Os Treze Guardiões escrita por Miss Lidenbrock


Capítulo 5
O segundo Guardião




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— E aí, Gi, ansiosa pela grande corrida? – perguntou Samir, passando o braço em torno dos ombros de Gisele.

— Você nem faz idéia – Gisele falou – Me preparei o mês inteiro. Ontem a noite, corri cinco voltas em torno do quarteirão.

— Você vai ganhar – garantiu Renata – Vai arrasar com aqueles manés da escola Sta. Bárbara. E nós vamos comemorar na sorveteria da Val depois.

Gisele sorriu, grata pelo apoio. Além de aluna modelo, ela também era uma atleta, principalmente em corridas. Era incrivelmente rápida, e poderia ser profissional, mas por enquanto se contentava com disputas intercolegiais.

 - Você tá bem, Lorena? – Samir perguntou, diante do meu silêncio e da minha mínima empolgação com a competição da Gisele. – Você tem estado meio estranha a semana inteira.

Mordi o lábio, preocupada. Aquela havia sido a semana mais estranha da minha vida.

Eu não havia me transformado em tigre de novo, mas ficava alerta o tempo todo, como se pudesse acontecer a qualquer momento.

Ainda assim, havia percebido várias mudanças desconcertantes. Eu agora podia ouvir sons há quilômetros de distâncias, desde conversas até o ruído de carros do outro lado do quarteirão. Também podia sentir cheiros há distância, e identificar odores que nunca havia sentido antes, como o cheiro particular de cada pessoa.

Outro dia, ao desligar a luz do meu quarto, percebi que minha visão noturna estava perfeita. Eu podia enxergar tão bem como se estivesse de dia.

Também estava mais forte. No dia anterior, minha mãe me pedira pra organizar algumas caixas cheias de objetos velhos pra doação, e eu erguera três de uma vez sem o menor esforço.

A maioria das pessoas talvez ficasse feliz em poder fazer tudo isso. Mas não eu. Tudo o que eu queria era ser normal de novo.

Eu não entendia. Eu sempre havia sido absolutamente comum. O que tinha mudado? E como eu fazia aquilo parar?

— Eu só estou um pouco nervosa com a prova de segunda chamada amanhã – respondi, dando um sorriso sem graça.

— Ah, que nada, ouvi falar que vai ser fácil – Renata desconsiderou – E qualquer coisa é só você colar da Gisele.

— Ei!

— O que foi? É sua responsabilidade como a inteligente do grupo.

— Que horas é a corrida? – Sofia interrompeu a discussão. Ela agora andava com a gente o tempo todo, sentando do nosso lado nas aulas e lanchando na nossa mesa nos intervalos. Por mais que eu estivesse feliz por isso, não conseguia aproveitar direito a companhia dela com tantas preocupações na minha cabeça.

— Depois do almoço – respondeu Gisele – Ou seja, daqui a umas... Duas horas. Ai, meu deus. Vocês todos vão ficar pra me assistir, não vão?

— Claro – dissemos, todos ao mesmo tempo.

— Não íamos deixar de te dar apoio moral – disse Samir, olhando-a com a expressão tão apaixonada que eu não conseguia entender como Gisele não percebia.

— Legal – falou Renata – Vamos comprar o almoço e depois ir pro ginásio. Eu tenho uns pompons que são perfeitos pra nossa torcida.

Gisele riu, e todos fomos andando até o refeitório.

Suspirei. Eu podia pensar nos meus problemas depois. Agora, me forçaria a relaxar e torcer pela minha amiga.

Como se fosse possível. Eu ainda não tinha idéia, mas relaxar era a última coisa que eu ia fazer naquele dia...

*                                       *                                        *

— Olha ela ali – apontei para a cabeça loura de Gisele em meio aos outros corredores, todos se alongando ou correndo no lugar, alguns parecendo nervosos, outros com a expressão confiante.

— Já vi – disse Renata – Ela vai vencer, com certeza. Esses caras não dão nem pro cheiro. Passa a pipoca, Samir.

— Quando ela vencer, a gente corre pra lá – disse Samir.

— E aí você vai poder dar um abraço caloroso e apaixonado nela? – provocou Renata.

— Não enche – resmungou Samir.

— Se você gosta tanto dela – disse Sofia, entre uma pipoca e outra – Porque não conta?

— É – concordou Renata – Um dia desses ela vai aparecer com um namorado e você vai se arrepender de não ter dito nada antes.

