O Voador escrita por Gabriel Gorski


Capítulo 16
O Empurrão Que Faltava




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— Hora de comer, pessoal! – Gritou um tripulante do cesto da gávea.

Todos comemoraram com vivas e assovios até o capitão sair de sua cabine. A fome era mesmo enorme. Todos começaram a descer do navante, saltando as amuradas ou pela escada. Ecco amarrou o pergaminho com a fita e o guardou na bolsa de couro. Yearnan logo se aproximou dele, com um semblante tristonho.

— Como foi seu dia emocionante? – Zombou Ecco.

— Táticas de guerra, mapas e mais mapas. Queria tanto ter saído.

— Aprendeu a ligar o navante? – Questionou, interessado.

— Sim. Não cheguei a voar, mas aprendi coisa melhor. Sabia que dá pra atirar arpões ao puxar uma alavanca do painel?

— Valha. – Exclamou. – Ainda assim, isso não é melhor que voar.

Yearnan riu e disse.

— Para alguém que não queria ser um voador, voar é melhor que atirar arpões?

Encurralado, Ecco riu.

— Não é por isso que não quero ser um voador!

— Por que, então?

— Ei. – Disse Nthaír, já na escada de cordas. – Vocês não vem?

Ambos desceram as escadas às pressas, seguindo o grupo até a cidade. Nthaír perguntou.

— E então, Ecco. O que decidiu?

— Go’ov. – Respondeu.

— O que tem Go’ov? – Perguntou Yearnan.

— Você não contou para ele? – Indagou Nthaír. – Achei que sim.

— Contado o que?

— Fugir. – Ecco respondeu, direto.

— Ah, já sabia. – Falou Yearnan. – Antes de sermos escolhidos para ir à Casa do Voador, Ecco já queria fugir.

— É a sede da Ordem de Alvedrena? – Perguntou Nthaír a Ecco.

— Para falar a verdade, não. – Explicou. Na fita que envolve o pergaminho está escrito algo como “Em Go’ov, no anfiteatro, icanes...”, então vem um trecho incompreensível e “outro... do Desconhecido de Mrasth”. Não consegui entender tudo, mas eu imagino que haja um pergaminho lá.

— Faz muito sentido. – Ironizou Nthaír.

— Que incrível! – Disse Yearnan. – Por que não vamos agora?

Os dois encararam o amigo imerso em euforia e responderam em uníssono.

— Comida, cara.

* * *

Ora, não demoraram nem dois minutos para chegar à uma torre muito grossa, com tochas na entrada e uma porta escancarada, demonstrando que qualquer um era bem-vindo. Era uma estalagem muito movimentada. Haviam ali seres de muitas raças, de vários tamanhos e aparências. Ao passar pela porta, Ecco viu uma placa que dizia “Proibido Saivos e Orcs.”. Muito justo.

Todos se sentaram ao redor de várias mesas e o estalajadeiro as atendeu, uma a uma. Naquela noite, Ecco poderia alegar, eles comeram como reis, torta de javali, pernis de cocatrice e cimelim para ajudar a engolir. Conversaram até que escurecesse o céu e estivessem satisfeitos. Sendo um capitão da Armada, Gage Vomthire era um homem razoavelmente rico.

Quando terminaram, Ecco, Nthaír, Lophan, Arknel, Yearnan e Zäja saíram da estalagem para sentar debaixo das estrelas. O capitão, a tripulação e os aprendizes foram para o navante, mas os seis decidiram permanecer um tanto mais.

— Zäja. – Chamou Yearnan a mando de Nthaír. – Você é um Závora?

Zäja se complicou. Seu olhar o entregava, como se estivesse numa grande enrascada. Olhou em volta muitas vezes para se certificar que ninguém os ouviria. Os outros riam da paranoia que o amigo sofria. Depois de muita certeza, Zäja sussurrou.

— Quem disse isso?

Gargalhadas não eram suficientes para descrever o quanto desataram a rir. Zäja estava se frustrando, envergonhado. Depois de muitas risadas, Nthaír decidiu contar.

