Ela caminhava por uma estrada tortuosa e deserta ao anoitecer. Ao olhar para os lados, tudo o que via eram os galhos retorcidos das árvores que emolduravam o caminho.

Jamais havia estado ali antes.

De repente, do silencio emergiu uma voz que lhe era familiar.

Yanzhi olhou por cima dos ombros e quando voltou a olhar para frente, deparou-se com Zilan.  Ele a encarava com desprezo.

— Confiei esse segredo a você. – O homem celestial dizia, furioso. – Dei a minha essência para Ying Yi e em troca pedi seu silêncio. No entando, agora todos sabem.

Yanzhi sentiu o nó chegando em sua garganta.

— Não, eu não disse a ninguém. – a Senhora fantasma sussurrou, nervosa. – Ying Yi está...

— Selada? – disse Zilan. - Como pode garantir? Celestiais reconhecem celestiais.

Yanzhi sentiu-se. Seu coração pulsava tão velozmente que ela tinha a sensação de estar sendo sugada pelo umbigo.

— Eu mesma a selei com o... – Ela tentou argumentar.

— Selo de supressão de essência? – naquele momento, a figura do Lord Celestial se materializou a sua frente. Seus olhos semicerrados em desaprovação. – A magia profunda do Reino Fantasma é poderosa, mas não pode me enganar.

A senhora Fantasma estremeceu. Seu coração batia tão forte que ela tinha a nítida sensação de estar prestes a desmaiar.Nós confiei em você. – Zilan a encarou com desprezo. – Mas você me traiu.

— Não, eu não contei a ninguém. – Yanzhi contestava enquanto os carrascos arrastam Zilan para o alto de uma montanha.

— Pelo crime do alto imortal Zilan, eu o condeno a ter seu espírito destruído. – disse o Lord Celestial, com firmeza.

— Não! – ela guinchou, desesperada. – Ele é inocente!

Mas antes que pudesse correr até o homem que salvara Ying Yi, o raio celestial atingiu o alto imortal no meio do peito e em segundos, ele se dissipou em uma névoa brilhante.

— Não! – Yanzhi berrou, sentindo seu coração fragmentar-se me milhares de partículas. – Zilan!

O suor escorria por sua face amedrontada.

O pesadelo onde todos os celestiais descobriam sobre a origem da essência celestial de Ying a atormentava desde que chegara aos Nove Céus.

A Senhora Fantasma abriu os olhos num sobressalto, ainda sentindo a angústia do sonho.

—  Bixia!* - O Qilin de Fogo apareceu no porta do quarto segundos depois. – Algum problema?

— Foi apenas um pesadelo. – respondeu. – Estou bem.

A criatura de cabelos vermelhos e orelhas pontiagudas encarou a Senhora Fantasma com receio. Mesmo assim, saiu quando ela ordenou.

A mulher então levantou-se rapidamente e foi até os aposentos onde suas sobrinhas repousaram.

Estendeu a mão esquerda na direção de Ying Yi e conjurou o feitiço de supressão de essência. Imediatamente, um raio de luz roxa saiu dos dedos na mulher indo de encontro à princesa, temendo que o selo colocado na sobrinha para inibir sua essência celestial pudesse ter sido rompido.

Mas não era como se isso fosse algo comum. O selo de supressão de essência era um feitiço poderoso e perigoso evocado com a magia profunda do Reino Fantasma.

Dada a sua potência e necessidade de grande carga de essência demoníaca, o selo, antes somente havia sido conjurado pelo Lorde Fantasma Qing Cang para aprisionar o espírito imortal de Bai Qian durante sua provação de amor transformando-a em uma simples mortal.

Naquela época, ninguém dos Nove Céus conseguira decifrar sua verdadeira essência. Nem mesmo o lendário Dong Hua Dijun.

Mas tal magia cobrava seu preço e Yanzhi o pagou segundos depois.

Ela tossiu um pouco de sangue vermelho e quente na manga de suas vestes, mas sorriu, afinal de contas, o segredo de Ying Yi  estava bem guardado, e por hora Zilan estaria a salvo.

Depois de um breve momento, ela respirou aliviada.

— Apenas essência fantasma. – disse para si mesma. - O selo está intacto.

***

Ying Yi acordou naquela manhã com a estranha sensação de ter sido envolta em uma névoa invisível.

Ainda deitada ao lado da prima, fitou o teto acima de sua cabeça; os caibros de madeira lustrosa sustentando o telhado do Palácio da Neve. O silencio do quarto propiciava escutar o som dos pássaros do lado de fora.

De repente, ela ouviu passos vindos na direção da porta do quarto, então uma serva imortal apareceu carregando uma bacia com água.

