Úrsula - A Feiticeira das Trevas escrita por LenyCSM


Capítulo 1
Capítulo Único




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A feiticeira das trevas estava no limiar da morte pois, sem luz, não pode haver escuridão e, privarem-na de ver o sol, estava a consumi-la. Ela aproximou-se, a custo, do grande espelho do quarto onde a mantinham prisioneira e olhou o seu reflexo, ao qual perguntou o que fazer? para contornar a situação. O silêncio manteve-se na divisão, interrompido pelo crepitar das fracas chamas da lareira, mas, na sua mente, ela ouviu a resposta. Ergueu os braços e respirou fundo. Concentrou a pouca energia que lhe restava. Pouco depois, uma onda invisível trespassou o castelo, acompanhado de um grito seco e cansado. Os cabelos negros da jovem feiticeira embranqueceram como a neve, a voz melodiosa substituiu-se por massas de ar, o olhar brilhante tornou-se fosco, sem vida e cego... Enquanto o seu reflexo no espelho ganhou vida... Tal e qual como ela estava... Antes de ter sacrificado a maior parte do seu poder, a sua fala e a sua visão, em troca de mais tempo de vida na esperança de, um dia, ser liberta... E aí recuperar o tempo perdido e bens sacrificados.

A onda invisível não passou despercebida pelos habitantes do castelo, que a sentiram nitidamente a passar pelos seus corpos. Pouco depois, o rei e captor da feiticeira, entrou de rompante no quarto escuro, onde se deparou com a mulher estendida no chão, de respiração lenta e pesada. Fechou a porta apressadamente e tomou-a nos seus braços. Ela estava irreconhecível. Toda a beleza e esplendor que lhe conhecera quando a viu adormecida na urna de vidro haviam desaparecido, ou melhor, foram substituídos por aquela formosidade sobrenatural que tinha diante dos seus olhos.

— O que diabos aconteceu?

A voz que lhe respondeu era a dela, mas não era ela quem falava.

— Foi culpa tua.

Ele olhou em volta furioso e confuso.

— Quem fala? Que bruxaria é esta!?

— Olha para o espelho e verás.

Assim que o rei se voltou na direção do espelho e o encarou, a sua expressão passou da fúria ao assombro. O que era aquilo?

— Quem és tu? O que lhe fizeste!?

— Eu? Sou o Reflexo e nada lhe fiz... Se está assim foi escolha dela. Por tua culpa, ela sacrificou para este espelho a maioria do seu poder, a sua voz e a sua visão, em troca de vida. Vida que lhe tiras aos poucos... enquanto a manténs trancada neste quarto horrendo. Sou a representação do que ela deixou para trás.

Voltou a contemplar, instantaneamente, as feições da feiticeira nos seus braços, antes de responder ao Reflexo.

— Como é que ela volta ao normal?

— Tu sabes como. Só resta saber até que ponto te dispões a fazê-lo.

— E se eu quebrar o espelho!? - A voz voltou ao tom colérico de antes.

O Reflexo riu, ironicamente, com requintes de malvadez na voz.

— Ela fica assim para sempre e eu assombro os teus dias até que a tua morte nos separe. Mesmo que destruas todos os espelhos... Sempre existirá algo onde me possa refletir!

— Reflexo maldito... - resmungou.

Levou a feiticeira até à cama, deitou-a e aconchegou-a, ignorando o Reflexo que ainda gargalhava subtilmente. Saiu do quarto escuro e mandou duas criadas cuidarem devidamente dela. O crepúsculo acabara e a lua aparecia timidamente no jovem céu noturno. O rei caminhava sem rumo pelo castelo, perdido em pensamentos, travando uma luta interior. O que fazer?

Quatro anos antes.

O recém-coroado rei foi convocado para visitar uma bela e velha catedral, bastante famosa entre os reinos, pois reza a lenda que lá jaz uma poderosa feiticeira adormecida. Obviamente não passava disso: uma lenda (ou assim pensava o jovem soberano).

Ele foi conduzido através de escadas e corredores, por dois bispos e um cardeal, até à mais subterrânea sala da catedral. Sala essa que ninguém conhecia, além dos senhores da igreja e, agora, o novo rei. Dois guardas encorpados abriram as pesadas portas de carvalho escuro e ferro, assim que o cardeal ditou a ordem, mostrando a mais bonita divisão alguma vez vista.

As paredes eram decoradas em talha prateada e pedras preciosas das mais variadas cores, tamanhos e formas. As tochas com cabo de pinho, que iluminavam a ilustre sala, continham detalhes em ouro. O chão era todo de pedra mármore matizada a branco e cinza, contudo, o centro era diferente, tendo um enorme desenho circular feito em ónix, no qual se destacava uma urna de cristal e prata. O rei estava completamente embasbacado com toda aquela beleza, mas nada que se compare ao momento em que ele se aproximou da urna e viu o seu interior...

Lá estava uma mulher. A mais bela que alguma vez vira na sua vida. A pele tão branca quanto o mármore a seus pés, um corpo perfeito de manequim coberto por um majestoso vestido púrpura trabalhado a dourado, os cabelos longos da cor da noite emoldurando aquele rosto de boneca profundamente adormecido. Quem seria?

