Entre vírgulas escrita por Heloísa Bernardelli


Capítulo 5
Capítulo 4




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Lucjan teve a impressão de sentir algo partir. Parecia o coração, mas poderia ser seu nariz. Lá vinha o punho de Bartosz outra vez, em câmera não tão lenta, mas de imagem confusa e embaçada. Sólido, pesado. Com uma força que parecia ter sido guardada por anos. A precisão de quem sabia exatamente aonde queria ir. Nesse caso, um de seus olhos. Lucjan observou o movimento das pernas da mãe, que se agitavam no ar, tentando sem sorte fazer com que seu corpo se desprendesse dos braços decididos de Kornél. Não conseguia ouvir, mas pensou que ela estava gritando.

Seu corpo, que naquele momento pertencia muito mais a Bartosz do que a si mesmo, encolheu na tentativa desesperada de se defender do primeiro chute, como se com a ponta do coturno o irmão tivesse acertado um botão bem no meio de seu estômago, que o fez se enrolar em uma bola.

Pensou que aquela escuridão repentina deveria significar que estava terminando. Logo deslizaria meio desengonçado para o outro lado e, se todo mundo estivesse certo, não era o céu que encontraria quando despertasse em sua morte.

Torceu para que lá, onde quer que lá fosse, não sentisse tanta dor. Era angustiante considerar a hipótese de ter que pagar por seus pecados mais tarde, mesmo sentindo que já tinha feito isso, um a um, cada vez que Bartosz, o segurando pelas orelhas, enfiava sua cabeça no assoalho. Não era punição o suficiente?

Talvez não fosse para o inferno, no fim das contas.

Sentia que já estava nele.

—--

Bip. Bip. Bip.

Devia estar prestes a explodir, pensou. Um pouco grogue e sem conseguir abrir os olhos, imaginou seu corpo todo dentro de uma bomba bem pequena, que também se parecia muito com o relógio de cabeceira que tinha em seu quarto. Os números vermelhos no visor em contagem regressiva. Bip. 4. Bip. 3. Bip. 2. Bip. 1. Mas nada aconteceu. O som agudo continuava a apitar espaçadamente, e ele parecia continuar inteiro, embora não tivesse assim tanta certeza.

A luz branquíssima foi logo fugindo para dentro dos olhos pouco abertos de Lucjan. Na tentativa de lidar com a claridade, ergueu o braço para fazer alguma sombra e, antes que tivesse a chance de conter, um gemido deixou seus lábios. Não precisou de tempo para entender, foi instantâneo e abrupto como o primeiro soco de Bartosz.

Ainda se lembrava dos olhos urgentes da mãe, o encarando desde o outro lado da mesa, pedindo a ele para deixar que o pai e o irmão falassem o que quisessem. Quase podia ouvir Liliana implorar para que não interviesse, para que não se ofendesse. “Eles não sabem o que dizem”, ela vivia a repetir sempre que ficavam sozinhos, principalmente porque sabia que Lucjan estava se cansando. Apesar de todas as vezes que a mãe pedira em meio a sussurros apavorados que ele não contasse, que nunca contasse, ele estava cada dia mais perto de transbordar.

E transbordou.

Na mesa do jantar, depois de todos aqueles meses de silêncio, um ano inteiro de crises intermináveis de ansiedade, de vômitos repentinos e uma dor que nunca ia embora, Lucjan deixou que soubessem. Não foi tão difícil, concluiu depois. As palavras foram se juntando sem grandes problemas, não gaguejou e nem pensou em desistir no meio da frase. Não havia dito que era homossexual, porque, mesmo depois de pensar muito a respeito, não tinha certeza de que isso era o que melhor poderia definir sua orientação. Talvez fosse bissexual, e isso explicaria os anos de relacionamento com Marlena, mas também não o disse.

— E se meu próximo relacionamento fosse com um homem — ele perguntou, seus olhos dentro dos de Kornél —, o que vocês fariam?

E Bartosz, sem nenhuma palavra sequer, lhe mostrou como seria.