— Alteza – a criadinha curvou em respeito. -, sua majestade pediu para que você a senhorita Lan se vestisse para o desjejum que será realizado no salão de chá do lorde dos tesouros divinos.

— Onde está minha tia? – Ying perguntou. A serva curvou-se para responder.

A Senhora Fantasma está em uma reunião com o clã do mar do norte e dos dragões no pavilhão dos assuntos políticos.

Ying assentiu, depois cutucou a prima, Yanjing.

— Certo. Você pode sair. – a segunda princesa dispensou a serva com um sorriso.

Lan Yanjing abriu os olhos ainda sonolentos preguiçosamente.

— Já amanheceu? – perguntou.

— Aqui é sempre dia, Lan’Er. – Ying riu.

— Você entendeu, pequena pirralha. – Lan brincou com a prima, depois levantou-se.

— A tia quer que compareçamos ao desjejum junto com os nobres do Reino Celestial.

Lan Yanjing abriu os olhos definitivamente e se pôs de pé ao lado da prima.

— Os céus estão nos dando uma chance de ouro! – ela disse, animada.

— De que está falando? – Ying questionou.

— Meimei, - Lan segurou as mãos da prima com entusiasmo. – é a oportunidade perfeita para que você pague sua dívida com o jovem mestre.

Ying Yi estava descrente. De fato era uma bela chance. Com Yanzhi longe por algumas horas, haveria tempo suficiente para uma breve conversa com A-Li.

— Mas nem sabemos se ele estará presente. – Ying ponderou.

— Bem, ele é um nobre celestial. – Lan argumentou. – Com toda certeza deve ter sido convidado.

Ying Yi sorriu de repente ao se lembrar do rosto de seu jovem mestre. Em seu íntimo, sob todo seu pudor, havia uma vontade crescente e inexplicável de querer vê-lo também, nem que fosse pela última vez.

Lan Yanjing percebeu a felicidade clandestina no rosto da prima e brincou.

— Vista-se bem para que seu admirador tenha uma ótima lembrança de você.

Ying Yi corou instantaneamente e escondeu o rosto envergonhado sob as manhas de sus vestes de dormir sentindo dentro de seu peito um tipo de felicidade que ela jamais sentira.

***

O banquete do desjejum fora um presente oferecido pelo Lorde dos Tesouros Divinos ao príncipe herdeiro Ye Hua e à deusa maior Bai Qian, mas naquele dia, a divindade de Qing Qiu não se sentia bem. O fim da gestação do segundo príncipe a deixara mais frágil que o normal portanto, naquele evento, apenas Ye Hua comparecera.

A tenda montada ao ar livre, sob o céu iluminado por nuvens de cores róseas, dezenas de mesinhas foram dispostas em paralelos.

No patamar mais alto, sobre um palanque, estava a mesa do príncipe herdeiro, equidistante a ele, a mesinha seguinte pertencia ao príncipe A-Li.

Nem uma das duas ilustres divindades havia chego ainda, mas já era possível ver alguns convidados chegando.

Ying Yi e Lan Yanjing foram uma das primeiras. Elas caminhavam lentamente pelas passarelas admirando as flores que cresciam ao longo do caminho e ao fundo a floresta de cerejeiras.

Passaram pelo Coreto do Lótus de Inverno, pelo Pavilhão da Beleza Juvenil, pelo Palácio do Amor Eterno – onde moravam o príncipe herdeiro e a deusa Bai Qian - , dentre outras dezenas de palacetes e monumentos.

Um pouco atrás das princesas fantasmas, a rainha do Clã das Raposas, Bai Feng Jiu vinha subindo as escadas acompanhada de uma comitiva de criados. Suas vestes eram de um azul intenso, feito com tecidos esvoaçantes que planavam no ar com a brisa suave da manhã.

As princesas do Reino Fantasma conheciam Bai Fengjiu de vista porque ela fora ao Reino Fantasma uma ou duas vezes para consolidar acordos entre os dois reinos.

— Bixia*. – Lan e Ying curvaram-se quando a rainha passou e bastou apenas olhar para a flor de celossia na testa de sua majestade para que Lan fosse transportada para uma cena totalmente aquém dos Nove Céus.

Na visão da primeira princesa fantasma, havia uma caverna escura, onde dentro dela, um amontoado de silhuetas cintilavam sob a luz das velas em volta de um ninho onde uma raposa amamentava um pequeno filhote.

— Parabéns, majestade! – uma voz felicitou a raposa. – É uma fêmea.

Depois disso, no minuto seguinte, Lan Yanjing estava novamente ao pé da escada do salão de chá nos Nove Céus.

