Entre vírgulas escrita por Heloísa Bernardelli


Capítulo 6
Capítulo 5




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— Bom dia, querido — Cela cantarolou quando percebeu a presença de Lucjan tão logo ele entrou na cozinha.

— Bom dia, Cela.

— Como está se sentindo hoje? — ela perguntou, abandonando as frutas que lavava e se voltando em sua direção.

— Bem. — Mas sua falta de convicção ficou clara para a mulher, que apenas continuou olhando. Sem arquear de sobrancelhas, sem olhos espremidos, sem sorriso irônico. Mesmo assim, Lucjan suspirou e se rendeu. — Eu dormi mal. Foi o primeiro dia sem os remédios, acho que meu corpo estranhou.

— Ah, é natural que sim. Hoje à noite vamos preparar um chá para você, não se preocupe.

Lucjan sorriu em resposta, com gratidão e afeto crescente.

— Quer me ajudar aqui? — Cela perguntou e olhou para a bancada da pia, como se pensasse em que ele poderia contribuir.

— Claro. Eu fico com as panquecas.

As duas últimas semanas tinham sido provavelmente as mais confusas da vida de Lucjan. Mais até do que as primeiras depois do beijo com Damian. Sempre precisava se esforçar pela manhã, logo que acordava, para evocar a lembrança do que tinha acontecido e onde tinha ido parar. Levava apenas alguns segundos, é verdade, mas ainda assim era aterrorizante e absurdamente cansativo.

Tinha dias menos difíceis, mas eles passavam muito rápido. Os outros, aqueles em que mal conseguia encontrar ânimo para sair da cama, estes se arrastavam. Quanto tempo podia caber em doze horas? Porque às vezes tinha a impressão de que uma semana inteira havia se passado só entre o horário do almoço e o anoitecer.

Apesar disso, daquela dor incrível que não tinha mais muito a ver com seu corpo machucado, e daquela tristeza pesada que arrastava consigo de um cômodo para outro, Lucjan se esforçava. Mesmo nas manhãs em que tudo o que queria era desaparecer, e havia um monte delas, se obrigava a sair da cama antes que não conseguisse mais. Depois, pelo resto do dia, ia vivendo.

Era para ser mais fácil quando encontrava Cela na cozinha. Ela sempre perguntava como é que ele estava se sentindo. Preparava os melhores chás e tinha um abraço que era quase terapêutico. Mas Cela fazia com que se lembrasse de todos os cafés da manhã que ele nunca mais faria com Liliana. O abraço para o qual não podia mais correr. Lucjan nunca disse isso a ela. Pelo contrário, estava sempre se oferecendo para ajudar, aceitando os chás, se encolhendo em seu colo, deixando que ela oferecesse o carinho e o cuidado que ele não tinha como negar que precisava. Por outro lado, tinha a impressão de que não era algo que necessitasse ser dito. Cela provavelmente já sabia, só não havia nada que pudesse fazer a respeito.

Era uma dor que ele precisava sentir, Lucjan concluiu. Ninguém podia amenizar ou tirar isso dele. Precisaria encontrar um jeito de lidar.

— Cadê meus bebês?

Kalina disse desde a porta de entrada, melódica e carinhosa. Logo seu rosto apareceu na cozinha, e era como se trouxesse junto a claridade e o calor do dia lá fora. Retirou o grande chapéu que usava para se proteger do sol e foi se aproximando de Cela com seus braços abertos. Tinha dito a ele, dias depois de sua chegada, enquanto conversavam sobre um amontoado de coisas pessoais, que era albina. E isso, Lucjan concluiu, explicava seus olhos lilases e, provavelmente, a cor que tinham escolhido para pintar a casa.

— Como está, Lucjan?