— Esta que aqui vedes majestade é uma poderosa feiticeira das trevas. Mantemo-la aqui presa e adormecida para que não faça estragos. Ela causou muitos danos no passado. Destruiu mais de metade dos reinos, incluindo este... Alimentada pela ira e controlada por um mestre cuja mente era a mais perversa alguma vez conhecida. Felizmente descobriu-se a fraqueza dela. A ausência de luz solar reduz-lhe as forças... E foi graças a uma tempestade que durou dias consecutivos que conseguiram capturá-la para, então, aqui ser aprisionada. Deste aí, este é o seu lar, protegido pela igreja e pelas casas reais... o maior segredo alguma vez conhecido e convertido em lenda...

Pouco o rei ouviu da história contada pelo cardeal. Estava completamente vidrado na feiticeira. No seu interior crescia uma enorme vontade de tê-la só para si, de modo a poder contempla-la quando quisesse e, na sua mente, já um meticuloso plano era talhado para conseguir tal feito. Demorasse o tempo... Ela iria ser sua...

Quatro anos se passaram desde esse episódio. A noite já ia avançada e mal se ouvia um único som nas ruas. Uma das portas secundárias da catedral estava escancarada e visivelmente forçada. No mais subterrâneo dos corredores ouviam-se passos ecoarem nas paredes de pedra fria: uma pequena armada liderada pelo rei. Os dois vigilantes das portas de carvalho foram brutalmente chacinados e as pesadas portas cortadas e queimadas até permitirem a passagem àqueles homens. A urna de cristal no centro da sala foi cuidadosamente aberta e, do seu interior, o rei retirou o corpo adormecido da feiticeira e carregou-o nos seus braços até ao exterior. Para trás apenas deixaram o caos, a desordem e o cheiro de morte no ar.

O sol ia alto naquela manhã após a blasfémia contra a catedral. Não tardou até o cardeal consultar o rei, para falar acerca do ocorrido.

— É terrível meu senhor! Violaram a casa de Deus e levaram a feiticeira. Quem sabe que males podem ocorrer de agora em diante... É terrível! Terrível! Fomos demasiado descuidados. Devíamos ter reforçado a segurança na noite de peregrinação e não o contrário! Nunca semelhante coisa havia ocorrido!

O homem estava em pânico. Mal sabia que o seu soberano era o responsável por tamanho sacrilégio. Nada foi feito ao acaso. O rei esperou 4 anos pela noite de peregrinação em honra da santa padroeira do reino, que acontece uma vez a cada 10 anos e deixa a catedral completamente desprotegida. A oportunidade perfeita para levar a feiticeira. Aquela bela mulher que agora era sua e se encontrava presa num grande quarto escuro, para de lá nunca mais sair. Ou era essa a ideia...

Correu, subtilmente, com o cardeal do castelo e subiu para o quarto onde estava a feiticeira. Ela ainda dormia, mas certamente seria por pouco tempo. Parecia calma e serena. Ninguém diria que semelhante beldade poderia matar e destruir sem piedade. Ele sentou-se junto à cabeceira da cama e alinhou-lhe os cabelos negros. De súbito, um suspiro profundo tomou conta da divisão e os olhos, outrora fechados, deram lugar a um deslumbrante olhar âmbar.

Ela observou o ambiente ao seu redor, até encarar com o rei, boquiaberto, a seu lado. Levantou-se da cama, ignorando-o por completo e caminhou de um lado para o outro no quarto.

— Isto não me parece aquela salinha patética da catedral. - comentou.

Aquela voz melodiosa atingiu-o como um baque e cortou-lhe, momentaneamente a respiração.

— Quem és e onde estou?

— E-e-e-u sou o senhor deste reino e este é um dos quartos do meu castelo. - Respondeu levantando-se de onde estava.

— Rei... Como vim aqui parar, humano? – questionou, desdenhosamente, de sobrolho erguido.

— "Humano" não me parece lá muito cortês. Se não pretendes respeitar o meu título, pelo menos trata-me pelo meu nome: Aiden. E fui eu quem te trouxe para aqui ontem à noite... Errrr...

— Ursula. Muito interessante um ser comum como tu conseguir tirar a minha pessoa daquela sala prateada.

— Porquê?

Ursula contornou a cama e lá se sentou, elegantemente, alisando mechas de cabelo com os dedos esguios e delicados. Concentrou-se exclusivamente nessa tarefa durante alguns segundos, antes de se decidir a responder ao rei.

— Se queres mesmo saber, Aiden... Senta-te aqui... E contar-te-ei a minha história.

Aiden sentou-se, relutante, ao lado da feiticeira. A curiosidade era mais forte que tudo o resto e aqueles olhos âmbar que o fixavam eram hipnotizantes.

— Fui amaldiçoada (ou agraciada) com o poder das trevas e da destruição. Não sei precisar quanto tempo se passou, mas sei que foi há muito... Quando eu finalmente atingi o meu pico de poder... Alimentada pela dor, pela mágoa, por um coração partido e uma mente muitíssimo perversa. Deixei vários reinos, incluindo este, mergulhados no caos e no terror. O medo e a luz do sol davam-me forças, juntamente com todos os outros sentimentos e emoções negativas. Porquê o Sol? Perguntas tu certamente. É muito simples: sem luz nunca pode existir escuridão. Mas... Uma tempestade abateu-se sobre os reinos e, sem luz solar, fui enfraquecendo, até não ter mais forças para atacar. Foi aí que me capturaram e fecharam na sala prateada. Fizeram uma forte oração e um feitiço benigno que me deixaram adormecida durante anos. A ideia era que eu dormisse por toda a eternidade mas, aparentemente, um rei petulante conseguiu arruinar esses planos de outrora. Resta-me saber o porquê disso, certo?