Lucjan podia se lembrar de duas outras vezes que chegara muito perto de retomar à consciência depois de ter desmaiado. Em uma delas tinha quase certeza de ter ouvido Edek, embora o irmão não estivesse em casa quando a briga começou. A segunda, o soar aflito da sirene de uma ambulância.

Uma ambulância explicava o cheiro de ar condicionado e éter, o quarto vazio e gelado, o bip incansável, a agulha enterrada em sua veia.

— Aí está você!

Lucjan tentou erguer a cabeça, mas desistiu ao primeiro sinal de dor e cansaço. Pensou que fosse vomitar, mas se distraiu com o rosto que pairou sobre o seu. Nunca tinha visto olhos cor de violeta antes, pensou. Por que alguém escolheria lentes como aquelas?

— Como está se sentindo?

E ele até considerou responder, mas sua língua parecia encher a boca de um jeito estranho, e sua garganta ressecada não ajudava em nada.

— Meu nome é Kalina, o seu é Lucjan?

Lucjan agitou a cabeça, muito ligeira e cuidadosamente.

— Você sabe por que está aqui? — Mas desta vez ele não deu sinal de resposta, então Kalina continuou: — Noite passada fizeram uma ligação anônima para a emergência, encontraram você na esquina da rua Czerwona. Você conhece alguém que more por perto?

— Sim — ele disse, um fio de voz sob o fôlego. Minha família, Lucjan pensou em acrescentar, mas desistiu.

— O serviço social entrou em contato comigo — Kalina contou. — Mais especificamente Izabela, ela estudou com você no ensino fundamental. — E Lucjan até tentou se lembrar de quem poderia ser, mas o nome não o remetia a ninguém específico. — Ela quem te reconheceu ontem, quando você chegou sem os documentos. Entraram em contato com a sua família. — E, com um cuidado que ia desde seus olhos até sua voz, a moça continuou: — Falaram com o seu pai.

Kalina e Lucjan ficaram em silêncio enquanto ouviam o alterar sonoro do monitor cardíaco, indicando que seu coração estava batendo em ritmo diferente agora.

— Depois... Ahn... Disso — ela prosseguiu —, Izabela me ligou e me pediu para vir. Eu tenho um abrigo, Lucjan. Se você não tiver para onde ir assim que receber alta, nós temos lugar para você.

Lucjan tentou e tentou engolir aquele aglomerado de angústia em sua garganta, mas ele ficou, tão persistente quanto doloroso. Equilibrando todas as lágrimas que de repente se reuniram em seus olhos, concordou com a cabeça.

— Quando eu estava no seu lugar — Kalina murmurou mais perto dele —, eu chorei por horas. Você sabe, não é como se fosse o melhor dia da sua vida. Está tudo bem chorar, Lucjan.

E então ele chorou, silenciosamente e por muito tempo. Kalina ficou por perto, segurando sua mão que não estava ligada aos aparelhos de monitoramento, e ainda estava lá quando acordou mais tarde, disposta a persuadi-lo a tomar a sopa sem sal que serviram no jantar.

Uma completa estranha.

Lucjan nunca tinha confiado cegamente em toda a sua família. A verdade era que, exceto pela mãe, os outros pareciam prontos para virar as costas a ele na primeira oportunidade. Mas, ainda assim, o conceito intrínseco do amor incondicional que vinha junto da ideia de pais e irmãos, aquele apoio inarredável que era prometido desde o ventre pela sociedade e líderes religiosos, era o que Lucjan, em algum cantinho muito pequeno de sua mente, esperava encontrar.

Desejou que fosse surpreendido. Que seus pais e irmãos aceitassem quem ele era, mesmo que nunca chegassem a compreender. Que seguissem as próprias vidas e percebessem, em algum momento, que nada havia mudado para nenhum deles. Mas ali, com duas costelas fraturadas e o rosto tão inchado que as pernas amoleceram quando se olhou no espelho, Lucjan pensou que seria suficiente se pelo menos Liliana estivesse por perto para quando ele acordasse. Poderiam encontrar um lugar para viver, de repente em uma cidade maior e mais movimentada, ou quem sabe em uma casa de campo, reclusa e silenciosa. O que ela achasse melhor.

