buscar no primeiro dia de julho.

— Eu vou estar pronto para admitir que nunca vou estar pronto.

—--

Lucjan sobressaltou quando um vulto passou diante de seu rosto e pousou em seu colchão, onde ele dobrava as pouquíssimas peças de roupa que tinha conseguido – algumas de doações que o pessoal do abrigo trouxera, outras que ele acabara comprando quando finalmente recuperara o acesso à sua conta no banco.

— Ei — exclamou, pegando a mochila azul-marinho que caíra sobre a cama. Apolonia estava encostada no batente com um meio sorriso. — Eu prometo que te envio de volta assim que chegar na Breslávia.

— Eu prometo que vou até lá te dar um soco se fizer isso — ela respondeu, girando impacientemente os olhos. — É um presente. Desses comprados na loja e tudo.

— Pola — Lucjan cantarolou. — Você não precisava, é sério.

— Você estava pensando em fazer o quê? Enrolar sua roupa em uma toalha de mesa e pendurar no cabo da vassoura?

Ele gargalhou verdadeiramente, negando com a cabeça enquanto lhe assistia vir se sentar em sua cama, com as costas apoiadas na parede e as pernas enroscadas uma na outra.

— Obrigado — ele disse, olhando para a mochila outra vez. — É bem bonita.

Apolonia não disse nada. Suas bochechas desesperadamente coradas causaram graça no rapaz, mas ele tratou de disfarçar para não a deixar ainda mais constrangida. Em vez disso, abriu a bolsa e começou a colocar sua roupa e documentos dentro dela.

— Você acha que vai ser estranho? — ele perguntou, porque gastara todos os últimos dias se preocupando em silêncio.

— Acho.

— Sério? — Lucjan disparou, torcendo para que ela começasse a rir.

— Sério — Apolonia murmurou, cruzando os braços. — Ela é sua ex. Como isso poderia não ser estranho?

Ela tinha razão, Lucjan pensou.

— Não quer dizer que vá ser estranho para sempre. Mas vai ser estranho no começo, e depois todos os outros dias.

— Pola...

A moça deu risada. Lucjan afastou a mochila para o lado e se sentou junto dela.

— Escuta, o que você acharia se ela aparecesse com outro cara? Porque em algum momento ela vai ter um namorado. E você também.

Lucjan não tinha pensado sobre isso e, mesmo naquele momento, tentando imaginar algo do tipo, não conseguia.

— Não sei, vou descobrir quando acontecer.

— Bem, sim.

— Você acha que morar comigo pode ser muito difícil pra ela?

— Nah! ­— Apolonia abanou a mão com descaso. — Você não é tão irresistível assim, Lucjan. Ela vai sobreviver.

Os dois embalaram em uma crise de riso que Lucjan sabia que faria muita falta quando ela não estivesse por perto.

— Vai dar tudo certo — Apolonia garantiu. — Vai ser esquisito, mas vocês vão descobrir o que fazer com isso. Senão você encontra outro lugar. Não é como se ela estivesse comprando você, sabe? Não é um ponto final. Só outra vírgula.

Lucjan agitou a cabeça brevemente e tratou de deixar as preocupações para outra hora, quando elas se tornassem inadiáveis.

— Vamos descer. Roza fez um almoço de despedida. Logo sua nova colega de quarto aparece para te buscar.

— Você está com ciúmes? — Lucjan perguntou enquanto a seguia pelo corredor. Diferentemente do que esperava, Apolonia respondeu à sua provocação com uma risada.

— Eu estou.

— Agora eu vou ter que te abraçar.

E antes que ela tivesse a chance de correr, como Lucjan sabia que faria, ele a envelopou em um abraço apertado. Ela nunca correspondia, e não o fez também naquele dia. Lucjan não se importava. Apolonia tinha suas maneiras de demonstrar afeto, e todas elas serviam muito bem.

Quando chegaram no piso inferior, Lucjan comemorou com um sorriso a reunião de rostos familiares ao redor da mesa. Estava grato que aquele primeiro de julho tivesse caído em um domingo e todos pudessem estar ali. Seria difícil, e ele não duvidou disso nem por um segundo, mas fez questão de se despedir de cada um deles e deixar que soubessem o quanto tinham sido essenciais naquele período. Como tinham feito com que ele se percebesse feliz, apesar de tudo, e contribuído para que se erguesse até estar disposto a descobrir o que tinha por vir. Sentia-se até um pouco mais destemido agora.