Demorou um pouco até que Aiden conseguisse sair do seu transe. Depois de se acalmar e respirar profundamente umas quantas vezes, respondeu a Ursula.

— Vi-te pela primeira vez há 4 anos atrás. Até então julgava que não passavas de uma lenda. Fui bem enganado. Todos fomos... Desde aí não consegui pensar em outra coisa, se não ter-te só para mim. Tanta beleza e formosura ali fechadas num pedaço de cristal e prata... Esperei pelo momento certo para invadir a catedral e trazer-te para aqui. Como bom ouvinte que sou, deixei-te aqui neste quarto escuro, para ter a certeza que não há poder que te valha, para fazeres o que quer que seja contra mim ou o meu reino. Agora pertences-me... Ursula...

Ela suspirou e voltou a deitar-se na cama.

— E o que pretendes fazer comigo? Se é só para me manter presa, podias ter-me deixado ficar na urna. Não fazes a mínima ideia do que pode acontecer...

— Por enquanto sim, vais ficar apenas aqui fechada, para que eu te possa ver e falar sempre que quiser. Ainda não tenho mais planos para ti.

— Não me podes privar da luz do sol durante muito tempo. A voz da feiticeira denotava preocupação.

— Não me posso dar ao luxo de correr o risco de destruíres tudo.

Com esta frase, Aiden saiu do quarto, trancando a porta atrás de si. Ursula ainda saiu da cama e correu até lá, com o pânico estampado no rosto e receio espelhado nos olhos, mas de nada serviu. Era mesmo prisioneira do quarto escuro e, a julgar pelo rumo da situação, ela estava em maus lençóis.

Passavam-se as horas, os dias, as semanas... A feiticeira sentia-se cada vez mais fraca, definhando a pouco e pouco. Aiden entrou no quarto, como em tantas outras vezes, desde que ela ali chegara. Ainda ignorava o mal que fazia àquela mulher... Ignorava as suas palavras...

— Deixa-me sair daqui... Por pouco tempo que seja... Preciso de luz!

Ele caminhou para junto da janela tapada, perto da qual Ursula estava sentada e ajoelhou-se aos pés dela, passando-lhe os dedos pela face e pelos cabelos.

— Sabes que a resposta é não, minha querida. Pergunto-me porque insistes tanto.

 - Eu estou a morrer...

Uma lágrima caiu-lhe dos olhos âmbar e escorreu até à mão do rei.

— Não vou cair nesse truque Ursula.

Levantou-se do chão e beijou a testa da feiticeira, saindo porta fora em seguida. Ela deixou-se cair de joelhos sob a carpete vermelha que decorava o chão do quarto escuro, abraçada a si mesma, chorando desalmadamente. A sua vida estava por um fio. A dor e a fraqueza consumiam-na e ele era incapaz de ver isso, mesmo diante dos seus olhos.

 Já não aguentava mais.

Levantou-se a custo e arrastou-se até à frente do enorme espelho que tinha na divisão, no qual se apoiou e contemplou o seu reflexo iluminado pelas chamas da lareira crepitante.

— O que devo fazer? - perguntou. E dentro da sua mente veio a resposta.

Entrega-me o que te é mais precioso.

O Reflexo no espelho. A feiticeira quase irreconhecível. As últimas palavras que lhe ouviu.

Estou a morrer...

Era aterrador. E, segundo o Reflexo, só ele sabia o que fazer para Ursula voltar ao normal. Olhou, demoradamente, para a Lua brilhante rodeada de estrelas. Sim, ele tinha a solução... Mas também medo. Medo de a perder.

— Sol... - murmurou para si mesmo. - É um risco que tenho de correr... Se não a perder de uma forma, perco-a de outra muito pior. Porque sou tão cego meu Deus?

A pergunta ficou suspensa no ar, pois só ele podia encontrar a resposta.

Os pássaros chilreavam, marcando o ritmo do amanhecer, trazido pela brisa fresca. A primeira ordem do dia, logo após o pequeno-almoço, foi a mais inesperada de sempre.

 Destacou-se e abriu-se a porta do quarto escuro. Uma das criadas do castelo, ordenada pelo rei, aproximou-se de Ursula, que se encontrava sentada numa poltrona, a olhar para o seu regaço sem o ver.

A criada deu-lhe as mãos, incentivando-a a levantar-se e conduziu-a para fora da divisão. Continuou a conduzi-la, através de escadas e corredores, até alcançarem o jardim Leste do castelo. Assim que a feiticeira começou a sentir o calor dos raios solares na sua pele, soltou as mãos da criada e caminhou, lentamente, alguns passos adiante. Ergueu o rosto e os braços ao céu, esboçando um enorme sorriso. Afinal era-lhe permitido viver.