Mas Liliana não estava.

Não a culpava. Só estava com medo e sentia muito mesmo sua falta.

—--

— Boa tarde.

Lucjan esperava encontrar Kalina quando a porta do quarto se abriu, já que, além das enfermeiras e do médico que passava pela manhã, ela era a única que tinha aparecido nos últimos dias.

— Sou Apolonia — a moça se apresentou, estendendo a mão para o cumprimentar. Tinha os cabelos azuis cortados de forma irregular e moderna. Lucjan quis saber como foi que tinham colocado um piercing bem no meio de sua bochecha.

— Lucjan.

— Kalina pediu para eu vir te buscar — Apolonia colocou nos pés da cama o que parecia ser uma troca de roupas. — Eu trouxe uma calça e uma blusa pra você, mas acho que Kalina não enfatizou o suficiente o quanto você é grande. Talvez não sirva.

Pela primeira vez em muito tempo, um riso manso escapou pelo nariz do rapaz.

— Tudo bem. Obrigado, de qualquer maneira.

— Você acha que consegue se vestir sozinho?

— Acho que sim.

— Ótimo, vou te esperar do lado de fora.

A calça de tecido macio até coube em seu quadril, mas terminava pelo menos três dedos acima de seu tornozelo, o que ele pensou que deveria ser uma cena cômica. A blusa, por sorte, tinha um zíper na frente, portanto ele não precisara erguer os braços para conseguir vesti-la. Vinha evitando muitos movimentos porque tinha arrepios ao pensar que duas de suas costelas da direita não estavam em boas condições.

Logo que saiu do quarto, ouviu Apolonia roncar na tentativa de controlar o próprio riso e se apressar em parecer muito séria, como se rir de alguém na situação de Lucjan fosse uma péssima ideia – o que talvez fosse, mas ele próprio achava graça todas as vezes que tentava imaginar a si mesmo vestido com aquelas roupas que mal cobriam seu corpo.

— Vamos lá, big man — ela convidou logo que Lucjan assinou a alta na recepção do hospital. Homem grande. Aquele era um apelido que ele ainda não tinha ouvido. — Eu prometo que vamos encontrar algumas roupas que te sirvam.

— Primeiro vocês precisam plantar um pé de feijão.

Apolonia gargalhou tão alto que Lucjan também acabou rindo, de modo mais discreto e cuidadoso ao tentar não se esforçar muito.

— Certo, é só subir, se esconder no castelo e roubar as roupas enquanto o gigante dorme. Parece fácil — ela brincou enquanto eles se acomodavam lado a lado no Duster 2007 que ela dirigia. — Pois bem, como copiloto, você tem o direito de passar três músicas, desde que nenhuma delas seja do Bon Iver. Regras do carro.

— Fechado.

Não demorou muito até que os primeiros acordes de Re: Stacks começassem a vir das caixas de som. Lucjan levou a mão até o rádio, em uma brincadeira que fez os olhos de Apolonia se espremerem em ameaça. Os dois riram baixinho antes de se distraírem outra vez com o caminho que tinham pela frente.

Ele não prestou muita atenção no trajeto que estavam fazendo, embora tivesse reconhecido que a saída da cidade ficara para trás muito antes de adentrarem uma estrada de terra e cascalho. Lucjan observou em silêncio as árvores ao redor, as fazendas que vez ou outra apareciam inesperadamente, bem no meio do verde. Podia ouvir o cantarolar muito baixo da motorista ao seu lado, e o tamborilar delicado de seus dedos no volante. Sentia um pouco de dor, mas não muita. Sentia um pouco de alívio, mas também não muito. Sem pedir permissão, e torcendo para que Apolonia não se importasse, baixou o vidro do seu lado e respirou bem fundo o ar fresco daquela tarde de maio, como se desta maneira pudesse se desfazer do cheiro de hospital que parecia estar por toda parte dentro de si.