— Você não é nenhum mestre em transformação.

— Transmutação. – Corrigiu.

— Não importa. Você não consegue. – Riram novamente.

— Vão se ferrar! – Gritou. Zäja saiu dali, xingando um a um a caminho do navante, onde algumas velas brilhavam.

— Alguém já foi em Sol’heratt? – Perguntou Lophan.

— Dizem que é maior cidade do mundo ínfero. – Falou Ecco.

— Mentira. É apenas a maior torre. – cusou Nthaír. – A maior é Arenza.

— Eu só perguntei sobre Sol’heratt. – Insistiu o ersni.

— Não, nunca fui. – Disse Nthaír.

— Nem eu. – Concordou Yearnan.

Ecco se limitou a balançar a cabeça numa negativa, mas acrescentou dizendo.

— Podemos ir depois de Go’ov.

— Como assim? – Perguntou Arknel, mas os aprendizes foram interrompidos por Zäja, que corria na direção deles, saindo do navante.

— O Capitão! O Capitão!

No minuto seguinte já estavam à bordo do navante. A tripulação e os aprendizes se dispersavam pelo convés, alguns com as mãos na cabeça em frustração, outros sentados em profundo desânimo. Rezz estava em pé, no mastro, atentamente vigiando a porta da cabine, aguardando alguma coisa.

— O que está acontecendo? – Nthaír indagou a Zäja.

— O capitão foi atacado.

Os quatro se horrorizaram, paralisados e sem reação. Dwanthar e Richard saíram do quarto pouco tempo depois. Seus rostos eram uma mistura de sofrimento e angústia, cobertos de lágrimas. Ecco sabia que eram sinceras. Todos os murmúrios, que não eram muitos, cessaram e foi possível ouvir o canto dos aleriões sobrevoando os céus, com suas notas tão diferentes que chegavam a soar uma melancolia. Maldito pássaro, pensou Ecco.

Palavras não foram necessárias. É muito – muito mesmo – difícil descrever o sentimento por uma pessoa que você conhece e gosta num dia e a perde logo em seguida. Ecco nunca teve um dia tão turbulento, tão cheio de reviravoltas ou informações como naquele. A sensação que passava dentro de si era a de um vazio já antigo, que, ao invés de se preencher com o tempo, dilacerava-se um tanto mais. Oras, o capitão Gage fora um grande amigo de seu pai, um bom futuro amigo e o mais oportuno salto que Ecco poderia dar. Eu poderia ter morado com ele. Eu poderia ter saído das ruas. O sentimento de culpa o preencheu, e o pequeno Ecco quis ser menor ainda.

Yearnan se aproximou e sussurrou.

— Ecco, quer conversar?

— Quero. – Concordou, com um olhar fatigado. – Vamos sair daqui.

Os dois logo desceram do navante e Nthaír os seguiu. Caminharam para o sul, se afastando dos Portões durante um bom tempo em completo silêncio. Em certo ponto do caminho que percorriam, os navantes simplesmente se extinguiram e os lampiões e postes tornaram-se escassos, quase sempre apagados. A cidade fazia uma curva, afastando-se da estrada da beirada para dentro do continente, abrindo espaço para uma densa floresta escura, com uma trilha que a atravessava, nem um pouco iluminada.

Ecco olhou para trás e encarou a subida que fariam quando precisassem voltar. Sentaram-se no gramado que crescia à porta da floresta, com as pernas ao vento.

— Ele foi um bom homem. – Disse Yearnan.

— Ele foi um bom homem. – Ecco repetiu, observando o Erall, enegrecido.

— O círculo impede. – Disse Nthaír.

Ecco e Ernandd o encararam com expressões de completa dúvida.

— Perdoem-me, estava pensando nalgumas coisas.

Ecco percebeu que o céu não mudaria de cor naquela noite, nem dali em diante. Pelo menos, não aos olhos dele.

Os três permaneceram em silêncio por algum tempo, apenas observando o céu. Yearnan jogava pedras ao longe, apenas para vê-las caírem e sumirem de vista muito antes de se aproximarem do oceano a quase oito Portões do Mar de altura. Nthaír, deitado na grama assim como Ecco, pôs as mãos atrás da cabeça e respirou fundo antes de dizer.

