O Voador escrita por Gabriel Gorski
— Hora de comer, pessoal! – Gritou um tripulante do cesto da gávea.
Todos comemoraram com vivas e assovios até o capitão sair de sua cabine. A fome era mesmo enorme. Todos começaram a descer do navante, saltando as amuradas ou pela escada. Ecco amarrou o pergaminho com a fita e o guardou na bolsa de couro. Yearnan logo se aproximou dele, com um semblante tristonho.
— Como foi seu dia emocionante? – Zombou Ecco.
— Táticas de guerra, mapas e mais mapas. Queria tanto ter saído.
— Aprendeu a ligar o navante? – Questionou, interessado.
— Sim. Não cheguei a voar, mas aprendi coisa melhor. Sabia que dá pra atirar arpões ao puxar uma alavanca do painel?
— Valha. – Exclamou. – Ainda assim, isso não é melhor que voar.
Yearnan riu e disse.
— Para alguém que não queria ser um voador, voar é melhor que atirar arpões?
Encurralado, Ecco riu.
— Não é por isso que não quero ser um voador!
— Por que, então?
— Ei. – Disse Nthaír, já na escada de cordas. – Vocês não vem?
Ambos desceram as escadas às pressas, seguindo o grupo até a cidade. Nthaír perguntou.
— E então, Ecco. O que decidiu?
— Go’ov. – Respondeu.
— O que tem Go’ov? – Perguntou Yearnan.
— Você não contou para ele? – Indagou Nthaír. – Achei que sim.
— Contado o que?
— Fugir. – Ecco respondeu, direto.
— Ah, já sabia. – Falou Yearnan. – Antes de sermos escolhidos para ir à Casa do Voador, Ecco já queria fugir.
— É a sede da Ordem de Alvedrena? – Perguntou Nthaír a Ecco.
— Para falar a verdade, não. – Explicou. Na fita que envolve o pergaminho está escrito algo como “Em Go’ov, no anfiteatro, icanes...”, então vem um trecho incompreensível e “outro... do Desconhecido de Mrasth”. Não consegui entender tudo, mas eu imagino que haja um pergaminho lá.
— Faz muito sentido. – Ironizou Nthaír.
— Que incrível! – Disse Yearnan. – Por que não vamos agora?
Os dois encararam o amigo imerso em euforia e responderam em uníssono.
— Comida, cara.
* * *
Ora, não demoraram nem dois minutos para chegar à uma torre muito grossa, com tochas na entrada e uma porta escancarada, demonstrando que qualquer um era bem-vindo. Era uma estalagem muito movimentada. Haviam ali seres de muitas raças, de vários tamanhos e aparências. Ao passar pela porta, Ecco viu uma placa que dizia “Proibido Saivos e Orcs.”. Muito justo.
Todos se sentaram ao redor de várias mesas e o estalajadeiro as atendeu, uma a uma. Naquela noite, Ecco poderia alegar, eles comeram como reis, torta de javali, pernis de cocatrice e cimelim para ajudar a engolir. Conversaram até que escurecesse o céu e estivessem satisfeitos. Sendo um capitão da Armada, Gage Vomthire era um homem razoavelmente rico.
Quando terminaram, Ecco, Nthaír, Lophan, Arknel, Yearnan e Zäja saíram da estalagem para sentar debaixo das estrelas. O capitão, a tripulação e os aprendizes foram para o navante, mas os seis decidiram permanecer um tanto mais.
— Zäja. – Chamou Yearnan a mando de Nthaír. – Você é um Závora?
Zäja se complicou. Seu olhar o entregava, como se estivesse numa grande enrascada. Olhou em volta muitas vezes para se certificar que ninguém os ouviria. Os outros riam da paranoia que o amigo sofria. Depois de muita certeza, Zäja sussurrou.
— Quem disse isso?
Gargalhadas não eram suficientes para descrever o quanto desataram a rir. Zäja estava se frustrando, envergonhado. Depois de muitas risadas, Nthaír decidiu contar.
— Você não é nenhum mestre em transformação.
— Transmutação. – Corrigiu.
— Não importa. Você não consegue. – Riram novamente.
— Vão se ferrar! – Gritou. Zäja saiu dali, xingando um a um a caminho do navante, onde algumas velas brilhavam.
— Alguém já foi em Sol’heratt? – Perguntou Lophan.
— Dizem que é maior cidade do mundo ínfero. – Falou Ecco.