No centro do jardim Leste existia uma majestosa fonte decorativa, com estátuas maravilhosas, das quais jorrava água límpida e fresca. Sentada na berma dessa fonte estava Ursula, visivelmente a desfrutar do ar livre, com uma criada a seu lado. Não muito longe dali encontrava-se o rei, a observa-la pacientemente, com um ar aliviado e, ao mesmo tempo, preocupado. Ele respirou fundo e dirigiu-se para junto da feiticeira, dispensando a criada. Uma vez sós, Aiden ajoelhou-se aos pés de Ursula e segurou-lhe gentilmente as mãos. Ela continuou de rosto voltado para o céu, de olhos fechados, como se nada estivesse a acontecer, sentindo a luz do sol na pele e a brisa nos cabelos embranquecidos.

— Espero que um dia me possas perdoar, por te ter feito chegar a tal estado, graças à minha ignorância... Por não confiar nas tuas palavras... Juro por Deus, que não era esta a minha intenção e nem nunca foi. - lágrimas começaram a escorrer do olhar cor de mar do rei. - Não queria perder-te, mas também não queria perder o meu reino.

A feiticeira abriu os olhos e dirigiu-os para Aiden, com um ar imparcial, como se nada ele tivesse dito. Assim ficaram durante alguns minutos, até que o rei se levantou ligeiramente, tirando as suas mãos das de Ursula para lhe tocar a face. Em menos de nada já ele lhe beijava, gentilmente, os lábios rosados, enquanto acariciava a linha do maxilar com as pontas dos dedos.

Não sabia ao certo em que estação do ano estava. A julgar pelo aroma das flores, poderia jurar ser Primavera. Mas estava indecisa entre isso e o princípio do Verão.

 Naquele momento tudo isso era irrelevante.

O sol abraçava-a com o seu calor acolhedor, ao mesmo tempo que um outro tipo de calor se espalhava dentro dela. Tornava-se difícil explicar aquela sensação estranha, porém, familiar. Passara-se muito tempo desde a última vez que beijara alguém... Desde que se apaixonara pela primeira e única vez... Desde que o seu coração fora impiedosamente destruído por aquela pessoa que julgava amá-la...

Os lábios do rei separaram-se dos dela. Nesse momento, Ursula agarrou a mão que lhe acariciava o rosto e afastou-a calmamente, pousando-a no seu regaço. Baixou a cabeça e começou a chorar inexplicavelmente, ao mesmo tempo que apertava a mão de Aiden sem se aperceber, ao recordar todo o seu passado de dor.

Ele olhava-a pesarosamente. A feiticeira podia estar muda, mas aquele gesto transmitiu perfeitamente todas as palavras não ditas. Também ela tinha receio de cair, novamente, numa armadilha.

Perto do fim da tarde, Aiden levou-a até ao quarto, que já não era mais escuro, e ajudou-a a instalar-se no toucador. Aí ele pode realmente reparar quão longo era o cabelo dela.

— Posso trançar-te o cabelo? Penso que seja mais prático.

Ursula olhou-o, sem o ver, através do espelho do móvel e assentiu com a cabeça. O rei agarrou numa escova e começou pentear cuidadosamente os cabelos cor de neve.

— Quando eu era pequeno, passava muito tempo com a minha mãe e via-a trançar o cabelo dela, vezes sem conta. Achava tão interessante que comecei a trançar as franjas dos cortinados. O meu pai é que não achou isso lá muito engraçado.

A feiticeira sorriu ligeiramente. Quando Aiden começou a arranjar os cabelos, o Reflexo surgiu no espelho do toucador.

— Então, querida Ursula, como foi o dia lá fora? Conta-me tudo! Ah não... Espera... Tu não podes falar! - comentou zombeteiramente, seguido de uma gargalhada estridente - que rude da minha parte.

Os lábios da feiticeira crisparam-se numa linha fina e Aiden lançou um olhar nada convidativo ao espelho.

— Não me faça essa cara majestade, que me sinto ofendida. Que tal ouvir a história de amor da nossa querida Ursula, enquanto continua com o trabalho de cabeleireiro? Sabe, apesar de ser uma feiticeira das trevas, ela sempre foi uma boa menina e nunca usou os seus poderes para destruir, o que fazia dela a queridinha do reino. Certa vez cruzou-se com um jovem e belo rapaz na aldeia e, com um simples sorriso, o coraçãozinho da Ursula foi amarrado. Não a censuro, ele era mesmo encantador. Com o tempo e depois de muito se cruzarem, começaram a encontrar-se e conversar. Conversa vai, conversa vem, ele beijou-a de surpresa e aí ela teve a certeza de que estava apaixonada... E julgava ser correspondida... O moço sabia perfeitamente quem ela era e o que queria dela. Depois de muito alimentar o amor da feiticeira, ele deixou cair a máscara... E deixou-se ser apanhado com outra mulher, no mesmo lugar onde se encontrava com Ursula. Foi um dó d'alma aquela cena. Consumida pela dor, pela tristeza e todas as demais emoções negativas provindas de um coração partido, o verdadeiro responsável por todo aquele sofrimento apareceu: o pai do rapaz. Ele instruíra o filho a brincar com os sentimentos dela, de modo a enfraquecer-lhe a mente, para aí ele puder tornar-se seu mestre e semear o caos, implantando-lhe ideias de vingança. Infelizmente foi o que aconteceu e o resto já ela te contou. Exceto que o dito rapaz e o pai dele morreram no meio da desordem. Pobres coitados sem noção...

