Pieces: Em Pedaços escrita por Moonkiss


Capítulo 2
Imagem (parte II)


Notas iniciais do capítulo

Oi, amores! Bom, hoje veremos uma pequena apresentação da vida da Hinata e também o quanto é diferente o modo dela e do Gaara de lidar com a depressão. Espero que gostem, foi escrito com carinho.
Enfim, boa leitura! ♥



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Capítulo II – Imagem (parte II)

Escrito por @Moonkiss

Eu procuro em cada esquina, não há onde esconder como me sinto. [...] Bem dentro de mim a vida está engatinhando e desperdiçando meus dias. Outra noite se foi e eu sei que haverá outro caminho. Estou me guiando para ser livre neste adeus eterno.

— Within me, Lacuna Coil.

• • •

Hinata

 

Quem é esta garota perdida? Por que sou tão estranha? Quem é esta garota olhando fixamente para mim? Fico mais bonita quando coloco minha “maquiagem”? Eu não a conheço. Ela realmente se parece comigo? Quando esse modelo de perfeição se igualará ao meu verdadeiro eu? No momento sinto-me tão longe dela. O fato de usar a mesma máscara cotidianamente é irrelevante; com ela posso enganar o mundo, entretanto, não o meu coração. Carrego o posto de fingir que sou uma personagem fictícia exemplar a cada segundo. Por que sou tão diferente da pessoa que deveria ser? Vivo num universo onde tenho que ocultar meus sonhos e quem eu sou. De que maneira posso esconder-me? Será que o eu real já não se sentiria tão frustrado? Por que nós devemos mascarar o que pensamos, como nos sentimos? Deve haver um segredo que eu sou forçada a omitir? Algum dia a menina no espelho será refletida dentro de mim também? Com que finalidade eu nasci? Todos ao meu redor presumem que me conhecem, porém, jamais irão saber a verdade. E sempre é assim.

Desfiz o coque e retirei o enfeite de cabelo em formato de lírio, pondo-o em cima da pia por enquanto. Trêmula, abri a torneira para lavar o rosto ainda ardente devido ao choro, que não obtive sucesso em tentar cessá-lo. Senti uma colisão dolorosa entre a temperatura fria da água e da minha pele no instante em que a molhei. Uma boa parte da maquiagem já havia sido removida assim que entrou em contato com as lágrimas, então não me preocupei em utilizar o demaquilante, porque normalmente acho cansativo. Após enxaguar o suficiente e apanhar os produtos na necessaire, comecei a limpar cada resquício das camadas de base e de pó compacto com o uso da pequena esponja. Meu peito continuava a doer somente em lembrar-me da festa de alguns minutos atrás.

Eu sou uma filha inútil.

Eu não posso me tornar uma boa herdeira.

É quase impossível para mim.

Meu pai me concedeu uma educação baseada nos princípios culturais, embora não queira seguir o que a tradição japonesa conceitua. Em controvérsia reconheço que caso eu deposite minhas emoções num patamar maior vou desapontá-lo. Isto acarretaria em um imenso caos, seria uma desonra. O que cogitariam os outros membros da família ao verem a sucessora da liderança sobre a empresa, que nos pertence há gerações, trocar seu patrimônio por um curso de Artes Visuais? Por mais que minha irmã seja superior a mim na maioria dos assuntos administrativos e de competências pessoais, papai ainda insiste na ideia de ver-me ocupando sua posição futuramente, visto que sou a primogênita. E a pior parte é que ele me cobra com frequência, em geral agindo de forma opressora.

Subitamente comecei a soluçar e ter a sensação de queimação no interior das pálpebras inferiores outra vez. Minhas pernas e mãos estremeciam de um modo tão frenético que deixei a esponja cair em qualquer canto. Os dentes voltaram a ranger, mesmo que eu tentasse controlar. Meus olhos chamuscavam tanto que não conseguia abri-los. Não ocorrera nada de tão grave durante o evento em celebração aos cinquenta anos da corporação Taiyoukou*.

Mas aquelas caras...

Aquelas críticas...

Eu não sirvo para fazer papel algum nesse teatro.

EU NÃO QUERO SER MAIS UMA MARIONETE!