— Lan’Er? – Ying segurou a mão da prima que olhava fixamente para Bai Fengjiu ao longe. – Você está bem? Foi uma visão, não foi?

Lan de repente voltou a si.

— Eu não conheço o local da visão, mas havia uma raposa que acabara de dar a luz a uma fêmea.

Ying Yi olhou para Fengjiu.

— Eu sei que a rainha de Qing Qiu pode se transformar em uma raposa.

Lan de repente sorriu.

— É a primeira vez que tenho uma visão tão alegre desde a última com o corvo e o dragão. Aquela visão me assusta até hoje.

Lan Yanjing de repente se deu conta do que havia dito e calou-se imediatamente.

— Esqueça o que eu disse. – Lan pediu. – Vamos entrar. Tenho um plano para que você possa pagar sua dívida com o jovem mestre.

Ambas de pois subiram para o local da cerimônia. Sentaram-se em suas mesinhas e conversavam quando um eunuco imperial anunciou a chegava do príncipe herdeiro Ye Hua. O príncipe A-Li estava logo atrás do pai.

Supondo que todos sabiam da identidade do príncipe, o eunuco não o anunciou.

Ying Yi tentava esconder sua repentina felicidade ao ver o rapaz e reprimia a vontade de olhar para ele a cada minuto. Seu coração batia tão forte e ela sentia-se sorridente por dentro.

Lan Yanjing apenas sondava os olhares furtivos do primeiro príncipe para sua prima.

A-Li tentava, porém seus olhos pousaram em Ying Yi desde o momento em que chegara ao salão. A jovem divindade vez ou outra disfarçava, mas havia algo que o fazia querer vê-la a todo momento.

Em um determinado período, pouco antes de a cerimônia acabar, um bilhete chegou até Ying Yi por meio de uma serva.

Discretamente ela leu.

“Vossa alteza, hoje está um belo dia para se pagar uma dívida.

Shaoye*.”

— Esse jovem mestre é ousado!  - Ying Yi cutucou a prima. – Está me cobrando.

A-Li bebia chá despreocupadamente.

De repente, Ying Yi enfeitiçou um de seus grampos de cabelo o transformando em um pequeno pincel.

No verso do bilhete de A-Li, ela escreveu uma resposta.

 “Jovem Mestre, seu pedido era para me ver novamente. Visto que estamos no mesmo evento e que o senhor já me viu, creio que minha dívida está paga.

Sua alteza, Ying Yi.”

O primeiro príncipe ao ler a resposta olhou de soslaio para as princesas, depois sorriu pretensiosamente.

Quando a resposta chegou para Ying Yi, ela se contorceu.

“Vossa alteza, observá-la de longe com tantas pessoas ao nosso redor não foi o que imaginei. Sinto que eu devia ter esclarecido anteriormente. Gostaria de vê-la a sós, ou pelo menos onde pudéssemos conversar tranquilamente. Poderia leva-la para um passeio no bosque das cerejeiras do palácio. Você aceita?

Shaoye.”

Lan refletiu ao ler o bilhete. Em seguida pensou rapidamente em uma resposta. Sem que A-Li percebesse, Lan escreveu.

O que você está fazendo? – Ying Yi estava nervosa ao ver a prima entregando o bilhete para a criada.

Esse jovem mestre tem muita lábia, meimei. – Lan explicou. – Melhor resolver tudo hoje.

Minutos depois, o último bilhete de A-Li chegou com a resposta.

“Vossa alteza, fico satisfeito com sua decisão. Eu a encontrarei no bosque das cerejeiras do palácio central hoje às 15h. Por favor, compareça.

Shaoyé.”

— O que disse a ele? – Ying perguntou, nervosa.

Lan bebeu um pouco de chá despreocupadamente, depois respondeu.

— Que você aceitou.

Distante do salão de chá do Lorde dos Tesouros Divinos, no pavilhão dos assuntos políticos, a senhora fantasma Yanzhi presenciava uma reunião extraordinária com o deus da guerra, Mo Yuan, seus generais do exército celestial, líderes dos clãs do norte e leste além do Lorde Celestial e Dong Hua Dijun.

Aquele evento era apenas para tentar angariar o apoio do Reino Fantasma no que dizia respeito à reintegração de posse do território  próximo ao Reino do Mar do Norte, nas fronteiras com o Reino Fantasma, um dia ocupado pelo extinto Clã das Sereias, que hoje servia de base militar para grupos bárbaros que se opunham ao governo do Lorde Celestial.

Embora submissos ao Reino Celestial , o palácio Ziming havia se consolidado como uma grande potência política uma vez que mantinha em seu domínio as Terras do Ártico, local privilegiado para um ataque ao território rebelde. Desse modo, entre os seis reinos era de extrema importância ter o Reino Fantasma como aliado.