Terminada a história, já o cabelo estava todo trançado, com Ursula lavada em lágrimas de um choro silêncio e Aiden de maxilar tenso e punhos serrados sobre as costas da cadeira.

O Reflexo desapareceu do espelho deixando-os, novamente, a sós. O rei ajeitou-lhe a trança e, em seguida, abraçou-a fortemente sem pronunciar uma única palavra. No fim das contas ela não passara de uma vítima e fora tratada como uma vilã. Apesar da destruição ter sido culpa dela, a ideia não foi de sua autoria e sim daquele homem que conseguiu destroça-la e controlar-lhe a mente.

Aiden sentiu-se profundamente culpado. Também ele partiu do princípio que Ursula era a má da fita e, por isso, prendeu-a naquele quarto e quase a deixou morrer por negligência.

Podia-se ter evitado tanto sofrimento desnecessário...

Nunca ele desejou tanto ter podido saber da história completa da feiticeira mais cedo como naquele momento.

Desfez-se o abraço e Aiden ajudou-a a ir até à cama, onde a aconchegou e se deitou ao lado dela, por cima das cobertas. Ele ficou a observar cada traço daquele rosto de boneca, enquanto o acariciava levemente. Ursula nada fez para o impedir, mantendo o seu ar sereno e a respiração calma. O rei sorriu ao aperceber-se de que a feiticeira começou a ficar sonolenta.

— Lembras-te de me perguntar que planos eu tinha para ti?

Ela confirmou com um aceno de cabeça.

— Na altura não tinha nada específico em mente, mas agora... Penso já poder dar-te uma resposta mais apropriada.

Ursula assumiu uma expressão atenta e Aiden aproximou-se mais dela, até ficarem com as testas encostadas uma na outra. Tirou-lhe a mão da face e segurou da feiticeira, levando-a até ao seu peito e pressionando-a contra ele, de modo a ela poder sentir os batimentos cardíacos.

Os olhos âmbar arregalaram-se.

— Quero juntar cada pedacinho do teu coração partido, um por um, até que fique inteiro novamente. Quero poder ajudar-te a recuperar a tua vitalidade o quanto antes, para que possas reaver os teus bens sacrificados, por minha culpa. E... Quero que sejas minha rainha... - fez uma pequena pausa e engoliu em seco, antes de concluir - Se me deixares... - depositou-lhe nos lábios um beijo casto - Sem truques.

Foi passando o tempo, deixando para trás as flores da Primavera e o calor do Verão. As folhas das árvores mudaram de cor e caiam numa chuva de tons terrosos, motivadas pela brisa outonal, levemente fresca.

Ursula recuperava lentamente a sua vitalidade, aproveitando cada raio de sol, sempre acompanhada por Aiden, que se esforçava afincadamente por cumprir os seus planos. Parecia estar a ser bem-sucedido pois, aos poucos, a feiticeira recuperou o sorriso e a expressão de felicidade. Vê-los caminhar pelos jardins, de mãos dadas, tornou-se uma visão familiar no castelo.

Certo dia, em que o vento estava particularmente agitado e Ursula estava sozinha no quarto a descansar, o Reflexo voltou a aparecer no grande espelho.

— Estás com bom ar. Quanto tempo mais achas que ele dura assim tão meloso e paciente? Ambas sabemos que deve ser muito cansativo e entediante cuidar de uma cega muda. Daqui a pouco ele faz o mesmo que o outro rapaz.

A feiticeira ouviu o Reflexo rir maldosamente e voltou-se na direção do som, apalpando o ar e empunhando um candelabro, que era o objeto mais próximo de si. Os olhos âmbar ardiam de fúria.

— Não, não querida! Sabes que se quebrares o espelho, ficas assim para sempre! Ou será isso que queres?

Ursula ajoelhou-se no chão, cerrando os dentes e apertando fortemente o candelabro até a mão lhe doer e passar do branco ao rosado. Tinha um grito de raiva preso na garganta, que jamais iria sair, por muito que ela se esforçasse.

Quanto tempo mais duraria o pesadelo do espelho e a perseguição dos fantasmas do passado?

Chegou o Inverno. Certamente nevaria em breve. Desde aquele dia de Outono, todas as noites de Ursula eram preenchidas por pesadelos, retratando as palavras do Reflexo. Este, por sua vez, não perdia uma oportunidade para atormentar a feiticeira, com palavras amargas banhadas em risos maldosos. Os sorrisos de felicidade deram lugar à preocupação que, juntamente com o frio invernal, trouxeram uma febre intensa que insistia em não baixar. Aiden não sabia o que se passava, nem o que podia fazer para ajudá-la. Mal ele podia imaginar a pressão acumulada dentro dela. A voz muda não a permitia dizer o que lhe pesa na alma. Os olhos cegos impediam-na de escrever apropriadamente. Expressar-se por gestos, para aquela situação em específico, era uma missão quase impossível.

Ursula estava confinada à sua cama. O corpo ardente de febre, coberto com toalhas de água fria. O rei, sentado à sua cabeceira, limpava as infindáveis gotas de suor que lhe escorriam pelo rosto. Àquele ritmo teria de quebrar o segredo e chamar uma curandeira. O Reflexo apareceu no espelho, com ar triunfante, não se importando com a presença de Aiden.