Derrotada, permiti que a força da gravidade se apoderasse; progressivamente cedi o equilíbrio das pernas até encontrar-me deitada em posição fetal no piso do banheiro. Não é a primeira vez que me sinto sozinha, no entanto, talvez nunca tenha me sentido tanto quanto agora. Queria que papai me entendesse. Queria que mamãe e o tio Hizashi ainda estivessem vivos. Queria que Hanabi e eu continuássemos com nossa amizade. Queria não ter motivos para chorar como eu choro quase todas as noites antes de dormir isto quando consigo, dado que comumente tenho os mesmos pesadelos.

Eu me sinto tão suja... tão patética...

SAI DE MIM! SAIA DA MINHA CABEÇA!

Gritei e esperneei tal qual eu sempre faço ao acordar depois de um daqueles sonhos infernais. É horrível não poder apagar da minha mente cada cena, cada mínimo detalhe. Detesto lembrar daquilo, sobretudo em circunstâncias aleatórias. Um fantasma escondido dentro do meu porão mental que não fui capaz de expulsar nem com o auxílio de psicólogos. Às vezes sinto uma repugnância e até ódio de mim mesma. Meu desejo é por fim exalar um bramido alto o bastante para que todos me escutassem, mas cheguei bem no fundo do poço há tempos e ninguém iria imaginar-me ali. Por ter pelo menos um pouco de senso, tampei a boca a fim de abafar os gritos, porquanto papai e Hanabi já devem estar descansando. E também não pretendo causar mais alardes, porque meu pai acha que devo demonstrar altivez. Sou obrigada a ser tão impecável quanto uma boneca de porcelana. O problema é que até o artefato mais genuíno pode se quebrar.

Comprimindo os lábios na tentativa de parar os gemidos, abracei meu corpo lentamente, apesar de desejar um abraço de outra pessoa. Não recebo carinho, com exceção dos vagos momentos afetuosos que Neji me proporciona, desde que Naruto e eu rompemos nosso relacionamento há cinco anos. Embora tenha sido uma época difícil, superei o término e o perdoei. Contudo, ainda dói um pouco saber que o ofereci um vasto oceano enquanto ele sequer quis molhar os pés. Ainda estremecida, de um modo involuntário e gradual cravei as unhas, bem feitas como as de uma dama devem ser, em meus braços. Talvez a agonia física seja menor do que a emocional.

Gostaria de não sentir mais tristeza ou raiva. Reconheço que é um pensamento sombrio e não é minha intenção fazer drama, no entanto, existem dias que não encontro vontade nenhuma de viver. Viver sem alguém que te conforte ou que não te aprecie do jeito que você é torna-se desgastante. Tal qual o espinho acuminado de uma rosa, minhas unhas perfuravam mais e mais a pele e tive a impressão de estar sangrando. É uma dor aguda e ao mesmo tempo libertadora, pois posso me concentrar nela e esquecer, ainda que por um curto período, minha realidade.

Repentinamente ouvi meu celular tocar e despertei daquele transe conforme o toque polifônico soava. É quase meia-noite, então não faço ideia de quem esteja me ligando. Não tenho mais amigos. Só pode ser o Neji. Sinto-me fraca em virtude do pranto, logo não consigo levantar. Entre um soluço e outro enxuguei as bochechas e em seguida me arrastei até o cesto de roupa suja, onde o telefone estava em cima. No instante em que ergui o braço com o intuito de apanhar o aparelho, a ferida ardeu e constatei que havia vertido um pouco de sangue. Engoli seco ao ver o nome de meu primo no identificador de chamadas. Tentando fingir naturalidade o máximo possível, o atendi:

— Alô?

— Oi, Hinata. — a voz circunspecta como de hábito. Escutei algumas gargalhadas ao fundo — Me desculpa ligar a essa hora, mas só tive tempo agora. Você já estava dormindo?

— N-Não, primo. Não tem problema. Você está bem?

— Tô sim, e você? Como está a Hana e o tio Hiashi?

Não queria que meu primo soubesse das minhas crises, que atualmente estão mais frequentes e mais críticas. Embora papai tivesse proibido Hanabi e a mim de manter contato com Neji desde que o expulsou de casa, combinamos de não deixarmos nossa amizade se esvaecer. É a única pessoa que se preocupa de verdade comigo, então seria problemático contar a ele sobre cada momento de melancolia que tenho e sem contar que não pretendo causar preocupações.

— Estamos bem.

— Que bom. Como foi a festa da empresa?

— Como todas as festas corporativas... chiques e chatas. — murmurei, me recostando nos azulejos brancos e gélidos da parede. Pude ouvir o ruído de seu sorriso sarcástico.