Marlena chegou a tempo para a sobremesa, que Kalina a convenceu a experimentar. Gastaram ainda um tempo beliscando as sobras e conversando sobre qualquer coisa que não fosse a despedida iminente. Lucjan não sabia se era porque queriam adiar tanto quanto ele o mal-estar do adeus, ou se já estavam tão acostumados com gente de todo o tipo indo e vindo que não se incomodavam mais tanto assim.

— Aqui está — Kalina murmurou, estendendo uma agenda pequena em sua direção, logo que eles se afastaram do abraço. Ela havia ficado por último, e Lucjan tinha ido bem na tarefa de segurar o choro nos primeiros deles, agora nem tanto. — Tem o telefone de todo mundo aqui. Quando você conseguir um celular novo, nos conte.

— Obrigado, Lina — ele disse, enxugando os olhos com a palma da mão. — Obrigado, pessoal. Vocês — mas depois de todas as vezes que os agradeceu, Lucjan achou que soaria repetitivo —, vocês.

— Vá para casa, querido — Cela soprou, com as mãos sobre o peito e os olhos úmidos cintilando. — Você vai ter uma vida fantástica.

— Escute o que ela diz, Big Man — Apolonia brincou, com a voz embargada. Lucjan e ela gargalharam, apesar das lágrimas.

— É — ele concordou. — Bruxas sabem das coisas.

Com um sorriso carinhoso, Cela concluiu:

— Nós sabemos.

Através da janela do táxi que Marlena tinha chamado para os levar até a estação, Lucjan observou o que havia sido a sua família pelas últimas semanas, parados na mesma varanda onde tinham vindo para recebê-lo quando chegara. Ele não tinha dúvida alguma de que nunca mais se veriam. Poderiam trocar telefones e prometer reencontros, garantir que nunca se esqueceriam um do outro, e talvez de fato não se esquecessem, mas cada um seguiria o próprio caminho, dentro ou fora do Alberta, e logo aqueles dias seriam uma memória saudosa e passageira.

Pensar sobre isso tornou muito difícil entregar sua passagem ao cobrador e entrar naquele trem com destino à Breslávia. Ainda que Marlena estivesse logo atrás, com as mãos no alto de suas costas conduzindo-o pelo corredor vazio à procura de suas poltronas. Ainda que soubesse que agora estava muito mais próximo de tudo o que planejara para o próprio futuro, e que os dias por vir de maneira alguma seriam ruins. Lucjan sentiu-se exposto, tomado de uma fragilidade com a qual não sabia muito bem como lidar. Como se tivesse vivido por muito tempo dentro de uma cúpula de cuidado e afeto, e ela de repente tivesse se rompido. Estava de volta ao mundo que o hostilizava por ser quem era e não achava que poderia existir nada mais assustador do que isso.

Marlena, por sua vez, parecia puro entusiasmo.

Atravessou as cinco horas de viagem falando sem parar. Contou sobre o apartamento, sobre a mobília, sobre o bairro e a distância até o centro, sobre as escolas de idiomas que tinha consultado atrás de uma vaga de emprego para ele. Lucjan foi passeando pelo discurso dela, visitando os lugares que descrevia, se alimentando da segurança com a qual ela garantia dias bonitos.

— Como você soube? — perguntou com cuidado.

Tinha a impressão de que ele e Marlena tinham feito um acordo silencioso de não falar sobre aquilo. Ela não tinha deixado para trás nenhuma pista sobre isso, e ele estivera o tempo todo evitando perguntar. Não sabia bem por quê. E provavelmente ela também não, ele suspeitou pelo suspiro pesado no qual ela se desfez, como se estivessem se controlando por muito tempo e agora enfim tivessem se livrado do peso.

— Jan — ela murmurou, de repente mais quieta e pensativa. — Nós saímos em uma mesma turma uns dias atrás. Edek tinha contado a ele sobre o que aconteceu. Quando conversamos naquela noite, Jan achou que eu até soubesse. — Os olhos delicados dela vieram em sua direção. — Eu fui até a sua casa e conversei com a sua mãe.

Lucjan sentiu a respiração ficar presa na metade do caminho. Seu coração surpreso desequilibrou dentro do peito.

— Ela me disse que não sabia onde você estava — Marlena continuou, a voz perdendo a energia de sempre. Até seus olhos pareciam mais embaçados agora. — O hospital não passou nenhuma informação por telefone, e seu pai a proibiu de sair. Ela disse que Edek tentou te visitar duas vezes, na primeira não deixaram que ele entrasse porque, você sabe, acharam perigoso. Na segunda você já tinha saído.