Kalina sempre pronunciava seu nome do jeito errado – que ele descobrira na faculdade ser o jeito certo –, algo que soava como Lutcian e que Liliana costumava detestar. Se lembrava de dezenas de vezes em que a mãe corrigira alguém. Ele próprio nunca tinha dado muita importância a isso. Achava até que soava como um apelido.

— Bem, e você, Kali?

— Estou ótima — ela murmurou, mas soava meio manhosa com seu corpo todo enrolado nos braços carinhosos de Cela. — Cadê o resto? — perguntou enquanto roubava pouco discretamente uma porção de mirtilo que havia sobrado da receita do bolo que estava no forno.

— Ainda dormindo — a mulher respondeu. — Quer um chá?

— Obrigada, Cela, vou esperar pelo café — Kalina disse, depois veio colocar um braço ao redor da cintura de Lucjan. — Posso falar com você?

— Claro.

Os dois caminharam juntos e em silêncio até a sala, escolhendo poltronas próximas uma da outra. Lucjan não sabia pelo que esperar, mas havia sempre uma parte sua, muito esperançosa, que torcia por notícias da mãe.

— Veja só, conheço uma psicóloga, o nome dela é Edyth — Kalina começou. —Ela normalmente vem de quinze em quinze dias aqui no abrigo para fazer uma espécie de grupo terapêutico.

Lucjan concordou brevemente com a cabeça. Ele sabia que não era só isso. Se fosse, talvez Kalina não precisasse ter tanto cuidado para conversar, como estava fazendo.

— Normalmente, quando novos moradores chegam, ela gosta de conversar a sós, hm... Uma espécie de consulta individual. Mas não é obrigatório, ok? Nem mesmo o grupo — Kalina se apressou a dizer, colocando uma mão em seu joelho. — É só se você quiser, se achar que pode ser interessante.

— Está bem — Lucjan murmurou. — Quando ela vem?

— Hoje à tarde, mas você não precisa decidir hoje. De repente vocês podem deixar para a próxima visita.

— O que é que as mocinhas estão cochichando? — Apolonia perguntou, parada no pé da escada. A voz rouca de sono, os cabelos absurdamente desordenados.

— Nada que seja da sua conta — Kalina brincou, depois fez um carinho gentil no joelho de Lucjan e se levantou. — Pense tranquilo sobre isso, ok?

— Obrigado, Kali.

Exceto por Ferdynand, que era muito taciturno para se reunir a eles no café da manhã, o restante se acomodou ao redor da mesa logo que o bolo, que era o item que faltava, ficou pronto.

Lucjan gostava de observá-los e ver como tinham conseguido sair bem, na medida do possível, de suas tragédias particulares. Admirava a potência do grupo. O destemor com que cada um deles era feliz, apesar do que tinha passado e de tudo o que, sabia, ainda viria a passar. Mesmo com as despedidas e o afastamento por vezes solitário. Apesar de terem deixado alguns planos para trás, e construído outros que coubessem na nova realidade, e que essa realidade fosse mais dura do que costumavam admitir no dia a dia. Estar com eles fazia com que Lucjan quisesse ser corajoso também.

Por enquanto, ainda tinha medo.

Tinha medo do que não sabia, do que não conhecia. Do presente confuso, do futuro incerto. Temia por tudo o que havia deixado para trás, duvidava do que conquistaria dali para frente. E se não houvesse nada para depois? E se acabasse por descumprir a promessa que havia feito a si mesmo, a de que, assim que estivesse com seus documentos novos em mãos, procuraria um novo emprego e um novo lugar para viver? E se, assim como Cela e Apolonia, fosse ficando, e ficando? Não que pensasse que elas tinham feito uma decisão ruim, ou que eram infelizes em suas escolhas, bem pelo contrário. Achava incrível como tinham encontrado tudo o que precisavam ali. Sentiam-se em casa, estavam em casa.

O medo de Lucjan não era ficar porque queria. Era ficar porque não tinha como ou para onde ir.