— Que pena. Ela estava quase boa e agora veio uma gripe atrapalhar. Não sei o que mais me surpreende: se a resistência dela, se o facto de ainda não ter sido posta de parte pelo rei dos olhos bonitos. - assumiu uma expressão ironicamente desapontada, que combinava na perfeição com o tom de voz usado - Mas sei que quanto mais tempo ela assim estiver, mais poderosa eu fico! Dentro em breve terei poder suficiente para plantar o caos novamente e ela ficará inútil para sempre!

Enquanto as gargalhadas do Reflexo ecoavam no quarto, deu-se um clique na mente de Aiden e aí ele entendeu tudo o que não conseguira entender até então.

O rei encarou o espelho, com uma mão segurando a de Ursula. Os olhos cor de mar mostravam-se sérios.

— Então tu é que a deixaste assim! Tinhas tudo planeado desde o início!

— Oh! Apanhaste-me doçura! Erro meu. - gracejou - É claro que tinha tudo planeado desde o início, humano! Achas que era realmente necessário este sacrifício ao espelho? Mais tarde ou mais cedo encontrá-la-ias estendida no chão e farias exatamente o mesmo que tens feito até agora, pinga-amor. Eu só precisava de um tolo como tu mesmo. Pensas que não pude sentir o teu olhar apaixonado, assim que a viste pela primeira vez, há quatro anos atrás? Quem julgas que te ajudou a incrementar a ideia de tirar a feiticeira da urna? Mas... Devo agradecer a tua ajuda. Se não fosse a tua lerdice, nada disto teria corrido desta forma.

— Reflexo maldito...

Desvendou-se o plano do espelho, mas agora pairava uma dúvida na mente de Aiden. Quem é que realmente destruiu tudo no passado? Ursula ou o Reflexo?

Felizmente não fora necessário chamar uma curandeira. A força de vontade da feiticeira prevaleceu e a febre baixou até desaparecer por completo.

Lá fora a neve caía numa chuva branca e delicada. Apesar do susto causado pela doença, ela conseguiu convencer Aiden, por meio de gestos, a levá-la até o exterior. Agora que ele sabia de tudo, sentia-se muito mais leve e aliviada. Mesmo sem sol, a sua vitalidade continuou a restaurar-se. Seria esse o poder dos sentimentos verdadeiros e sinceros? Fosse como fosse, ter uma fonte de energia, além da luz solar, era algo novo e aconchegante.

O rei observava-a a caminhar, cautelosamente, no meio da neve, como uma criança divertida. Não havia nada melhor como ver novamente aquele sorriso. Ursula deu meia-dúzia de passos e retornou para junto de Aiden. Podia não o conseguir ver, mas sentia o seu calor. Ao recordar-se de tudo o que ele fizera por ela após ter reconhecido o seu erro, de cada palavra, de cada gesto... Sentiu o coração mais quente e cheio de afeto. Nunca tivera emoções positivas tão intensas na sua vida, como desde essa altura. Chegara o momento de quebrar o gelo e depositar um pouco mais de confiança naquela pessoa a seu lado, que se mostrara tão empenhada em cumprir os seus planos.

A feiticeira tateou o corpo do rei até lhe alcançar o rosto. Passou-lhe o polegar pelos lábios e, pela primeira vez, beijou-o por iniciativa própria, enlaçando-lhe os braços em volta do pescoço e apanhando-o de surpresa. Se não fosse ele o tal com a capacidade de a ajudar na sua luta, quem mais seria?

De novo Primavera. O verde espreitava, timidamente, por entre a neve que derretia. Ursula sentia-se, finalmente, restabelecida. Restava recuperar o seu sacrifício.

O crepúsculo inundava o horizonte. Ela estava em frente ao espelho, esperando o Reflexo aparecer. Aiden aguardava, inquieto, não muito longe dela. Não tardou para que a mulher dentro do vidro espelhado aparecesse.

— Hum... Olha só quem decidiu fazer uma visita! O que queres queridinha?

A vitalidade, agora restaurada, da feiticeira permitia-lhe comunicar com a voz da mente.

— Quero os meus poderes e tudo o resto de volta!

— E quem disse que eu tos ia devolver, Ursula? - gracejou - Podes esquecer. Eu vou assumir o controlo e espalhar o caos novamente! Os reinos serão meus!

— És apenas o reflexo do aspeto que eu tinha antes do sacrifício. Como vais fazer o que quer que seja dentro de um espelho?

— Eu também não disse que ia ficar aqui para sempre, minha bonequinha.

Uma onda divergiu do grande espelho, projetando o rei e a feiticeira contra a parede atrás deles e destruindo parte dos objetos em redor. De dentro da superfície espelhada começou por surgir um pé, seguido de um corpo de manequim e de um rosto de boneca, com longos cabelos negros esvoaçando livremente. Quem não soubesse da existência do Reflexo, podia muito bem dizer que se tratava de Ursula, contudo, não era ela. Apenas um olhar muito atento saberia a diferença entre ambas.

— Enfim livre! Chegou a hora de me divertir! Vocês serão os primeiros a experimentar a minha escuridão...

Risadas estridentes ecoaram pelo castelo. Aiden segurou, fortemente, a mão da feiticeira, não podendo acreditar no que acabara de ver. O rosto de ambos denunciava surpresa e assombro.