Mas, convencer Yanzhi não vinha sendo uma tarefa fácil. A nova Senhora Fantasma era diligente com assuntos políticos e desde sua ascensão ao trono, o Reino Fantasma permanecia como território neutro. Sem negar ou declarar apoio a nem uma das partes envolvidas no conflito.

 - Vossa majestade há de concordar que um momento ou outro o Palácio Ziming terá de tomar uma posição nesse conflito. – disse Die Feng, o segundo príncipe do Reino do Mar do Norte, o mais engajado em conseguir apoio. – Não se trata de certo ou errado. Há rebeldes nessa região há mais de oitenta mil anos. Se não forem suprimidos agora, enquanto ainda são apenas rebeldes, ficará muito mais difícil superá-los quando estiverem com mais apoio.

Yanzhi ouviu toda a explicação pacientemente, depois com sua habitual calma e sabedoria, curvou-se ao Lorde Celestial e respondeu:

— Vossa alteza tem razão, no entanto, o Reino Fantasma vem de um história horripilante de se envolver ou criar guerras desnecessárias. Conflitos esses que não possuem vencedores, apenas sobreviventes. – ela fez uma pausa breve. – Nesse momento, quando finalmente há um nível de paz sem precedentes para os fantasmas, não me parece justo que eu os envie para morrer em uma guerra que ainda não é nossa. – Yanzhi então olhou para todos os grandes deuses a sua volta, e parou o olhar no lorde celestial. – Por quanto que os rebeldes estão silenciosos, não posso incitá-los colocando uma base militar celestial dentro do Reino Fantasma. O palácio Ziming experimentou a quase extinção há oitenta mil anos. Meu povo fora devastado pela ganância e sede de poder. Não posso condená-los a mais uma guerra, contudo, se eventualmente houver do lado de lá um primeiro movimento, lhe asseguro que o Palácio Ziming estará a disposição de sua majestade, porém, se o motivo dessa convocação for para tentar meu voto a favor de um primeiro ataque do Reino Celestial nos domínios do Reino Fantasma, a minha resposta ainda é não.  

Houve um momento de silêncio sepulcral depois das palavras e negação de Yanzhi. Die Feng abriu os lábios para contrapor, mas Mo Yuan o interrompeu.

— Compreendo o ponto de vista da Senhora Fantasma. Se um motim eclodir nesse período, os únicos que sofrerão a devastação imediata serão os civis fantasmas daquela região. Como líder, você deve pensar antes de tudo em seu povo.

— Obrigada pelo entendimento, alto deus Mo Yuan. – Yanzhi agradeceu em reverência.

— Se fosse o antigo senhor fantasma, já teríamos ganho o apoio de que precisamos.– Um general do Clã Sujin cochichou para outro general. – Desde Wei Yuan, o palácio Ziming não têm alguém tão sensato no trono.

Dong Hua Dijun que ouvia toda a conversa clandestina, levantou sua xícara de chá e com voz etérea comentou:

— Isso é porque grandes líderes não buscam pelo poder. – o deus fitou Yanzhi. – São chamados por necessidade.

Naquele mesmo dia, quando o sol estava no meio do céu, o bosque das cerejeiras exalava um gracioso aroma de flores.

O primeiro príncipe A-Li estava abaixo de uma cerejeira olhando para o mirante a frente. Os pássaros cantavam a melodia dos apaixonados e o coração de A-Li pulsava inquieto à espera dela.

Há dias que seus pensamentos vagavam na direção do rosto da segunda princesa fantasma, mesmo sem entender como ela captara sua atenção em tão pouco tempo, o jovem celestial sentia-se impactado.

Esquecera até mesmo da promessa que fizera a sua mãe, sobre o fato de não eleger uma pretendente naquele momento, mas como dizer ao coração do primeiro príncipe para não se entregar àquele crescente sentimento?

O tempo passava rápido naquela tarde, e quando o sol começou a deslizar para o crepúsculo, caiu sobre o príncipe um sentimento de ansiedade maior.

Será que a princesa fantasma realmente aceitara seu convite ou dissera aquilo apenas para se ver livre dele?

Ou será que ele fora rude ao cobrar-lhe a dívida? Ele deveria ter sido mais paciente?

Ele fechou os olhos, desanimado.

A-Li , o rapaz pensou Você deve ser menos impulsivo.

De repente, um cheiro diferente envolveu o caminho das cerejeiras.

— Shaoye? – alguém o chamou.

A-Li sorriu imediatamente ao perceber a quem pertencia aquela voz.

Virou-se e a encontrou parada ao lado das cerejeiras a sua frente lhe sorrindo docemente tal qual ele sonhara na noite anterior.