Percebeu quando Apolonia fez o mesmo, parecendo ligar muito pouco para o fato de que isso fazia a voz de Bon Iver se perder em meio ao som agitado do vento, ou o de que seu cabelo fosse estar alvoroçado no fim da viagem. Lucjan sorriu e fechou os olhos, torcendo para que ainda demorassem a chegar, e assim poderia aproveitar um pouco mais daquela sensação de liberdade despontando em seu peito. Temeu que logo a perdesse de vista outra vez.

— Eu normalmente pediria que o passageiro abrisse o portão — Apolonia disse de repente —, mas vou te livrar dessa como uma forma de boas-vindas. Não se acostume.

Os olhos de Lucjan se atentaram, sem saber bem pelo que esperar. Apolonia direcionou o carro a uma alameda não muito íngreme para parar logo em frente a um portão de madeira. Nada indicava que ali havia um abrigo, muito provavelmente para a proteção dos inquilinos, Lucjan imaginou. Assistiu-a saltar do carro e destrancar o cadeado enorme que prendia as correntes de ferro ao redor das grades. Apesar da imponência com que mantinham proibida a entrada, todo o resto parecia puro acolhimento. Como se o recebessem com todo o afeto uma vez que você tivesse sido convidado a entrar, independentemente do quanto tentassem afastar quem não deveria estar ali.

— Bem-vindo ao Alberta.

A primeira vez que Lucjan colocou seus olhos na construção, teve a impressão de que já tinha estado ali antes. A casa tinha dois andares e não parecia muito grande quando vista pelo lado de fora. Suas paredes eram pintadas de um lilás delicado que lembrava os olhos de Kalina. Tinha as janelas brancas e uma varanda ampla e convidativa bem de frente para um jardim de lírios coloridos, que provavelmente tinham florescido como um presente da primavera.

Apolonia subiu o conjunto de quatro degraus, mas, antes que tivesse a chance de abrir a porta, um rapaz saiu por ela.

— Eles chegaram!

E, pouquíssimo depois, outro par de olhos apareceu por cima dos ombros dele. Os dois se apresentaram; Tomasz mais entusiasmado e descontraído que Vincent. Roza veio em seguida, apenas para pedir a eles que deixassem Lucjan ao menos entrar. Assim que ele o fez, teve a impressão de ter atravessado uma fenda para um lugar completamente diferente. A casa devia crescer quando se estava dentro dela, essa foi a única explicação que ele conseguiu encontrar.

Dali onde estava, Lucjan conseguia ver três cômodos de uma só vez. A sala de estar enorme, com um número considerável de sofás e poltronas junto a uma lareira bonita. Ao lado, e não tão distante, estava a maior mesa de jantar redonda que ele já tinha visto, rodeada de dez cadeiras. Do lado contrário ficava uma cozinha espaçosa, com armários de madeira e uma bancada onde um homem – Ferdynand, Lucjan logo descobriu – estava debruçado. Tudo claríssimo por conta das janelas grandes, com suas cortinas bem abertas.

— Cela? — Apolonia chamou do lado de fora de um dos quartos no andar de cima, onde acabara de bater.

— Sim?

— Podemos entrar?

Do outro lado da porta, surgiu uma mulher alta e esguia, com olhos muito pretos e nenhum cabelo em sua cabeça.

— Sou Cela, muito prazer — ela disse, e foi a primeira vez que, no lugar de um aperto de mão, alguém lhe tinha oferecido um abraço. — Entre, eu acabei de preparar sua cama.

— Obrigado — Lucjan murmurou, um pouco constrangido.

O quarto não era muito grande, mas espaçoso o suficiente para que coubessem três camas de solteiro, cada uma delas acompanhada de uma mesa de cabeceira feita da mesma madeira. A de Lucjan ficava encostada na parede e estava coberta por um edredom tão verde quanto seus olhos.