Lucjan sentia tudo queimar. A garganta, o nariz, os olhos e também algum lugar por trás deles. Fazendo um esforço incrível, tentou engolir o caroço de ansiedade que o sufocava.

— Como ela está? — perguntou bem baixinho, como se não quisesse mesmo saber.

As feições de Marlena se rearranjaram, as sobrancelhas foram cedendo, e os olhos desviaram dos dele. Os lábios se espremeram em uma linha, e seu queixo tremia suavemente. Ela se apressou em enxugar as primeiras lágrimas, primeiro as que caíram dos próprios olhos, depois as que escorreram dos de Lucjan.

— Eu não posso dizer o que você quer ouvir — Marlena lamentou, colocando a mão na dele. — Eu sei o quanto é importante pra você que ela esteja bem, Lout, mas ela ama você mais do que qualquer outra coisa nesse mundo e sabe que não pode ter você de volta.

— Nós podíamos ter ido embora juntos — argumentou, experimentando algumas lágrimas que escaparam para dentro de seus lábios. — Eu falei tantas vezes antes disso tudo acontecer. Nós estaríamos tão longe agora.

— Lout — Marlena chamou, se ajoelhando na própria poltrona para colocar as mãos em seu rosto. — Não pode culpá-la por isso. Eu sei que é difícil, que parece que ela está te abandonando, ou que não te ama tanto assim. Sei que você queria que ela estivesse aqui com você, mas ela ainda não conseguiu encontrar o jeito de se livrar das amarras. Mulheres como a sua mãe, da idade dela, da geração dela, foram criadas para ficar, Lout. Mesmo quando tudo está ruindo, mesmo quando querem muito sair. Elas ficam.

Ele cedeu um suspiro pesado e rendido, se curvando para apoiar a testa no ombro magro de Marlena. Ela o abraçou com a força de sempre, como se, mesmo tão menor que ele, fosse capaz de o proteger com uma eficiência que ninguém mais tinha.

— Eu prometi a ela que cuidaria de você até que pudessem estar juntos outra vez — Marlena sussurrou entre seus cabelos, esfregando carinhosamente suas costas.

— Você acha que algum dia eu vou voltar a vê-la?

Marlena estreitou os braços ao seu redor, depois beijou demoradamente sua cabeça.

— Eu vou fazer tudo que puder para que sim.

—--

O flat que Marlena encontrara ficava a quase quatro quilômetros da estação onde desembarcaram. Ela estava pronta para chamar um táxi, mas Lucjan quis ir andando. Gostava da Breslávia. Ainda se lembrava da primeira vez que tinha acompanhado Marlena até ali para seu primeiro fim de semana na nova cidade, pouco antes do início das aulas. Tinha sido cativado pelo clima de tudo ao redor. Não era só por ser maior e mais agitada que Tarnów. Havia algo para além disso, uma vivacidade e uma liberdade. A sensação de ser só mais um na multidão e, ainda assim, ou por causa disso, tão único. Ninguém além deles sabia quem eram naqueles primeiros dias. Só mais um casal, que podia ser de qualquer lugar do mundo, passeando pelas ruas espaçosas e movimentadas.

Lucjan reviveu aquela sensação com uma nostalgia prazerosa. Agora era diferente. Marlena já estava tão familiarizada que parecia ter nascido ali. Na verdade, tinha a impressão de que ela já tinha vindo ao mundo com aquela praticidade e despreocupação das cidades maiores, como se fosse muito grande para Tarnów. Agora estava em casa.

Subiram pelas escadas até o quarto dos seis andares do edifício, cada um deles com dois apartamentos pequenos. Marlena parou na porta 41 e fuçou em sua bolsa até encontrar uma caixa pequena, que estendeu a Lucjan.

— O que é isso? — perguntou, já desfazendo o laço da fitinha de cetim para conseguir se livrar da tampa. Dentro, encontrou um conjunto de duas chaves, acompanhadas de um chaveiro de âncora.

— Bem-vindo.

Lucjan sorriu com um afeto explosivo no peito, depois se curvou para beijar o topo da cabeça dela, como em um agradecimento mudo. Ele próprio destrancou a porta do flat, e então encarou o corredor curto e estreito a sua frente.

Marlena se esticou para acender as luzes no interruptor da entrada, mas deixou que ele fosse adiante. De seu lado direito, um espelho cobria quase toda a parede, e do esquerdo havia a primeira porta, onde ficava o banheiro. Não era muito espaçoso, mas tinha um bom chuveiro e uma máquina de lavar encaixada no armário embutido.