Os ombros de Samir murcharam, e eu senti uma pontada de pena dele. A verdade é que ele era tímido demais pra se declarar, além de morrer de medo de levar um fora. O que, sinto dizer, era bem provável de acontecer.

— E por falar em namorado... – disse Renata, erguendo as sobrancelhas.

Virei a cabeça. Leo e Ricardo estavam vindo na nossa direção, carregando uma quantidade impressionante de lanches e bebidas. Meu coração retumbou no peito, como costumava fazer quando Ricardo estava por perto. Segurei o fôlego quando ele sentou do meu lado.

— Oi – disse ele, sorrindo – Mal consegui falar com você essa semana. Senti sua falta.

Pisquei, enquanto meu coração dava saltos, como se estivesse fazendo uma dancinha comemorativa.

— Também senti a sua – sorri. Mas será que ele ainda gostaria de você se soubesse que você é uma aberração que muda de forma? Sussurrou uma vozinha sombria na minha mente. Irritada, mandei ela calar a boca.

Ele parecia prestes a falar mais alguma coisa, mas Leo o interrompeu, jogando pesadamente a montanha de lanches na arquibancada.

— Diz aí se não foi uma ótima idéia vir assistir a corrida da Gigi – exclamou – Vou aproveitar e dar um beijinho de parabéns quando ela ganhar.

Olhei com o canto do olho pra Samir, cujo o rosto tinha ficado perigosamente vermelho.

— Cara – falou – Você mal conhece ela.

— Relaxa, mano. É só um beijinho na bochecha – sorriu ele, com uma piscada – A não ser que ela peça por mais...

Samir abriu a boca pra protestar, e antes que aquilo virasse uma briga, interrompi:

— Olha, vai começar!

Os corredores já estavam em suas posições. Gisele olhou uma vez na nossa direção, com um sorriso nervoso.

— Bem vindos ao décimo terceiro campeonato de atletismo interescolar de Morro Alto – falou a treinadora – Representando a escola Professor Heitor Veríssimo, temos a aluna Gisele Guimarães!

Todos aplaudiram, e eu e meus amigos demos gritinhos e assobios de encorajamento.

A treinadora terminou de apresentar os outros competidores, e ergueu a mão, iniciando a contagem para o início da corrida.

— Corredores, em suas posições – anunciou – Três, dois, um... Vão!

Eles correram. Gisele disparou na frente, ultrapassando os outros competidores sem nem suar. Ela parecia um borrão no meio da pista. Estava rápida. Muito rápida.

— Uou! – exclamou Samir – Ela não estava de brincadeira quando disse que andou treinando!

— Eu nem estou conseguindo ver ela direito – comentou Sofia, cerrando os olhos.

— Manda a ver, amiga! Desbanca esses otários! – gritou Renata.

Arregalei os olhos. Eu sabia que Gisele era rápida, mas ninguém era tão rápido assim. Alguma coisa estava errada. Uma sensação muito ruim começou a se avolumar na boca do meu estômago.

A corrida acabou em uma questão de minutos, com Gisele ganhando com uma larga diferença do segundo lugar. Meus amigos e eu nos levantamos, todos gritando em comemoração.

— Caraca! Isso foi incrível! – bradou Leo – Não acredito que ela foi tão rápida!

— É, mas ela não parece muito bem – disse Ricardo, a testa franzida de preocupação.

Olhei na direção de Gisele. Ela estava pálida, se apoiando nas grades do ginásio pra se firmar.

— O que ela tem? – perguntou Sofia, os olhos grandes arregalados de preocupação.

— Acho que é normal ela estar meio tonta – opinou Samir – Afinal, ela correu pra caramba...

Mas eu suspeitava que aquilo não tinha nada de normal. A sensação ruim no meu estômago aumentou. Tensa, observei Gisele, que sem nem esperar pra receber a medalha, saiu rapidamente do ginásio, indo para o lugar para onde eu imaginava que ela iria: o vestiário.

— Fiquem aqui – falei rapidamente para os outros – Eu vou lá ver se ela tá bem.

— Não é melhor a gente ir junto? – Samir se adiantou, ansioso.

— Não, não – falei rapidamente – Não acho uma boa idéia ficar muita gente em volta dela – ainda mais se estivesse acontecendo o que eu suspeitava que estava – Deixa que eu vou – e, sem dar a eles oportunidade de discutir, desci os degraus da arquibancada correndo.