O Reflexo saíra do espelho.

Aquele acontecimento não estava nos seus planos. Àquele ritmo, tudo seria destruído, tal como no passado, caso não fizessem algo para impedir tal façanha.

Ursula tinha uma ideia em mente. Era arriscado, mas podia ser a única salvação. Apertou a mão do rei, tal como ele apertava a dela e falou-lhe com a voz da mente:

— Por favor, empresta-me a tua energia!

— Sim, mas... como Ursula?

A feiticeira puxou-o para si e uniu os seus lábios aos dele. O Reflexo observou, de sobrancelha soerguida, aquilo não fazia sentido.

— Isto não é altura para beijos pombinhos!

Beijo? Não. Era muito mais que isso.

Uma esfera luminosa, de cor escura, envolveu ambos. Ursula transferia a sua essência para o corpo do rei. Essa transferência só é possível se os sentimentos mútuos do emissor e do recetor forem sinceros. Caso contrário... os dois morrem.

O corpo da feiticeira desfaleceu, ao passo que o de Aiden se ergueu do chão e a esfera se desvaneceu. Ursula assumira o corpo do rei. Agora podia ver, falar e usar algum do poder que lhe restava.

Ela tinha de ser rápida no confronto contra o Reflexo pois, se a sua essência ficasse demasiado tempo fora do corpo de origem, o mesmo morreria e a feiticeira permaneceria presa no de Aiden.

— Queres brincar? Então vamos brincar. - a voz que saia era a de Ursula.

— Sua... Maldita! Como conseguiste fazer a transferência!?

— Sentindo algo que tu nunca sentirás no teu coração gelado.

A feiticeira olhou em volta. Não podiam lutar ali. Encarou o Reflexo e correu na sua direção, empurrando-o de encontro à janela mais próxima e quebrando o vidro com os seus corpos. Caíram as duas a pique, torre abaixo, agarradas uma à outra. A verdadeira luta aproxima-se...

Da queda resultou um forte impacte no chão do pátio central do castelo, originando uma enorme cratera. O Reflexo atirou Ursula para longe, que chocou contra um pilar. Esta, por sua vez, usou o seu poder para arremessar o Reflexo contra a estátua do fundador do reino, ao meio do pátio.

Voavam feixes de luz negra de um lado para o outro, por entre ondas de poder e estrondos violentos, ouvidos em todo o reino, mas nada que estivesse a enfraquecer o Reflexo e, ao contrário da feiticeira, este não precisava da luz solar para manter a vitalidade.

A lua subia no céu noturno. Não restava muito tempo. O corpo de Ursula estava a morrer e podia ser o fim dos reinos.

O que fazer?

Ela sentiu o punho da espada do rei contra o seu braço, a qual ainda não tinha usado. Pelo que se recordava a lâmina era de prata.

Serviria de algo? A opção era tentar.

Desembainhou a arma e respirou fundo. Concentrou todo o poder que lhe restava e orou. A mesma oração que usaram para a selar na catedral há anos atrás. Encarou o Reflexo com os olhos cor de mar do rei, que espelhavam a ira das tempestades.

— Isto tem de acabar agora.

— Vem. Se os teus poderes não te valeram, não é uma misera espada que o vai fazer!

Ursula reuniu toda a sua energia e orou mentalmente como nunca fez na vida. Pensou em Aiden e em todos os momentos que viveu a seu lado desde o primeiro dia. Sentiu o calor aliar-se às trevas e potencializar o seu poder. Segurou firmemente a espada, saltou para cima do Reflexo, mirando-lhe onde supostamente estaria um coração e… trespassou aquele corpo de um lado ao outro com a lâmina.

Ouviu-se um grito de agonia, quase tão mau como o que se imagina ser um grito de mandrágora.

— O que tem... essa... espada... Sua maldita...

— Fé, amor e trevas.

O Reflexo apertava, desesperadamente, a lâmina com as suas mãos. Do golpe não jorrava sangue, mas sim uma espécie de fumo acinzentado e rachas começaram a surgir a partir daquele ferimento. Lembrava uma boneca de porcelana que fora derrubada no chão.

Antes que pudesse praguejar novamente... Quebrou... Juntamente com o grande espelho do quarto, em milhares de pedaços que se tornavam em pó negro e voavam com o vento.

Acabou...

Ursula correu o mais rápido que pôde para junto do seu corpo. Foi difícil voltar ao quarto, uma vez que ela nunca tinha visto o castelo antes de perder a visão. Inspecionou-o cuidadosamente. Felizmente ainda tinha vitalidade, apesar de pouca.

 Tomou o corpo nos seus braços, preparando-se para a transferência. Era estranho o pensamento de se beijar a si mesma, mas não havia outra alternativa. Repetiu o processo e recuperou a sua essência, deixando o corpo de Aiden desacordado do desgaste.

Aos poucos o poder sacrificado ao espelho voltou. O cabelo recuperou o seu tom original. A voz e a visão foram restaurados. O âmbar brilhava novamente.

Olhou para o rei, como não olhava há muito tempo. Mais do que aquele que se conseguia se recordar.

Sorriu.

Ele recuperou os sentidos e observou o ambiente em volta. A divisão estava praticamente destruída. Quando encarou a feiticeira, deu um pulo. Pensava tratar-se do Reflexo. Só se acalmou depois de observar com mais atenção.