— Ha, ha, não é à toa que resolvi sair dessa vida.

— Queria ter a sua coragem.

— Acho que está mais para covardia do que coragem. — disse após suspirar. Desta vez usava um timbre desalentado — Seu tio possivelmente ficaria decepcionado se soubesse que o próprio filho, o ex-orgulho e gênio da família, pediu demissão da Taiyoukou para seguir carreira musical.

— Não é covardia. Você só está seguindo seu sonho.

— É verdade. Mas infelizmente só você enxerga isso. Não sei se meu pai concordaria contigo.

Hizashi, o irmão gêmeo de meu pai, faleceu durante o incêndio que ocorreu na nossa antiga casa, que tinha a arquitetura pertencente ao estilo tradicional Minka*. Titio e Neji também moravam lá. Na época fazia alguns meses que minha mãe havia morrido através de uma hemorragia pós-parto, portanto foi um período muito duro na família Hyuuga. Era a primeira cerimônia do chá daquele ano, todos os nossos parentes viajaram para lá com o intuito de celebrarmos o segundo dia de janeiro, mesmo que o clima de luto ainda pairasse no ar.

E de repente Natsu, a ex-babá de Hanabi, correu no meio da madrugada para o quarto de papai com minha irmã em seu colo enquanto todos dormiam. Anunciou aos gritos que uma parte do primeiro andar estava pegando fogo depois de sentir o cheiro de queimado e certificar-se de sua hipótese, mas desconhecia as razões para tal porque estava trocando a fralda do bebê. A casa era extensa, todavia estruturada por madeira, algo que incentivou as chamas a espalharem-se rapidamente. Os homens adultos se encarregaram de levar para fora todas as mulheres, crianças e idosos. Mas eu sabia que deveria resgatar o quadro abstrato feito por mamãe, o preferido dela, e estava pendurado na parede do corredor que ligava à cozinha. Em meio à aglomeração saí escondida para lá. Quando todos fugiram para a rua e notaram minha ausência eu já me encontrava cercada pelos escombros do telhado que caíram. Presa e quase desmaiando por inalar os gases, vi uma silhueta máscula se aproximar entre as labaredas; tio Hizashi conseguiu me achar após minutos. Pegou-me em seus braços e correu rumo à saída, porém, o teto desabou sobre nós. Numa fração de segundos me jogou para longe, tendo em mente que eu poderia morrer junto com ele. Apesar da fraqueza, consegui escapar aos prantos. Lembro de haver uma multidão de vizinhos também em frente à residência e assim que papai me agarrou o corpo de bombeiros chegou.

Embora capazes de terem cessado o fogo, não puderam salvar meu tio. Neji chorou bastante naquela noite. A partir de então papai passou a criá-lo como um filho e ele a me odiar, pondo a culpa em mim ao longo dos anos, e sentia-me horrível porque reconhecia que na realidade eu fui o motivo da morte de seu pai. E no final das contas a tela pintada por minha mãe fora consumida pelas chamas junto com a casa e todas as lembranças boas que possuíamos de lá. Apenas depois de alguns incidentes durante a nossa adolescência que descobrimos a causa do incêndio e que meu primo concedeu-me o perdão, contudo, ainda guardo a sensação de ser o réu do caso. Não gosto quando citamos o tio Hizashi desta maneira. Uma gota d’água ácida desceu pelo meu rosto.

— E como vai a banda? — balbuciei, secando a lágrima com a barra longa do cheongsam* vermelho — Você conseguiu o ingresso do show pra mim?

— Já disse que você tem entrada VIP, não precisa de ingresso! Só temos que encontrar uma maneira de você ir sem o tio Hiashi saber.

— Por que ele tem que ser tão incompreensível?

— Sei que é um saco, mas ele e meu pai tiveram uma educação bem rígida. Não que isto seja um motivo concreto, porém, acho que influencia bastante.

— Sim, mas não é justo.

— Não é mesmo. — ele bufou e ouvi também a algazarra do pessoal desaparecendo pouco a pouco e o som de seus passos — Enfim, você pode contar a ele que dormirá na casa de uma amiga para algum trabalho da faculdade.

— Não é má ideia. Mas aonde vou dormir depois do show?

— Bem, você pode dormir aqui. A casa só tem homens, mas garanto que não irão invadir seu espaço. Ou posso conversar com a Sakura e você dorme na casa dela.