— Você vai dividir o quarto comigo e Pola, se não se importar.

— É melhor que você não se importe — Apolonia disse depois de soltar o corpo na própria cama, foi só quando Lucjan percebeu que Pola era apelido dela. — Ou te colocamos no quarto do Vincent e do Tomasz, para sessões gratuitas de pornografia.

Lucjan sorriu enquanto se sentava na beirada do próprio colchão. Os analgésicos deveriam estar começando a perder o efeito, pensou diante da dor ainda tímida que percorreu seu corpo.

— Eu gosto daqui — garantiu. — Eu sinto muito que tenham que ceder espaço para mais alguém.

— Não se preocupe com isso, querido — Cela pediu, colocando a mão em seu ombro para uma massagem delicada. — Não é nenhum incômodo. Estamos felizes que você esteja seguro.

— Cela pode até fazer algumas bruxarias para ajudar você a se recuperar melhor.

— Ora, Pola! — a mulher protestou. — Já existe um nome para isso, e é herbalismo.

Apolonia esperou até que Cela estivesse com os olhos em outro canto para sibilar, sem nenhum som, “é bruxaria”. Lucjan aclarou a garganta para disfarçar seu riso, depois foi aos poucos cedendo ao pedido exausto de seu corpo e se deitando na cama que havia sido oferecida a ele.

— Como está se sentindo? — Cela perguntou cuidadosa.

— Estou com um pouco de dor, mas logo deve chegar a hora de tomar os remédios outra vez — Lucjan lembrou.

— São as costelas?

Ele concordou brevemente com a cabeça.

— Vou preparar uma compressa para você colocar, deve ajudar até lá.

— Obrigado, Cela.

— Queimem a bruxa! — Apolonia gritou, provocativa.

Lucjan riu com vontade, mesmo que mal conseguisse tolerar o desconforto abdominal enquanto o fazia. Podia ouvir Apolonia gargalhando e pensou que aquele era o melhor momento que tinha em muito tempo.

— Alberta — Lucjan murmurou devagar, pensando sobre o nome do abrigo.

— É o nome da tia da Kalina — Apolonia contou. — A fazenda era dela. Pelo que a gente sabe, Alberta recebia pessoal em situação de rua desde muito tempo atrás. Kalina veio pra cá com quatorze anos. O pai pegou ela e Amanda se beijando no quintal, quase a matou.

Lucjan virou o rosto para o lado, em direção a Apolonia. Com os olhos voltados para o teto, a moça continuou:

— Ela morou aqui pelos últimos doze anos, até o ano passado, quando ela e Amanda se casaram.

— E o que aconteceu com a Alberta?

— Morreu um pouco antes — Apolonia contou, e a covinha onde brilhava o piercing afundou com o sorriso saudoso que apareceu em seus lábios. — Ela era ótima. Ninguém nunca soube uma variedade tão grande de palavrões eslavos quanto ela.

Lucjan sorriu com diversão e, quando estava pronto para perguntar a Pola sobre quanto tempo havia que ela morava no abrigo, Cela retornou com um saco de ervilhas congeladas. Ela própria se sentou na beirada da cama onde ele estava e cuidou de segurar a compressa sobre a área prejudicada.

— Há quanto tempo vocês moram aqui?

— Eu cheguei há cinco anos — Apolonia contou. — Cela já faz uns duzentos.

Lucjan se deixou rir quando Cela cedeu uma gargalhada.

— Eu estou aqui há nove anos, querido — ela contou. — Vim para cuidar de Alberta e acabei ficando.

— E o resto do pessoal? — Lucjan quis saber.

— Bem, Roza chegou no ano passado. Vincent e Tomasz chegaram juntos, seis meses atrás — Cela falava pausadamente, com uma calma que fez com que Lucjan se sentisse ainda mais sonolento. — Ferdynand foi o que chegou por último, no mês passado.