O vestiário estava escuro e vazio. Minha nova visão, entretanto, podia enxergar tudo muito bem. Examinei a sala, em busca de algum sinal da minha amiga.

— Gisele? – chamei, hesitante – Você está aí?

Um som baixo, perigosamente parecido com um rosnado, ressoou no recinto.

Num canto, atrás dos armários, vi com um susto dois olhos brilhantes me encarando na escuridão.

— Gisele? – repeti.

Os olhos se aproximaram, e eu pude ver o corpo que os acompanhava.

Não era um tigre. Era, com certeza, um felino grande, mas seus pelos tinham pintas, em vez de listras. Lembrava uma onça, só que mais esguia. Tinha duas linhas pretas que corriam abaixo dos olhos.

De repente, um dos inúmeros documentários do Discovery Channel que assisti com a minha mãe me veio à cabeça. Um dos animais mais rápidos do mundo. Um...

— Guepardo – sussurrei. O pior é que fazia sentido.

Dei um passo a frente, e o animal rosnou, exibindo as presas. Inspirei fundo, tentando não sentir medo. Agora mais do que nunca eu sabia que os bichos podiam farejar o medo, e isso apenas os atiçava mais a atacar.

— Gisele – murmurei, num tom que esperava ser tranqüilizador. – Eu sei que é você aí dentro.

O guepardo me observou com os olhos analíticos, como se estivesse decidindo se eu servia de lanche ou não. Eu não sabia o quanto da Gisele estava ali. Eu tinha estado consciente durante o meu período como tigre, mas não sabia se aquilo era uma regra.

— Sou eu – sussurrei – Lorena.

Dei outro passo a frente, e dessa vez ela não rosnou, apenas recuou defensivamente. Tomei isso como um bom sinal.

— Eu sei que está aí – falei, me aproximando – E sei que está assustada. Mas vai ficar tudo bem. Eu posso ajudar você.

Pensar na minha vida humana e nas pessoas que eu amava havia me ajudado a me transformar de volta. Talvez funcionasse com ela também.

Cheguei perto, e, tentando não me apavorar, encostei de leve a mão na cabeça dela. Ela me encarava com um olhar inteligente, quase de reconhecimento.

— Eu sou a Lorena. Sua melhor amiga. – falei – E você é a Gisele. Que sempre tira nota dez nas provas, nunca faz nada de errado, nunca entrega um trabalho ou mata aula, ou cola nas provas. Que adora esportes, sorvetes de baunilha e sair com os amigos. Que sempre tá aí pra ajudar quando os outros precisam, mesmo que você mesma não esteja muito bem. Que pensa nas outras pessoas antes de pensar em si mesma. Que é uma das melhores pessoas que eu conheço e que eu amo muito, muito.

Agora, ela não tirava os olhos de mim, e não parecia tão assustadora, afinal.

— Respira – instruí – Lembra de quem você é.

E então aconteceu. A forma do guepardo pareceu borrar e tremeluzir, e eu assisti, fascinada, os olhos negros do animal lentamente se tornarem os olhos azuis de Gisele.

— Gi? – sussurrei baixinho, me aproximando lentamente – Você está bem?

Gisele me encarou. Seu rosto estava muito pálido, e a expressão se dividia entre assustada e confusa.

— O que... Eu... – balbuciou ela – Que merda acabou de acontecer?

Soltei o ar, que até então nem percebera que estava prendendo.

— Bem – falei – Pra ser direta e reta, você acabou de se transformar num guepardo. A boa notícia é que você não comeu ninguém. Não que eu tenha visto.

— Eu me transformei num...?

— Guepardo – repeti – É uma espécie de felino africano que...

— Eu sei o que é um guepardo – exclamou Gisele, me encarando com impaciência. Toda sua força parecia estar voltando. – Mas isso é impossível. Eu... Eu achei que estava tendo uma alucinação ou coisa assim...

— Foi bem real – falei, a expressão triste – Eu estava aqui. E você... Você se lembra, não é?

Gisele não parecia muito consciente de si quando estava transformada, então eu não sabia quanto ela realmente lembrava da experiência.

Ela apenas assentiu, trêmula. Ficou alguns segundos em silêncio, e então voltou-se pra mim, os olhos azuis muito arregalados.

— Como é possível? – sussurrou?

Me sentei no chão junto a ela, me inclinando para olhar em seus olhos.