— Sakura? — indaguei de cenho franzido. Se for a Sakura que estou pensando, definitivamente não quero aproximação com ela.

— Sim, a Sakura Haruno. Isso se não for te incomodar.

Francamente eu me incomodo um pouco sim. Sakura não é uma pessoa ruim, muito pelo contrário, sei bem como ela é. Tão bem porque já fomos melhores amigas ao ponto de qualquer desconhecido achar que éramos irmãs, apesar das diferenças físicas. Conheço perfeitamente cada canto de sua casa, cada parente seu — posto que eu era convidada para todas as comemorações em família —, cada defeito e qualidade sua. No entanto, tudo aquilo modificou no início do Ensino Médio com o retorno da amizade dela com Ino Yamanaka. Ambas permaneceram brigadas por anos devido aos atritos que tiveram envolvendo seus sentimentos por Sasuke Uchiha, então decidiram dar um fim às mágoas. E em controvérsia as consequências se voltaram contra mim. Jamais odiei ou senti algo equivalente à antipatia pelas duas, mas era como se Sakura houvesse esquecido a promessa que fizemos uma a outra, de nunca nos separarmos. Não me maltratava, entretanto, às vezes eu ponderava a ideia de ter desenvolvido uma anomalia em meu DNA que gerava a invisibilidade. Dói e sinto saudades dela até hoje. Evito trocar olhares com ela quando passamos pelo mesmo corredor da faculdade, a minha sorte é que Sakura cursa Enfermagem e eu Administração.

— Ah, claro. Digo, não me sentiria à vontade na casa da Sakura... e admito que aí também não por causa do Naruto. Mas ele eu consigo encarar.

— OK então. — fez uma pequena pausa, quase que melancólica — Hinata?

— Sim?

— Sei que você não tá bem. Eu te conheço, posso sentir isso. O que aconteceu?

Foi excruciante preservar uma figura ilustre diante de toda Taiyoukou ao longo da festa, ainda que recebesse comentários hostis de meu pai e de grande parte dos funcionários, porém, não quero que Neji intervenha neste assunto. Ele frequentemente tenta convencer-me de focar nos meus sonhos e isto não é errado, mas papai faria questão de apontá-lo novamente como uma má influência, principalmente porque meu primo já teve essa atitude.

Confesso que a admiração que possuo por Neji somente cresceu no dia em que juntou coragem e enfrentou seu tio, afirmando que trocaria o curso de Ciências Contábeis por um de Música. Amava compor e cantar melodias e descobriu tal apego durante nossa infância, já que é uma tradição de família aprender a tocar pelo menos um instrumento. Com apenas suas roupas, seus materiais didáticos e seu celular, meu pai, surpreendido e irritado por ter investido em Neji, o despojou de casa. Nem mesmo o autorizou a levar consigo seu tão valioso violoncelo. A partir de então requisitou a demissão da empresa, arranjou um trabalho novo para sustentar-se e formou a Fire Will. Hanabi também sente falta dele, embora ache imprudente sua escolha. Enfim, resolvi utilizar a desculpa que ele já conhecia:

— Nada demais. É só o mesmo de sempre.

— Foi um erro de meu tio te tirar das sessões com a psicóloga... acho que você deveria voltar. — sugeriu Neji antes de estalar a língua. Aflita, respirei profundamente e olhei para o teto.

— Não posso. Ele entraria em desespero se soubesse que a própria filhinha continua sendo uma “desequilibrada”.

— Ele não precisa saber, Hinata. Você deve cuidar de si mesma, me preocupo contigo.

— Obrigada, você tem razão. Mas queria fazer o tratamento com um profissional de confiança, entende? — mordi o lábio inferior, conturbada — Não é com qualquer pessoa que consigo me abrir... é difícil encontrar uma psicóloga como a Kurenai.

— E por que não volta a vê-la?

— Desde que a Mirai nasceu ela tem se focado muito no papel de mãe e não sei quando irá voltar a trabalhar. Às vezes encontro com ela na rua, por isso fiquei sabendo.

— Entendo. — uma tênue e súbita animação transpareceu na voz dele — Ah, acho que conheço alguém que pode te ajudar!

— Quem?

— O irmão de Sasuke é psicólogo, o Itachi, dizem que ele é ótimo. Posso tentar marcar uma consulta para você. O que me diz?

— Agradeceria muito.

— Então farei isso. E por favor, converse comigo quando estiver se sentindo assim.