— Mentira. É apenas a maior torre. – cusou Nthaír. – A maior é Arenza.
— Eu só perguntei sobre Sol’heratt. – Insistiu o ersni.
— Não, nunca fui. – Disse Nthaír.
— Nem eu. – Concordou Yearnan.
Ecco se limitou a balançar a cabeça numa negativa, mas acrescentou dizendo.
— Podemos ir depois de Go’ov.
— Como assim? – Perguntou Arknel, mas os aprendizes foram interrompidos por Zäja, que corria na direção deles, saindo do navante.
— O Capitão! O Capitão!
No minuto seguinte já estavam à bordo do navante. A tripulação e os aprendizes se dispersavam pelo convés, alguns com as mãos na cabeça em frustração, outros sentados em profundo desânimo. Rezz estava em pé, no mastro, atentamente vigiando a porta da cabine, aguardando alguma coisa.
— O que está acontecendo? – Nthaír indagou a Zäja.
— O capitão foi atacado.
Os quatro se horrorizaram, paralisados e sem reação. Dwanthar e Richard saíram do quarto pouco tempo depois. Seus rostos eram uma mistura de sofrimento e angústia, cobertos de lágrimas. Ecco sabia que eram sinceras. Todos os murmúrios, que não eram muitos, cessaram e foi possível ouvir o canto dos aleriões sobrevoando os céus, com suas notas tão diferentes que chegavam a soar uma melancolia. Maldito pássaro, pensou Ecco.
Palavras não foram necessárias. É muito – muito mesmo – difícil descrever o sentimento por uma pessoa que você conhece e gosta num dia e a perde logo em seguida. Ecco nunca teve um dia tão turbulento, tão cheio de reviravoltas ou informações como naquele. A sensação que passava dentro de si era a de um vazio já antigo, que, ao invés de se preencher com o tempo, dilacerava-se um tanto mais. Oras, o capitão Gage fora um grande amigo de seu pai, um bom futuro amigo e o mais oportuno salto que Ecco poderia dar. Eu poderia ter morado com ele. Eu poderia ter saído das ruas. O sentimento de culpa o preencheu, e o pequeno Ecco quis ser menor ainda.
Yearnan se aproximou e sussurrou.
— Ecco, quer conversar?
— Quero. – Concordou, com um olhar fatigado. – Vamos sair daqui.
Os dois logo desceram do navante e Nthaír os seguiu. Caminharam para o sul, se afastando dos Portões durante um bom tempo em completo silêncio. Em certo ponto do caminho que percorriam, os navantes simplesmente se extinguiram e os lampiões e postes tornaram-se escassos, quase sempre apagados. A cidade fazia uma curva, afastando-se da estrada da beirada para dentro do continente, abrindo espaço para uma densa floresta escura, com uma trilha que a atravessava, nem um pouco iluminada.
Ecco olhou para trás e encarou a subida que fariam quando precisassem voltar. Sentaram-se no gramado que crescia à porta da floresta, com as pernas ao vento.
— Ele foi um bom homem. – Disse Yearnan.
— Ele foi um bom homem. – Ecco repetiu, observando o Erall, enegrecido.
— O círculo impede. – Disse Nthaír.
Ecco e Ernandd o encararam com expressões de completa dúvida.
— Perdoem-me, estava pensando nalgumas coisas.
Ecco percebeu que o céu não mudaria de cor naquela noite, nem dali em diante. Pelo menos, não aos olhos dele.
Os três permaneceram em silêncio por algum tempo, apenas observando o céu. Yearnan jogava pedras ao longe, apenas para vê-las caírem e sumirem de vista muito antes de se aproximarem do oceano a quase oito Portões do Mar de altura. Nthaír, deitado na grama assim como Ecco, pôs as mãos atrás da cabeça e respirou fundo antes de dizer.
— Amanhã voltaremos à Casa do Voador. Os testes que precedem a missão de Nix serão adiados.
— Vamos fugir antes, então. – Sugeriu Yearnan. – Vamos para Sol’heratt. Ninguém nos encontraria.
— Vou a Go’ov. – Interveio Ecco. – Há outro pergaminho.
— Pra que esses pergaminhos? Mal leu os que tem – Disse Nthaír, bocejando.
— Sabem a direção para Sol’heratt? – Perguntou.
Ninguém respondeu. Ecco continuou.