Tinha medo da insatisfação, do descontentamento. Tinha medo que nunca conseguisse ser predominantemente feliz. Que os baixos fossem mais recorrentes que os altos. Que não se recuperasse. Que se rendesse ao amargo, à aspereza, ao ressentimento. Não queria ser essa pessoa, e temia que não pudesse evitar.

— Você está pensando muito alto — Cela murmurou para ele enquanto se sentava ao seu lado no degrau da varanda, estendendo um copo de suco de laranja. — Quer dividir essas rugas todas?

— Não quero que se preocupe — Lucjan disse, e aquela era apenas parte da verdade. Não queria mesmo incomodar, mas também não queria verbalizar nada daquilo.

— Eu já estou.

Lucjan se desculpou com os olhos enquanto a mão de Cela subia e descia por suas costas.

— Querido, você não imagina a criatura linda que é — ela disse, bem baixinho, mas com uma força extraordinária. — Nada do que aconteceu muda isso, Lucjan. Nada do que disseram ou fizeram. Nada do que ainda vão dizer e fazer. Nada vai tirar do seu caminho a vida fantástica que está esperando por você.

Cela enxugou delicadamente as lágrimas que ele, sem querer, deixou cair.

— Se você pudesse ver — ela sussurrou, como se fosse um segredo. — Se pudesse ver, começaria a se alegrar desde hoje. Confie em mim, você vai ser tão feliz!

— Eu confio.

E ele confiava. Apesar daquele grito desesperado dizendo para que tomasse cuidado com esperanças que se sustentassem na intuição de alguém que acabara de conhecer, Lucjan confiava.

—--

Edyth chegou no meio da tarde e foi recebida com entusiasmo por parte dos moradores. Aparentemente gostavam do momento que ela proporcionava a eles sábado sim e outro não. Cela havia preparado pączki, que cheiravam exatamente como os de Marlena, e uma jarra grande de água aromatizada com frutas cítricas, da qual ninguém pôde sequer se aproximar até a chegada da psicóloga.

Kalina quem apresentou Lucjan a ela, e, apesar de muito séria e contida, Edyth segurou sua mão com firmeza e acolhimento, como se quisesse assegurá-lo uma confiança que ele não tinha muita certeza de que sentia.

Ficou decidido, sem grandes rodeios, que Lucjan não participaria do grupo aquele dia. A sugestão veio de Edyth. Explicou que ele logo estaria pronto para entrar no ritmo da terapia coletiva que já acontecia antes de sua chegada, e talvez fosse ficar mais à vontade caso conversasse somente com ela na primeira vez.

Lucjan duvidou disso enquanto subia para seu quarto, longe da sala onde os outros, novamente exceto por Ferdynand, se reuniam. Pensou que seria muito mais fácil caso não tivesse a atenção voltada unicamente para si, para seu relato. Aquele foco em sua dor não parecia muito agradável. Por outro lado, não conseguia se imaginar falando disso abertamente. Talvez se fossem só ele e Cela. Ou só ele e Apolonia. Mas não tinha tido tempo de criar intimidade com Roza, Tomasz e Vincent. Conversavam e se divertiam, mas era diferente de sentar e expor seu avesso – que naquele momento não estava muito bonito, tinha que reconhecer.

Deitou-se em sua cama e ensaiou tudo o que diria pelas próximas horas.

Experimentou diferentes maneiras de começar. Talvez falasse de uma vez que tinha beijado um cara e, desde então, tudo estava uma bagunça. Ou então poderia voltar um pouco mais e falar sobre sua infância, a família, Marlena. Talvez deixasse as confissões mais dolorosas para outro encontro, e até lá quem sabe se sentisse mais a fim de fazer isso.

Estava com tudo pronto em sua cabeça quando Edyth bateu à porta.

— Com licença, Lucjan, posso entrar?

— Claro! — ele disparou e se levantou. Sentia-se verdadeiramente nervoso, o que só fez piorar quando ela fechou a porta atrás de si.