— Não se preocupe, eu vou te procurar. — desencostei o celular da orelha para verificar as horas na tela. Ao concluir que já é tarde, me pus de pé — Obrigada por tudo, primo, mas agora preciso ir.

— Está bem, e desculpa mais uma vez por ter ligado tão tarde. Se cuida.

— Você também. Boa noite, Neji, eu espero que tudo dê certo com a Fire Will.

 — Obrigado pelo apoio! Boa noite e durma bem, Hinata. Manda um beijo para a Hanabi.

— Pode deixar.

Finalizei a ligação, suspirando. Neji possui o dom de distrair-me conforme o tempo que passo com ele, mas infelizmente quando tudo termina o caos ressurge. De qualquer modo meu primo me socorreu de mais um surto e sou grata por isso.

Sabendo que já é quase uma hora da manhã, voltei a retirar a maquiagem borrada, e em seguida recolhi todos os produtos cosméticos para pôr dentro da necessaire e guardá-la na penteadeira do meu quarto. Com o maior sigilo a fim de não acordar minha família, apanhei a toalha e um pijama confortável para tomar um banho rápido e me deitar. Assim que encostei a coluna no colchão os acontecimentos do dia retrocederam mentalmente.

Já havia me chateado antes mesmo de irmos à festa da firma; não consigo mais reter paciência o bastante para assistir às aulas. Estou no sexto período da faculdade e as disciplinas estão mais complexas. Sempre mantive notas altas desde que era uma colegial — conquanto não fossem suficientes para satisfazer meu pai —, entretanto, de alguns tempos para cá está sendo complicado agir como a típica boa estudante. A primeira justificativa para isso é o fato de ter sido obrigada a cursar Administração. Embora tentasse causar em mim mesma um interesse pelo tema, minha paixão continua alicerçada na arte. Ver a mamãe desenhar paisagens, pessoas, animais, flores e quaisquer outros tipos de coisa enquanto estava viva me encantava ao ponto de querer seguir seus passos. Minha instabilidade emocional é a segunda explicação.

Sei que preciso tornar a receber acompanhamento psicológico, porém, cheguei a um nível onde não sou mais eficiente em desabafar sobre tudo. Compreendo os motivos de Kurenai dar uma pausa em sua carreira, visto que seu marido Asuma faleceu há dois anos e ela precisa cuidar da filha pequena, mas acho que a senhorita Yuuhi é a única profissional que poderia me ajudar. Espero que Neji consiga marcar uma consulta com o irmão do meu ex-colega de classe e que isto traga resultados positivos.

Sonolenta, estiquei o braço para apanhar o celular em cima da cômoda ao lado da cama e os fones de ouvido na primeira gaveta. Os conectei com o Smartphone para ouvir algo antes de dormir. Às vezes gosto de fazer isso, me ajuda a acalmar e em consequência não tenho pesadelos. Especialmente se for uma canção da Fire Will — o que é uma contradição, pois eu devo cultuar apenas música erudita. Não somente por meu primo ser membro da banda, mas o talento do vocalista de certa forma me traz serenidade.

Apesar de ser grave e um tanto funesta, sua voz tem o dom de equilibrar inexplicavelmente minhas emoções e toda vez que a ouço sinto como se não fosse a única pessoa no mundo a guardar descontentamento no coração. A cada verso, a cada palavra que canta eu posso sentir a dor dele, tão lastimoso e tão belo ao mesmo tempo. Minhas melodias preferidas do grupo por coincidência são compostas por ele, e as letras também conseguem me conceder conforto. Agradeço a Neji por disponibilizar as faixas para mim, dado que apenas os vídeos estão na Internet. Infelizmente não me lembro do nome do rapaz. Sei que seus olhos são grotescos e penetrantes, porque já fui apresentada a ele, mas também enigmáticos e bonitos. Nunca vi olhos como os dele. Tudo nele possui um contraste balanceado.

Já selecionada uma música deles na playlist, deixei o celular ao lado do travesseiro e me aconcheguei enquanto fechava as pálpebras ao escutar a introdução lenta de guitarra. Então o menino começou a entoar, calmo e sorumbático. A maioria das canções da Fire Will são escritas em inglês, contudo, sou fluente em duas línguas estrangeiras, a inglesa e a alemã, graças aos cursos de idioma que papai me inscreveu ao longo dos anos, logo consigo criar uma tradução mental.