— Acabou?

— Sim. O Reflexo foi-se e eu voltei ao normal. Já te consigo ver novamente!

Atirou-se ao pescoço de Aiden, abraçando-o fortemente. Não sabia se ia ficar no castelo muito mais tempo pois, em breve, os membros da igreja estariam lá, atraídos pelo som dos estrondos. Provavelmente iam selá-la mais uma vez.

Admirou o mar nos olhos do rei, acariciando-lhe a face, tal como ele lhe fazia. Faltava terminar o relato dos acontecimentos passados.

— No fundo, eu e o Reflexo eramos a mesma pessoa. Ela era o meu lado mais negro e obscuro, que nunca exteriorizei ou permiti que se manifesta-se. Depois daquele incidente com o rapaz, filho do homem da mente perversa, o Reflexo aproveitou-se da minha fraqueza de mente e de espírito e apoderou-se do meu corpo. Aí sim, foi exteriorizado. Foi ela quem destruiu tudo no passado... não eu... Só se acalmou quando o meu corpo implorou por luz do sol e os senhores da igreja fizeram as orações. Quando voltei a conseguir retomar o controlo... adormeci... Assim fiquei, até àquele dia, em que acordei neste quarto. Nunca imaginei que o sacrifício fosse um truque do Reflexo para ganhar um corpo próprio e, assim, voltar a espalhar o caos, de forma a poder dominar os reinos.

Aiden sorriu e beijou-lhe a testa.

— Mas já não há mais Reflexo. Vai ficar tudo bem. Eu sei que não és má, apesar de carregares contigo o poder das trevas.

— Não é isso que os senhores da igreja pensam.

— Deixa-os comigo. Só preciso que fiques do meu lado enquanto lhes explico tudo.

Não tardou para que o cardeal chegasse à sala do trono. Aiden já o esperava, sentado no majestoso cadeirão. Ursula estava em pé à sua direita, com uma mão apoiada nas costas de madeira do assento e outra no ombro do rei.

— Majestade! O que vem a ser isto!? Que ultraje! Sois vós, desde início, que tendes a feiticeira?

— Sim. Sou eu. Tal como fui eu quem a tirou da catedral.

— Como ousa!? Com todo o respeito, mas isto é muito grave! Tendes noção do perigo!? Vede a destruição lá fora! Ouviram-se os estrondos em todo reino. Temos de selar essa bruxa o mais rápido possível!

Aiden levantou-se. O rosto cerrado numa expressão sombria.

— Com todo o respeito, mas ninguém vai tocar num fio de cabelo desta mulher. Ela é inocente! Jamais vou permitir que a selem.

— Inocente? E o que vos contei há quatro anos atrás, majestade?

— É só parte da verdadeira história. Eu sei a história completa e vi o verdadeiro mal, com os meus próprios olhos, que um dia a terra há-de comer. Ela é uma heroína, cardeal. Salvou-nos do caos.

— Não estou a entender...

Aiden indicou a Ursula que ficasse à sua frente, pousou-lhe as mãos nos ombros e começou a contar todos os acontecimentos tal como eles eram. O cardeal e senhores da igreja que o acompanhavam, ouviram a história boquiabertos, mal podendo acreditar naquelas palavras.

— É por isso que não vou permitir que lhe façam o que quer que seja, cardeal. Se a minha ordem não for respeitada, haverá sangue...

Os homens engoliram em seco. O melhor era aceitar a vontade do rei e voltar para o lugar de onde tinham vindo. Assim o fizeram, com ar cético e cara de poucos amigos.

Voltou o Verão. O castelo estava como novo. Ninguém diria que alguma vez havia sido destruído por um duelo de magia negra.

Ursula estava no Jardim Sul, observando os arcos de roseiras em flor e o lago de peixinhos dourados. Aiden avistou-a do seu escritório e resolveu fazer uma pausa no trabalho, para se juntar a ela.

— Não está demasiado quente para andar a ver peixes?

Ela apenas olhou para trás e sorriu, não lhe respondendo à questão.

— Lembras-te que estava nos teus planos tornar-me rainha, caso eu o permitisse?

Ele fora apanhado de surpresa com esta questão.

— Lembro. O que incluía permitires-me ficar com o teu coração, depois de consertado.

— Penso que, mesmo sem me dar conta, já to dei há algum tempo. Estivesse ele partido ou inteiro.

Ambos observaram o lago em silêncio durante alguns instantes, até que Ursula se virou por completo, de modo a encarar o seu rei.

— Acabei de te confessar os meus sentimentos e tu não dizes nada Aiden? - questionou com ar divertido.

Foi nesse momento que Aiden caiu em si, ficando completamente atrapalhado e sem saber o que responder. A feiticeira simplesmente riu e, em seguida, beijou-o.

— Aceito ser tua rainha.

O casamento realizou-se pouco antes da chegada do Outono, para felicidade de uns e descontentamento dos senhores da igreja. Nada eles podiam fazer contra tal acontecimento, por muito que fosse essa a sua vontade.

O rei e a feiticeira estavam felizes, pouco se importando para os pensamentos do clero. Apenas queriam viver em paz e aproveitar os sentimentos que nutriam um pelo outro.

Quem sabe se o próximo Outono não trará um novo herdeiro para o trono?


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