— Podemos conversar por aqui?

— Sim — respondeu num tom estranho, desafinado. Edyth se acomodou na cama de Apolonia, que era a mais próxima da sua. Ele, meio sem saber o que fazer, se sentou na beirada do colchão, de frente para ela. — Eu preciso me deitar? Ou...

— Como se sentir mais à vontade, Lucjan.

Ele a observou em silêncio e enroscou uma mão na outra para conter o impulso ansioso de estralar todos os dedos. Edyth não trazia nada. Nenhum gravador. Nenhum bloco de notas. Não se parecia muito com os terapeutas dos filmes, Lucjan pensou.

Muito tranquila, ela perguntou a ele se já tinha tido algum tipo de experiência como aquela e, ao que Lucjan respondeu negativamente, Edyth explicou com prontidão e clareza como gostava de trabalhar. Quando ela terminou, as pernas dele já não chacoalhavam como antes.

Enquanto ela o conduzia através do básico, sua idade, com o que trabalhava, se havia estudado, Lucjan ficou esperando pelo momento em que ela finalmente chegaria ao motivo pelo qual ele estava ali, com os hematomas e a tristeza ainda por desaparecer. Não aconteceu. Não da maneira como ele previra, pelo menos. Não tinha muita certeza de como ela tinha feito aquilo, mas não se sentiu obrigado, nem mesmo compelido, a falar sobre Damian, sua sexualidade, a surra do irmão, a chegada ao abrigo. Ainda assim, em algum momento quis contar, e então contou.

Falou sem parar por vinte minutos, depois chorou pelos próximos vinte. Edyth não o interrompeu em nenhum dos dois processos. Não ficou incomodada com seu sofrimento, não tentou acalmá-lo, e também não o forçou a continuar quando ele não podia. Apenas ofereceu sua presença sólida e a escuta paciente.

— Desculpa — ele soprou quando finalmente conseguiu se acalmar.

— Pelo que está se desculpando?

Ele negou com a cabeça, se esforçando para não voltar a chorar.

— Eu estou um pouco — e respirou fundo, enxugando os olhos e nariz, os lábios tremendo sem parar —, eu vou tentar me controlar.

— Se eu puder, quero te pedir que não faça isso — Edyth disse. — Este não é o momento e nem o espaço para esconder sua aflição, Lucjan. Só consigo te ajudar se você for honesto comigo.

Lucjan concordou imediatamente.

— Pelo que está se desculpando?

Ele ergueu os olhos confusos em direção a ela. Não tinha acabado de responder àquela pergunta?

Com um tremor violento que vinha de dentro e se manifestava em seus joelhos, ele entendeu. Edyth não estava falando sobre sua crise de choro, e ele também não.

— Acha que é culpa sua? — ela perguntou de mansinho.

Lucjan pensou em Marlena, em seus olhos confusos e decepcionados. Depois em Liliana, em todas as vezes que pedira a ele para não contar nada para ninguém, nos gritos apavorados por meio dos quais implorava a Bartosz que não o matasse.

— O que acha de nos vermos outra vez na terça-feira? E aí você me responde.

Lucjan ergueu a cabeça imediatamente, os olhos encharcados confundindo a imagem de Edyth. Concordou com a cabeça, enxugando o rosto mais uma e pela última vez.

— Obrigada por compartilhar tudo isso comigo, Lucjan, eu sei o quanto é difícil e o quanto de esforço você precisou fazer — ela disse enquanto se levantava. Ele, exausto como nunca, fez o mesmo. — Se você se sentir mal e quiser conversar antes de terça-feira, pode pedir à Kalina para entrar em contato comigo.

— Muito obrigado, doutora.

— Edyth — ela corrigiu, se aproximando para a despedida. — Edyth está ótimo.

Lucjan retribuiu o aperto de mão dela, como se selassem ali um acordo.