 

Esta não é uma música sobre um amor platônico (This isn’t a song about a platonic love)

Mas eu tenho aqui um coração partido (But I have a broken heart here)

Estou cansado de me esconder atrás da minha mentira (I’m tired of hiding behind my lie)

Sinceramente, eu não aguento mais (Sincerely, I can’t stand it anymore)

Viver minha vida (Live my life)*

 

Abri um sorriso irônico ao refletir que meu caso é bem semelhante. De vez em quando formulo o mesmo questionamento na minha cabeça: será que um dia conhecerei o mundo além da minha redoma de vidro? Por mais que tentasse findar, uma lágrima teimou em fluir.

Não se preocupe. Você não está sozinho.

 

[...]

Senti as palmas de minhas mãos suarem frio. O solo de violino tocado por Hanabi, mesmo que fosse uma serena composição de Chopin, somente intensificava o clima de tensão no ar. Sentada sobre os calcanhares, fechei meus punhos, totalmente estremecidos, em cima dos joelhos conforme papai terminava de beber seu chá verde. Sua presença é opressora. É presumível que ele ainda esteja furioso comigo em virtude dos acontecimentos da festa da Taiyoukou, porque não respondeu meu cumprimento assim que descemos para fazermos a refeição matinal. É como se o rosto dele não tivesse a habilidade de articular expressão alguma além da rigidez; os olhos são duros, o maxilar sempre firme e cada movimento seu permanece rijo. Meu pai parecia não ter mais um coração pulsando dentro de si. Há anos que não vejo um sorriso sendo traçado nele.

E minha irmã mais nova aparentemente está se tornando uma cópia sua. Hanabi não é grosseira comigo. Todavia sinto falta de conversarmos sobre nossos pensamentos, sentimentos, pontos de vista em relação às coisas da vida e entre outros assuntos. Às vezes trocamos ideias, mas não passam de superficialidades. Ela mudou drasticamente de alguns anos para cá, não é mais a menina que puxava meu braço a fim de pedir atenção e dizia que queria ser como eu quando crescesse. Isso me entristece. Talvez a ausência da mamãe seja a causadora de todas essas nuvens negras que nos cercam.

— Endireite-se, Hinata. — resmungou meu pai de repente, me pregando um susto.

— Perdão, papai. — apanhei o bule de chá e mantive a coluna ereta — Aceita mais um pouco de chá?

— Estou satisfeito. A propósito, temos um assunto a ser tratado. — vociferou, pondo a xícara em cima do pires. Repousei o bule no centro da mesa, engolindo seco.

— Sim?

— Sobre o desastre que você causou ontem à noite, não quero que esse episódio se repita. Fui claro?

— Sim, senhor...

— Lembre-se de que é a nossa reputação que está em jogo. Como posso contar com você para assumir a empresa se sequer conhece os princípios da boa educação, visto que já lhe ensinei?

Eu não tinha coragem de olhá-lo nos olhos. De punhos cerrados, senti as unhas sendo enterradas na pele de acordo com a minha palpitação afoita. Não quis esbarrar no garçom, que por resultado derramou a bandeja que carregava o molho Teriyaki em cima da presidente de uma das nossas fornecedoras. Tentei me desculpar pela minha falta de atenção, mas a senhorita Terumi era tão arrogante que se importou somente com o estado de seu vestido de grife. Ela me tratou como se eu fosse a criatura mais abominável que já existira na face da Terra, e não tardou muito para que todos agissem da mesma maneira. Sei que sou desajeitada, entretanto, por que isso deveria ser tão preocupante? Por que eu deveria receber punição por algo tão simplório?

— Perdão. Eu farei o que for preciso para melhorar.

— Hinata, estou farto de escutar a mesma ladainha! Estou farto de receber apenas promessas! — ele quase gritava — O único motivo para eu não pôr Hanabi em seu cargo é o escândalo que seria se soubessem que uma filha minha não foi capaz de tomar posse da liderança da empresa! Ou você muda ou terei que ceder a medidas mais drásticas!

Tive que respirar profundamente a fim de segurar uma crise de choro. Cada frase dele era uma espada transpassando um por um dos meus órgãos vitais. Eu francamente não me importaria de ser desonerada do cargo, no entanto, as consequências disso seriam ruins. E também não ficaria tão chateada com o tom e com as palavras brutas se fossem usados por outra pessoa. Por que, papai?