— Vocês não estabelecem um prazo? Quero dizer — Lucjan parou para organizar melhor sua pergunta, agora que sentia-se prestes a pegar no sono —, não existe um tempo limite de estada?

— Não — Cela respondeu. — Você pode ficar o tempo que precisar para se organizar.

— Eu não posso pagar até conseguir fazer novos documentos para mexer na minha conta.

A mulher sorriu com carinho, Lucjan viu pelos olhos entreabertos.

— Está tudo bem — ela garantiu. — Tente não se preocupar com mais nada, querido. É hora de se recuperar, concentre-se nisso.

Lucjan pensou em responder, mas dormiu antes de o fazer.

—--

Quando acordou mais tarde naquele dia, Lucjan teve a impressão de que fora a dor que o tinha despertado. As pontadas agudas aumentavam só com a menção de se levantar, mas ainda assim ele forçou o corpo para cima e se empurrou para fora da cama. Lembrava de Apolonia ter dito que deixaria seus remédios na mesa de cabeceira, e lá estavam eles, mas não havia água ao redor. Pé ante pé, caminhou para fora do quarto, tentando não chamar a atenção das companheiras de quarto.

A casa estava escura e silenciosa. Não do jeito macabro que ele teria rapidamente associado a uma casa isolada. Era confortável. Acolhedor até.

Desceu as escadas com um braço ao redor do abdômen, como se fosse evitar que as costelas frágeis saíssem do lugar. Sabia que isso não era possível – tinha perguntado ao médico mais de uma vez só para ter certeza –, mas não custava tomar certos cuidados.

As poucas luzes do jardim iluminavam debilmente o andar inferior, atravessando com dificuldade as cortinas e se escondendo pelos cantos do cômodo aberto. Lucjan se acercou da cozinha e deixou a cartela de analgésicos e anti-inflamatórios sobre a bancada enquanto buscava um copo d’água. Depois de engolir um comprimido de cada vez, apoiou o corpo na beirada da pia e afastou a cortina. Dali podia ver o gramado, tão infinito que seus olhos não eram capazes de encontrar a grade de madeira que delimitava a fazenda.

Cinco dias. Só cinco dias atrás, estava em casa. A quatro passos de distância do irmão. Alguns metros até Liliana. Tinha a impressão de que gastara anos inteiros naquela cama de hospital, entre a surra de Bartosz e o abraço cuidadoso de Cela.

Agora estava ali. Tentando se sentir em casa como Apolonia tinha sugerido. Tão perto de Tarnów, e ainda assim com a sensação de que tinha chegado a um país completamente diferente. Sem os documentos que Kornél se recusara a lhe entregar. Nenhum nome ou data de nascimento. Nem sequer recordava a sequência numérica que constituía seu Pesel e que o diferenciava de todos os outros cidadãos da Polônia. Um estrangeiro dentro e fora do próprio corpo. Quando pensava em se reinventar, nunca achara que seria daquela forma, partindo do zero.

— Porra — soprou quando as luzes se acenderam e afugentaram seus pensamentos todos de uma vez.

— Olha a boca — Apolonia reclamou, se arrastando pela cozinha com apenas um dos olhos aberto, direto para a geladeira, de onde tirou dois potes pequenos de plástico. — Roza separou para você depois do jantar — disse antes de deixá-los sobre a bancada, para que Lucjan pegasse. — Se estiver com fome.

­— Estou. — Ele descobriu naquele exato momento. Depois dos três dias de sopas estranhas com gosto de água com lembrança de batatas, ter a chance de comer um pouco de comida fez com que seu humor melhorasse. — Eu te acordei?

— Não — Apolonia disse, abraçada a um bowl de vidro. — O merengue me acordou.

— Faz parte dos seus hábitos noturnos? Roubar comida... ­— Lucjan perguntou enquanto despejava o picadinho de carne de porco e o repolho refogado em um prato.

— Não estou roubando. — Ela virou a tigela que segurava, até que o post-it com seu nome estivesse ao alcance dos olhos de Lucjan. — É meu.