— Até terça-feira.

—--

Já era noite quando Lucjan acordou. Não sabia bem quando foi que tinha pego no sono, apenas que havia se deitado para descansar logo que se despedira de Edyth. Sentia-se esgotado de energia. Relaxado a ponto de ter o corpo todo fraco e indisposto. O estado de tranquilidade ainda estava ali ao despertar, e ele aproveitou um pouco mais enquanto girava de um lado para outro na cama, depois se deixou guiar pelo aroma incrível de comida, assim como um desenho animado.

Tinham colocado uma música para tocar na sala, e exceto por Cela e Roza, que estavam na cozinha cuidando do espaguete, os outros tinham se esticado na varanda para a noite fresca depois daquela tarde tão quente. Desta vez “os outros” incluía Ferdynand, que finalmente deixara seu quarto, e Amanda, que tinha vindo com Kalina.

— Deus do céu, Edyth acabou com você, não foi? — Apolonia perguntou assim que viu Lucjan se acercar.

— Não seja inconveniente, Pola — Kalina pediu e esticou uma taça grande na direção dele. — Quer um pouco de hidromel?

— Obrigado, Kali — disse enquanto alcançava a bebida. Ainda meio preguiçoso, foi sentar-se perto de Apolonia, tomando a liberdade de se estender no chão da varanda para apoiar a cabeça em seu colo.

— Não fique muito otimista — provocou. — Eu ainda prefiro a Cela.

— Não prefere, nada — Pola resmungou, depois brindou sua taça na dele.

Havia sido em uma noite como aquela, quatro ou cinco dias depois de sua chegada, que os outros moradores contaram um pouco das próprias histórias para ele. Não fora uma ideia previamente estabelecida, um tipo de dinâmica ou apresentação obrigatória. Acontecera muito naturalmente enquanto conversavam sobre todo tipo de coisa.

Tomasz em algum momento alcançou uma ponta solta e falou sobre o episódio em que, ao chegar do trabalho, encontrou uma mala pequena de roupas na porta de casa. Quando abriu e identificou algumas de suas coisas, soube que tinham descoberto. Não havia um recado, e eles não abriram a porta para dar uma explicação ou um abraço de despedida que fosse. Ele soube que era melhor ir enquanto tinha tempo.

Uma pena que Vincent não tenha tido.

Ele próprio não contou nada sobre o ocorrido. Ficou em silêncio ouvindo enquanto o namorado relatava, com o cuidado de organizar tudo cronologicamente e colocar os detalhes necessários. Tomasz mal tinha tido tempo de pensar para onde iria quando recebeu a ligação de um amigo, vizinho de Vincent. Aparentemente as famílias tinham se comunicado, e Vincent teve que contar com a sorte para que o anjo de mármore que o pai arremessou contra ele acertasse suas costas, não a cabeça.

Souberam do abrigo por um amigo em comum, que já tinha ficado lá por dois ou três dias quando chegara em Tarnów. Apolonia os buscou horas depois na delegacia, onde Vincent, sem pensar duas vezes, tinha ido para denunciar a agressão. Assim como Lucjan, tinha planejado ficar pouco tempo. Um mês no máximo. Mas Tomasz foi despedido do escritório do tio, e o dinheiro que Vincent ganhava como fotógrafo mal dava para contribuir no Alberta.

Roza costumava morar em Resóvia, uma cidade a oitenta e poucos quilômetros de Tarnów. Ao completar trinta, e apenas alguns dias antes de seu casamento com um cara que seu pai arrumara como último recurso para, segundo o que ele acreditava, “salvá-la”, Roza fugiu de casa para viver com Agatha em Tarnów. Mas Agatha já tinha esposa e sussurrou tudo muito rapidamente por uma fresta da porta de sua casa. “Você não pode ficar, mas conheço um lugar para onde pode ir.”