— N-Não será necessário. Vou contornar essa situação, e eu cumprirei com minha palavra.

— Assim espero. — respondeu sem ceder à amargura. Meu pai olhou Hanabi de esguelha — Está encerrado, Hanabi.

— Sim, senhor.

No mesmo segundo minha irmã parou de tocar a música. Seu semblante permanecia indiferente, como se ela fosse inteiramente revestida de aço; nada a abalava, nada destruía aquela estrutura maciça. Queria ser igual, contudo, eu sou feita de vidro. Frágil e quebradiça.

Papai pôs-se de pé e se retirou do local, subindo as escadas logo depois. Embora houvesse ido para o segundo andar, a áurea sufocante que ele propagava infectou a sala por completo. Prometi que iria mudar, mas não sabia de que jeito, porque não possuo integridade nenhuma para tal. Abatida, comecei a recolher a louça enquanto Hanabi guardava o violino na capa. Ela sim seria perfeita para liderar a empresa. Ela sim tinha competência, sensatez. Às vezes Hanabi me lembrava Neji, uma versão feminina sua tanto na personalidade quanto na aparência. Parecia ser a irmã dele, não minha.

— Você gostaria de tomar a liderança da Taiyoukou, irmã? — perguntei, com as peças de cerâmica em mãos e prestes a ir à cozinha. Hanabi fechou o zíper da capa.

— Eu farei aquilo que me propuserem.

Sem desviar a visão para mim, ela pegou o instrumento já encapado pelas alças e se dirigiu à escadaria. Fiquei a observando até que sumisse. Em seus dezesseis anos Hanabi está mais linda do que nunca. Gostaria de saber se com toda essa beleza já despertou o interesse de algum rapaz de sua classe. Ou se ela já despertou interesse por um deles. Apesar de não ser a pessoa mais qualificada para dar-lhe conselhos amorosos, eu gostaria de saber como anda o coração dela. Mas lembro então que não somos mais amigas.

Após ter retirado a mesa, lavado a louça, feito a higiene bucal e me certificado de que papai saíra para trabalhar e Hanabi para o curso de Francês, fui até meu quarto. Dei graças aos céus que hoje é meu dia de folga, pois, além de não estar disposta mentalmente, não teria a ousadia de encarar os colegas de trabalho. Ontem pela primeira vez pensei em jogar tudo para o alto quanto a minha relação com a Taiyoukou. E nos momentos de estresse eu faço o que mais alivia o meu humor: pintar.

Arrastei o cavalete do canto até o centro do quarto e apanhei o estojo de pintura aquarela em cima da escrivaninha. Na gaveta dela guardo os papéis dentro de uma pasta, logo tirei um. Minha vontade é de construir mais um cômodo na casa no intuito de usá-lo como ateliê, porém, duvido que este pedido fosse atendido. Qualquer coisa que trouxesse mamãe à memória estava fora de cogitação de entrar aqui, com exceção do piano. Por fim peguei o pote de vidro na prateleira e o enchi de água na pia do banheiro.

Quando terminei de organizar todos os materiais, tracei um horizonte com o uso do lápis e da régua. Decidi ficar em pé, desse jeito poderia gastar a energia que pretendia. Amava ver como as cores fundiam-se, as formas que eram criadas através do manuseio do pincel e o mundo que era retratado em um simples papel. Para mim é magnífico. Ainda que apenas Neji me apoiasse, a única parte desagradável de pintar é não ter minha mãe por perto para comentar sobre ou ajudar durante o processo. Entretanto, sinto que de algum modo ela me daria apoio total.

Finalizei a paisagem por volta das onze horas. Pude constatar o quão descarreguei minha desilusão, meu desejo enquanto removia o excesso de tinta do último pincel no pano; havia sido guiada pela minha imaginação ao pintar aquele jardim de girassóis com que sempre almejei ter. Não sei o porquê dessa preferência, mas são as minhas flores favoritas, e sonho em algum dia plantar dezenas deles na minha futura moradia. Acho que estando cercada por tantos girassóis eu teria a sensação de liberdade. Fiquei observando a pintura, visualizando a mim mesma passeando e dançando por entre as plantas, até que escutei a notificação de alguma mensagem no celular em cima da cômoda.

Desbloqueei a tela e vi que se tratava de meu primo. O esperei enviar parte por parte para ler de uma vez. Assim que notei que ele tinha digitado tudo que queria, cliquei na conversa.