— Em Go’ov podemos conseguir um mapa que nos leve até lá.
Yearnan concordou.
— Não se perguntam quem atacou o capitão? – Sugeriu Nthaír.
Os três permaneceram quietos como três passarinhos prestes a dormir. Não conseguiam imaginar quem poderia ter feito aquilo, ou como. Yearnan chegou a cogitar que Rezz tivesse feito aquilo, mas era muito improvável.
— Se formos mesmo a pé – Disse Ecco depois de um tempo, mudando de assunto. –, é melhor pegarmos o mapa.
Nthaír e Yearnan assentiram. Os três se levantaram e deram início à caminhada de volta ao navante. Ao chegarem lá, foram logo à cabine do capitão, onde encontraram Dwanthar. O capitão Gage estava esticado sobre a cama, com as mãos rente ao corpo e uma adaga enfiada no peito. Dwanthar encarava o companheiro de muitas aventuras, agora morto. Ao ver os garotos, forçou um sorriso tristonho.
— Aprendizes, o que fazem aqui?
Nthaír tomou a palavra.
— Dwanthar, nós vamos embora.
— Mas, mas por quê? – A desolação no rosto de Dwanthar fez com que os três repensassem os planos. – Nós vamos levá-los para casa logo ao amanhecer.
— Não quero voltar para casa. – Disse Ecco. – Não tenho uma casa. Eu moro nas ruas.
Yearnan lembrou-se de Avyin e logo viu-se coberto de dúvidas. Por um lado, sentia que deveria voltar e explicar para ela tudo que havia acontecido. Através da sua capacidade de enxergar pelos olhos da irmã, sabia o quanto ela precisava de conforto e calma. Avyin não conseguira notícias do irmão durante todo o dia. Yearnan sabia que, quando emocionalmente instável, Avyin não era capaz de usar os próprios poderes. Entretanto, voltar significava, talvez, nunca mais sair das ilhas, impedido de ver o mundo que sempre sonhou em conhecer.
— Para onde vão? – Perguntou o balute.
— Go’ov. – Respondeu Ecco.
— Eu pretendo buscar a Ordem de Alvedrena. – Disse Nthaír.
— Eu compreendo. – Disse Dwanthar, resignado. – Quando jovem, fugi da Ordem dos Jundos para ingressar nos Sainlorth, em Porto Lendário. E aqui estou eu, quase cento e cinquenta anos depois, na mesma cidade.
Aquilo era surpreendente. Muitos não estavam acostumados aos balutes e suas idades absurdamente diferentes (assim como os entleò), mas o reconforto os acalmou. Sabiam que poderiam prosseguir, tendo ainda a promessa de que tudo poderia dar certo, assim como deu para Dwanthar.
Ecco pegou a bolsa acima de uma mesa onde deixara antes de sair do navante para ir à estalagem.
— Dwanthar. – Disse Yearnan. – Pode fazer um favor para mim?
— Claro, diga.
— Eu tenho uma irmã na Ilha do Caçador. Pode dizer a ela que estamos bem? Eu pretendo retornar para encontrá-la o mais cedo possível.
— Isso não é um problema. – Ele respondeu. – Será feito.
Yearnan agradeceu. Os três não esperaram por palavras de despedida. Ecco e Nthaír esperavam por Yearnan do lado de fora quando Dwanthar o chamou.
— Yearnan? – Hesitou. – Qual o nome da sua irmã?
Yearnan riu de si mesmo por esquecer de um detalhe tão importante.
— Avyin... Avyin Ernandd.
— Vão antes que eu mude de ideia. – Brincou.
Ao sair da cabine, Yearnan encontrou seus dois futuros companheiros de jornada à espera dele, já com a bolsa na mão.
— Por onde vamos? – Indagou Yearnan.
— Por fora da cidade. – Sugeriu Nthaír. – Não conhecemos o caminho entre as torres.
— Ali estão eles! – Gritou Richard da popa, apontando para os três. – Eles mataram o capitão e estão tentando fugir!
— Mas e essa merda agora!? – Perguntou Yearnan.
Os três puseram-se a correr assim que viram a tripulação e alguns aprendizes emergirem de todo tipo de esconderijo. Saltaram para fora do navante e desceram à floresta.
— Por dentro da floresta? – Gritou Nthaír após correrem por alguns minutos. Nenhum dos outros havia desistido de perseguir os três.
Ecco respondeu.
— Com certeza.
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