Mais à frente, as paredes se abriam para um cômodo amplo e bem-iluminado. Ali ficavam a cozinha pequena e planejada, uma mesa de madeira com lugar para quatro e, logo depois, uma sala de TV. Ela contava com uma estante grande e um sofá cinza e espaçoso que se estendia em L. A porta de vidro no canto dava acesso a uma sacada estreita, onde Marlena tinha conseguido encaixar apenas dois pufes cor-de-rosa que ficavam em seu antigo dormitório. Dali, podiam apreciar um canto bonito do rio Oder, que serpenteava pelo meio da Breslávia.

O corredor dos quartos era ainda menor que o de entrada, e os cômodos também não eram muito vastos, mas o suficiente para caber uma cama grande, um guarda-roupa embutido e uma escrivaninha, que Marlena tinha feito questão de encaixar na quina entre uma parede e outra, junto a uma cadeira giratória e claramente confortável.

— O que achou? — ela perguntou, com o corpo escorado no batente e um sorriso ansioso.

— Eu não poderia ter gostado mais.

Lucjan achou que ela iria estourar de alegria quando veio saltitando para o abraçar. Entusiasmada, mostrou o espaço do armário, imaginando onde ele poderia guardar cada coisa.

— As calças podem ficar aqui, e talvez pudéssemos encaixar sapatos nessa parte — dizia quase sem tomar fôlego. Depois o puxou pela mão de volta para a sala, mostrando onde estavam todas as coisas que pudesse precisar. Talheres, louça. Os copos, que estavam cuidadosamente separados das xícaras. Cafeteira, torradeira, panelas. Explicou como funcionava o forno elétrico, o fogão cooktop e o exaustor.

— Aqui ficam os temperos e os chás. Na parte de cima temos... Hm, biscoitos, e macarrão, e chocolates — Marlena dizia sobre a ponta dos pés, se esticando para espiar a prateleira alta. — Não é muito. Eu achei que seria melhor esperar você chegar para fazermos uma compra de verdade.

— Acho que podemos nos virar com o que temos. Um espaguete com molho de chocolate e biscoitos para dar uma textura. Parece bom.

— Ou podemos — ela começou, se apressando na direção da sala e abrindo uma das gavetas da estante, de onde tirou dezenas de folhetos — pedir alguma coisa!

— Pizza será.

— Deus, nós realmente vamos viver os melhores dias das nossas vidas!

Lucjan se deixou rir, assistindo à criatura miúda e vermelha de entusiasmo correr na direção do telefone.

— Tudo bem se eu for tomar um banho enquanto isso?

— Vá — ela concordou. — Torneira direita quente, esquerda fria.

Depois de pegar uma das poucas trocas de roupa que tinha em sua mochila, Lucjan se encaminhou para o banheiro. Escolheu uma das toalhas novas e macias, que Marlena tinha deixado no gabinete embaixo da pia, e pendurou em um suporte de aço ao lado do box. Se livrou das roupas que usava, deixando-as na prateleira sobre a máquina de lavar; precisaria conferir como usá-la mais tarde.

Sentiu que poderia desmanchar sob o jato pesado de água morna. Não fazia a menor ideia de como precisava estar ali aquela noite, depois da despedida que agora parecia ter acontecido dias atrás, da viagem longa e da conversa dura sobre Liliana. Depois de chegar no apartamento bonito e acolhedor, que seria sua nova casa por tempo indeterminado.

Quando saiu, depois de se enxugar e enrolar a toalha no quadril, parou em frente ao espelho e o desembaçou com a palma da mão, apenas para descobrir que dali só conseguia ver refletido o fim de seu queixo para baixo. Não deveria significar tanto, mas fez com que se sentisse imediatamente exausto, como se tivesse percorrido um longo caminho para casa, mas descobrisse só depois que se enganara quanto ao destino.

Ainda não, pensou.

Ainda não.


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Notas finais do capítulo

Oi, bebês!
Aqui vamos nós, embarcar com o Lucjan para outro lugar,
e outro período da vida dele.
O que estão esperando dessa nova fase?
Me contem o que estão achando até aqui.

Muito obrigada pela companhia, vocês não imaginam
quão significante é poder compartilhar Lucjan com vocês.

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E quem quiser me seguir no Instagram, meu user é @lobernardelli

Tenham um ótimo resto de semana,
e até o próximo capítulo.

Xx Lô



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