 

Neji (online)

 

Bom dia, prima. Você está melhor? 11:01

Ainda há pouco pude conversar com Itachi. 11:01

Ele faz atendimento de baixo custo numa clínica próxima à faculdade. 11:02

Vou te mandar o print com o endereço e outras informações. 11:02

 

Bom dia, primo. Sim, e você, como está? 11:02 ✓✓

Tudo bem então, obrigada! 11:02 ✓✓

Estou na espera. 11:03 ✓✓

 

Em questão de segundos Neji fez conforme tinha prometido. A clínica de Itachi Uchiha se localizava a duas quadras do Centro Universitário de Konoha. Eu poderia comparecer às consultas antes das aulas sem problemas, e o melhor é que meu pai não desconfiaria. Sairia da empresa ao fim do meu expediente e iria ao psicólogo. Perfeito! O respondi com um agradecimento, grata a ele por ter a oportunidade de conhecer o trabalho de Itachi logo na segunda-feira.

Guardei todo o material de pintura, pendurei a obra no mural junto com o restante dos desenhos e limpei corretamente cada pincel. Ao longo da lavagem rememorei a conversa que tive com papai mais cedo. Já estou acostumada a conviver com este regime autoritário, no entanto, de uns tempos para cá tem sido insuportável acumular tantas palavras na garganta. Só queria que ele soubesse o quanto me machuca. Nunca pedi para ser a futura presidente da firma ou ter nascido numa família tão rigorosa. Talvez eu esteja sendo boba por não ter a mesma atitude que Neji.

Desci ao pôr os pincéis em seu devido lugar. Precisava fazer o almoço e arrumar a casa. Aquele pensamento tinha provocado em mim novamente uma apreensão inexplicável, meu eu interno vivia o dilema de seguir a razão ou a emoção. Quando atravessava a sala, algo no piano chamou-me a atenção. Gosto de tocá-lo nos momentos em que eu estou sozinha. Tal como a arte, a música é uma das únicas coisas que me trazem paz, não é à toa que sempre escutava alguma antes de dormir. E eu necessito de qualquer modo desabafar. Tensa, tomei rumo ao instrumento branco.

Sentei no banco e deslizei os dedos sobre as teclas numa linha horizontal. Embora não fosse o piano com que papai presenteou a mamãe, provavelmente é o objeto onde mais sinto a presença dela quando usado. Tenho uma recordação bem vaga de minha mãe tocando Clair de Lune em uma comemoração ao aniversário de casamento dela e do meu pai. Era belíssimo vê-la tocar com tanto ardor, tanta tenacidade. Às vezes Neji dizia que eu tocava como ela. Sem que pudesse ser notada inicialmente, uma lágrima despencou. Ciente de que choraria e é algo que pretendo evitar ao máximo, apertei a primeira tecla e a canção começou a brotar.

Sei que a melancolia está longe de ser aceita nas características de uma dama, mas Within Me parecia composta especialmente para mim. O desespero de encontrar algum porto seguro, a vontade de fugir da própria vida, tudo aquilo me descrevia muito bem. Conforme entoava sentia meus ossos esfarelando-se em pura inquietude.

A crise que tive ontem e os arranhões que provoquei em mim mesma devem parar. Admito que tenho medo de haver a probabilidade de um desenvolvimento da minha depressão. Não quero que isso se estenda a situações piores. Por mais que eu esteja desgastada, devo me cuidar, porque estou aos poucos desmoronando. Como um efeito dominó.


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Notas finais do capítulo

OBS.: *Taiyoukou = Luz do Sol (faz-se aqui uma referência ao nome Hyuuga, que significa “lugar ao Sol”);
*Estilo Minka = Casa tradicional japonesa que remonta ao período Edo e variam muito sua aparência de região para região;
*Cheongsam = vestido chinês feminino, também conhecido como “Qipao” em mandarim. Foi popularizado pelas aristocratas chinesas nas décadas de 1920 e 1930;
*Trecho da música da banda = os versos foram escritos por mim. Quaisquer semelhanças com outra obra são meras coincidências.

Isso é tudo, pessoal. No próximo capítulo a história começará de verdade, estes dois primeiros foram apenas uma introdução de ambos protagonistas. Lembrem-se de que Gaara e Hinata possuem seus próprios segredos, então fiquem ligados, porque serão revelados ao longo da fanfic.
Desde já peço obrigada a atenção de cada um! Beijos, até!! ♥



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