— Você etiqueta suas comidas? — ele perguntou, colocando o próprio prato dentro do micro-ondas.

— Não. Só as minhas sobremesas.

— Onde enfiou seu senso de coletividade? — Lucjan perguntou, risonho.

— Que vontade que me deu de ser ofensiva — Apolonia comentou consigo mesma, arrancando-lhe uma gargalhada divertida. — Segure sua lição de moral. Eu te dou uma colherada se é esse o problema.

Lucjan esperou até que sua comida estivesse quente o suficiente, depois sentou-se junto de Pola na mesa de jantar. Devorou em pouco tempo tudo o que Roza tinha separado para que ele comesse e, ao fim, sentiu-se um pouco mais feliz. A moça ao seu lado também parecia verdadeiramente satisfeita, entre colheradas de merengue e histórias que tinha vivido no abrigo desde que chegara.

— Você já namorou homens? — Lucjan perguntou para ela e não achou que estava sendo inconveniente, mas a expressão confusa no rosto de Apolonia parecia dizer o contrário.

— Deus me livre! — ela disparou, antes de uma risada incrédula que lhe causou graça. — É brincadeira. Eu namorei um cara. Por dois dias. Foi o suficiente. E você, já namorou mulheres?

— Por dez anos.

Apolonia o encarou. O rosto livre de qualquer reação.

— Ela era minha melhor amiga — Lucjan contou, e seu coração ainda ficava muito incomodado com a lembrança de Marlena. — Nós começamos a namorar aos quinze e terminamos no ano passado, quando eu traí ela com um cara.

— Mas você sabia o que estava fazendo?

— O que quer dizer?

— Você sabia que gostava de homens?

— Não. Eu realmente achei que, você sabe, me casaria com ela e seria isso.

— E aí apareceu um cara?

— Sim. — Lucjan pegou a colher que tinha reservado para a sobremesa, e Apolonia rapidamente empurrou a tigela para mais perto dele.

— E aí vocês tiveram um caso tórrido de amor?

Ele riu da escolha de palavras cheias de frescura, que em nada combinavam com a moça.

— Um beijo. Tórrido talvez. Mas só um beijo.

— Um beijo? Um beijo chutou você para fora do armário?

— Parece que sim.

Lucjan entendeu por que ela tinha rotulado o merengue. Ele certamente acordaria para algumas colheradas caso não tivesse dono.

— Às vezes eu penso que... — ele murmurou, e aquela era a primeira vez que conversava sobre suas incertezas. Era diferente só pensar sobre elas e compartilhá-las com alguém. Precisou de um tempo para encontrar uma maneira de explicar algo que ele mesmo pouco entendia. — E se eu não for gay? Se eu for bissexual, quer dizer... Eu namorei uma mulher por dez anos...

— Que diferença faz?

Ele não sabia dizer.

— Não fique tentando se encaixar, ou rotular. Não ache que isso vai tornar tudo mais fácil. Se você acha que ser bissexual significa que você poderia ter escolhido ficar com Marlena, casar, ter filhos e se livrar de toda a merda que você passou até aqui, você tá enganado.

Apolonia parecia ter enfiado uma lanterna no meio de seu coração e encontrado muito rapidamente a dúvida que regia todas as outras. Ele não sabia como, mas lá estava ela, verbalizando coisas que ele nunca tinha conseguido.

— Não é assim que funciona — a moça continuou. — Talvez você se apaixone por uma mulher, talvez por um homem. Mas amor ainda é amor do lado de cá, Lucjan, e eu nunca conheci alguém que tivesse controle sobre ele.


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Notas finais do capítulo

Finalmente esse capítulo chegou até vocês.
Eu fiquei sem dormir pensando sobre escrevê-lo,
depois enquanto o escrevia, e então quando o vi pronto.
Bem, agora ele é todo de vocês, e eu espero de coração que vocês gostem.
Não deixem de me contar o que estão achando,
é realmente muito importante ter um retorno de vocês.

Um super abraço,
Lô.



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