Cela, por sua vez, contou que costumava ser enfermeira e cuidadora de idosos desde antes, quando ainda se chamava Adrian. Não tinha interesse por relacionamentos afetivos e nunca havia se incomodado em passar por uma cirurgia de troca de sexo, porque não sentia que precisava de uma. Veio para o abrigo contratada para cuidar de Alberta quando a senhora já estava menos forte e menos lúcida. Nunca mais sequer considerou a ideia de ir embora, mesmo quando Alberta o fez.

De Ferdynand não sabiam muito. Ele estava sempre quieto e sozinho desde que chegou. Kalina deveria conhecer um pouco de sua história, os outros imaginavam, mas nunca veio a compartilhar.

Apolonia, por sua vez, não se pronunciou. Ninguém pediu que fizesse de qualquer maneira, mas Lucjan percebeu que ela tinha evitado e se esquivado disso a noite toda, enquanto os outros conversavam. Então apenas dois dias atrás, ela parecia estar tendo uma madrugada difícil. Lucjan acordava de tempo em tempo com o ruído da cama dela, que não parava de trocar de lado, se sentar e deitar outra vez.

Tomou a liberdade de se levantar e ir se acomodar ao lado dela. Ficaram em silêncio por muito tempo, apenas encarando o teto escuro. Depois Apolonia, com um fio de voz, disse que o pai tinha feito com que passasse por uma espécie de psicoterapia para tentar fazer com que ela “virasse mulher”, nas palavras dele. Quando não funcionou – e era óbvio que não funcionaria –, testou algo muito pior do que isso. Ela não precisou usar todas as palavras. Lucjan sabia exatamente a que se referia. Embora não soubesse o que dizer e não achasse que ela gostaria de ser abraçada, segurou a mão de Pola na sua e a ouviu chorar por horas, até se cansar e pegar no sono.

E era por isso que se deitar ali na presença deles, tomando sua taça de hidromel e ouvindo-os gargalhar daquele jeito, fazia com que Lucjan reconhecesse a força extraordinária que o cercava. Eles todos tinham atravessado o fundo do poço e parado um pouco mais abaixo disso. Contudo, tinham encontrado um resto de coragem e determinação para escalar de volta. Toda a tormenta, o suplício, o esforço ao longo do caminho tinham revigorado todos eles da maneira mais inesperada. Podia haver tanto ódio. Provavelmente se enraiveciam algumas vezes e se indignavam outras. Estava tudo bem que se sentissem injustiçados e maltratados. Eram humanos, no fim das contas, e tinham o direito de se ressentirem diante da realidade hostil, violenta até. Mas, ainda assim, acima de tudo isso, restava afeto, e esperança também. Meio trincada para uns, quase frágil demais para outros, mas sendo alimentada devagarinho por meio do companheirismo que se instalava quase gratuitamente entre todos os que passavam por ali. Ficassem por um dia, ou por um ano.

E Lucjan agradeceu que estivesse ali. Pela primeira vez, sentia-se feliz que tivesse se reconhecido nos olhos espelhados de Damian, e que tivesse atravessado aqueles dias duros de dúvida e aceitação. Estava satisfeito por ter sido honesto com Marlena, apesar da desonestidade imperdoável naquele primeiro momento. Estava aliviado por ter sido verdadeiro com a mãe e, por que não?, com o pai e os irmãos. Agora, e só agora, podia ser verdadeiro consigo mesmo. Não havia nada no caminho entre quem costumava ser e quem realmente era. Podia sentir crescerem e fortalecerem todos aqueles sentimentos genuínos dentro de si. E eles, Lucjan sabia desde já, eram que fariam tudo aquilo valer a pena.

 


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Notas finais do capítulo

Oiê!
Pessoal, muito obrigada pela companhia,
espero que vocês estejam aproveitando a leitura..
Me contem o que estão achando - por aqui, ou qualquer outro meio.

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dar spoilers, avisar sobre as novidades, etc.

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