Sem Fim escrita por Evangeline White


Capítulo 1
Melodia


Notas iniciais do capítulo

Conto em versão de testes.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/773099/chapter/1

A última vela se apagou com o fechar da porta de Anastácia. Nenhuma de suas amigas se moviam nas camas velhas de madeira, e o som de passos cessou em pouco mais de cinco minutos. Eram nove horas da noite, e o relógio batia no meio do corredor. Anastásia sempre demorava a dormir. Gostava de ouvir tudo; a noite trazia uma melodia linda.

Emily se moveu na cama ao lado, fazendo o cobertor raspar em sua pele lisa e escura. Gina roncou; ela sempre roncava quando pegava gripe. Na janela, os galhos mais finos do grande salgueiro bateram no vidro sujo, e a pequena coruja que fazia ninho ali cantou. A Irmã Anna arrastou seus pés cansados pelo corredor, murmurando preces de boa noite para as meninas sem lar.

Tudo compunha uma perfeita sinfonia para Anastácia.

Mesmo ao fechar os olhos, a música continuava a tocar, composta agora por sua orquestra particular. Seu coração fazia a percussão, e os pulmões acompanhavam com o sopro. Vez ou outra, as cordas da garganta participavam num ronronar arrastado e grave, enquanto seus dedos eram os responsáveis pelo som agudo do raspar de lençóis. Ela era a banda de uma menina só.

Anastácia gostava de ouvir os sons. Desde pequena, quando deixada na porta das freiras, ouvia os batimentos rápidos da mãe, os passos se distanciando, o soluço de um musical triste de lágrimas. Ela ouvia os arfares de pesar das mulheres de Deus, o arrastar de uma nova cama para o quarto cheio de outras meninas abandonadas, o murmúrio misericordioso em nome daquela nova alma.

Anastácia se apegava aos sons, pois eram as únicas lembranças vívidas que sua mente conseguia proteger durante aqueles dias de luz e trevas no orfanato.

Pouco a pouco, os músicos internos se tornavam mais distantes, e seus olhos baixavam como cortinas escuras ao finalizar a apresentação. Anastácia perderia para o sono uma outra vez, e no dia seguinte as músicas recomeçariam naquele ritmo costumeiro para sua plateia - os ouvidos.

Até ouvir os passos.

Anastácia abriu os olhos, e o show recomeçou. O bater do coração acordou os outros instrumentos, e logo a melodia desesperadora ensurdeceu seus instintos. Aqueles passos iam e vinham por fora do corredor, como se esperasse companhia. Noite após noite. Passo após passo. Eram curtos e lentos, mas mesmo com a falta de luz, Anastácia sabia que não eram passos de freiras. Ela conhecia os sons; ela os decifrava todos os dias.

Aqueles não eram passos do zelador, não eram passos das meninas e muito menos de sua distante e triste mãe. O coração falhou, e a respiração tomou o solo da melodia. Anastácia não sabia qual o instrumento, qual a composição.

Quem produzia aquela música tenebrosa?

A madeira do corredor não rangia, mas Anastácia sabia que havia algo. Sempre havia, noite após noite. Os passos, pacientes e concisos, guardavam a porta, e Anastácia, desperta pelos tambores ensurdecedores do coração, esperava alguém abrir, alguém atender. Qualquer uma das amigas. Mas ninguém atendia, ninguém levantava. Ninguém ouvia.

Os passos iam e vinham. A madeira era recebida com tapas fracos, pacientes. Anastácia não sabia quanto tempo passava quando os passos apareciam. Nada mais cantava quando os passos começavam. Nada além de sua respiração. Sua cabeça doía com aquele único som crescente e descompassado produzido pela melodia do medo.

Ela não gostava daquela música.

Os passos curtos não desistiam. Anastácia acreditava que faria buraco no chão, que os passos já haviam andado mais de mil vezes. Ela não sabia contar. Conhecia o sons das letras e dos números, mas não os entendia.

A música ganhou força quando o chão foi atingido com uma nota forte, e Anastácia quase pulou. Era a primeira vez naquela semana que ouvia uma mudança. A batida veio violenta, impaciente, acelerando a ópera tenebrosa. Os passos já não eram mais apenas misteriosos; havia raiva, impaciência. Ninguém acordava, ninguém os atendia. Talvez só precisassem entrar, talvez a música ruim fosse por dor. Talvez Anastácia estivesse em seus sonhos, e a música fosse um pedido para acordar.

Os passos não cessaram, mas Anastácia sabia que o fim estava próximo. Se deixasse que o show acabasse, só poderia recuperá-los na próxima noite. Se deixasse que a cortina baixasse, não saberia que instrumento tocava a melodia bizarra.

Então ela se levantou, e o terceiro ato começou.

Passos contra passos, pressão contra pavor. Anastácia criava sua própria música lenta e nervosa, e os passos a aceleravam. Por um momento, ela ficou atrás da porta, batendo os pés. Era um som lindo. Tremia seu corpo, criando novas melodias, novas sinfonias.

A orquestra ganhava vida, e Anastácia resolveu que queria mais. Ela precisava conhecer seu maestro. Ela precisava daqueles sons.

Tocou a maçaneta, e os dedos tremeram. Os passos cessaram, mas ela sabia - ela sentia - que aquilo ainda estava lá. Finalmente alguém os atendia. Finalmente alguém podia ouvi-los.

A porta se abriu, e ela finalmente entendeu.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Sem Fim" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.