— Eu não sei – confessei – Alguma coisa está acontecendo. E não é só com você. Aconteceu comigo também.

Ela me encarou com espanto, e, resumidamente, descrevi o que havia acontecido comigo no meio da semana. Ela ouviu em um silêncio chocado, e quando terminei, ela soltou o ar pesadamente pela boca.

— Eu não entendo – falou – O que pode ter causado isso?

— Sei lá – dei de ombros – Será que a gente fez algo estranho nos últimos dias? Tipo nadar num rio com água radioativa ou algo assim?

Gisele franziu a testa e mordeu a ponta do polegar, como só fazia quando estava muito concentrada.

De repente, seus olhos se arregalaram, e ela sacudiu meus ombros com força.

— O museu! – exclamou.

— Quê? – franzi a testa.

— Você sabe, quando a gente invadiu a sala pra ver o artefato indígena, e aconteceu aquela coisa estranha da Sofia começar a ler aqueles pergaminhos indígenas, e teve todo aquele negócio sinistro com o vento...

— Ah. Meu. Deus. – senti meus olhos se arregalarem de choque – Você acha que... Não pode ter sido isso. Pode?

— Eu senti uma coisa estranha nesse dia – afirmou Gisele – Uma espécie de calor no peito, como se alguma coisa estivesse entrando dentro de mim.

— Eu senti a mesma coisa – murmurei, sentindo o pânico se avolumar na boca do meu estômago – Ah, droga. Se o que aconteceu no museu foi realmente o que causou tudo isso, então o nosso problema é ainda pior do que eu pensava!

— Como assim? – Gisele franziu as sobrancelhas.

— Porque – expliquei – Isso significaria que todo mundo que estava lá corre o risco de se transformar em algum animal!

Gisele cobriu a boca com a mão, as sobrancelhas erguidas.

— Puta merda, eu não tinha pensado nisso – exclamou – Tudo bem. Certo, não vamos nos desesperar. Precisamos nos organizar.

Suspirei, quase sentindo vontade de rir. Gisele era sempre sensata e organizada, mesmo quando a situação era absurda.

— Primeiro, vamos fazer uma lista – continuou ela – Quem mais estava lá com a gente?

— Hum... Bom, além de nós, a Renata, o Samir, a Sofia, obviamente... – mordi o lábio – O Ricardo e o Leo...

Esfreguei a testa. A idéia do garoto por quem eu desenvolvera uma queda nas últimas semanas poder virar um bicho a qualquer momento era surreal demais.

Por outro lado, eu virar um tigre e minha melhor amiga virar um guepardo também era.

— A Pâmela também estava lá, com eles – acrescentou Gisele.

— Ugh. Tinha esquecido. Tomara que ela vire um rato ou algo assim – falei, rindo, diante do olhar severo de Gisele – Desculpa. Não é engraçado. Continuando.

— Tinha os gêmeos – falou ela – E aqueles dois amigos esquisitos. O grandão e...

— Bernardo – falei – E... O Eric. – engoli em seco, mas Gisele não pareceu notar.

Gisele botou a mão no queixo, pensativa.

— Eu sei que tinha mais alguém... – murmurou – Não consigo lembrar.

Tentei forçar a memória, mas não consegui. Todo aquele dia meio que parecia um borrão.

— Lembrei! O Eduardo! – exclamou ela – Eca. Aposto que ele vai virar uma cobra, ou um escorpião, ou algum bicho bem venenoso.

— Bom – falei – Aposto que vamos acabar descobrindo. Temos que ficar de olho neles. Nós tivemos sorte de nos transformar em lugares onde ninguém pudesse ver, mas vai que algum deles vira um animal no meio de multidão?

— Se é que ainda não aconteceu – ressaltou Gisele – Não sabemos.

Mordi o lábio. Não notei ninguém agindo de modo estranho nos últimos dias, mas vai saber. Talvez fossem melhores atores do que eu.

Gisele suspirou, encostando a cabeça na parede, parecendo esgotada.

— Isso tudo é uma loucura – falou – O que vamos fazer?

Botei o braço em volta dos ombros dela, encostando nossas cabeças, sem saber se estava tentando consolar a ela ou a mim.

— Vamos descobrir o que está acontecendo – assegurei – E, quando descobrirmos, vamos dar um jeito de resolver isso.

Mas aquilo era só o começo de tudo.


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