— Amanhã voltaremos à Casa do Voador. Os testes que precedem a missão de Nix serão adiados.

— Vamos fugir antes, então. – Sugeriu Yearnan. – Vamos para Sol’heratt. Ninguém nos encontraria.

— Vou a Go’ov. – Interveio Ecco. – Há outro pergaminho.

— Pra que esses pergaminhos? Mal leu os que tem – Disse Nthaír, bocejando.

— Sabem a direção para Sol’heratt? – Perguntou.

Ninguém respondeu. Ecco continuou.

— Em Go’ov podemos conseguir um mapa que nos leve até lá.

Yearnan concordou.

— Não se perguntam quem atacou o capitão? – Sugeriu Nthaír.

Os três permaneceram quietos como três passarinhos prestes a dormir. Não conseguiam imaginar quem poderia ter feito aquilo, ou como. Yearnan chegou a cogitar que Rezz tivesse feito aquilo, mas era muito improvável.

— Se formos mesmo a pé – Disse Ecco depois de um tempo, mudando de assunto. –, é melhor pegarmos o mapa.

Nthaír e Yearnan assentiram. Os três se levantaram e deram início à caminhada de volta ao navante. Ao chegarem lá, foram logo à cabine do capitão, onde encontraram Dwanthar. O capitão Gage estava esticado sobre a cama, com as mãos rente ao corpo e uma adaga enfiada no peito. Dwanthar encarava o companheiro de muitas aventuras, agora morto. Ao ver os garotos, forçou um sorriso tristonho.

— Aprendizes, o que fazem aqui?

Nthaír tomou a palavra.

— Dwanthar, nós vamos embora.

— Mas, mas por quê? – A desolação no rosto de Dwanthar fez com que os três repensassem os planos. – Nós vamos levá-los para casa logo ao amanhecer.

— Não quero voltar para casa. – Disse Ecco. – Não tenho uma casa. Eu moro nas ruas.

Yearnan lembrou-se de Avyin e logo viu-se coberto de dúvidas. Por um lado, sentia que deveria voltar e explicar para ela tudo que havia acontecido. Através da sua capacidade de enxergar pelos olhos da irmã, sabia o quanto ela precisava de conforto e calma. Avyin não conseguira notícias do irmão durante todo o dia. Yearnan sabia que, quando emocionalmente instável, Avyin não era capaz de usar os próprios poderes. Entretanto, voltar significava, talvez, nunca mais sair das ilhas, impedido de ver o mundo que sempre sonhou em conhecer.

— Para onde vão? – Perguntou o balute.

— Go’ov. – Respondeu Ecco.

— Eu pretendo buscar a Ordem de Alvedrena. – Disse Nthaír.

— Eu compreendo. – Disse Dwanthar, resignado. – Quando jovem, fugi da Ordem dos Jundos para ingressar nos Sainlorth, em Porto Lendário. E aqui estou eu, quase cento e cinquenta anos depois, na mesma cidade.

Aquilo era surpreendente. Muitos não estavam acostumados aos balutes e suas idades absurdamente diferentes (assim como os entleò), mas o reconforto os acalmou. Sabiam que poderiam prosseguir, tendo ainda a promessa de que tudo poderia dar certo, assim como deu para Dwanthar.

Ecco pegou a bolsa acima de uma mesa onde deixara antes de sair do navante para ir à estalagem.

— Dwanthar. – Disse Yearnan. – Pode fazer um favor para mim?

— Claro, diga.

— Eu tenho uma irmã na Ilha do Caçador. Pode dizer a ela que estamos bem? Eu pretendo retornar para encontrá-la o mais cedo possível.

— Isso não é um problema. – Ele respondeu. – Será feito.

Yearnan agradeceu. Os três não esperaram por palavras de despedida. Ecco e Nthaír esperavam por Yearnan do lado de fora quando Dwanthar o chamou.

— Yearnan? – Hesitou. – Qual o nome da sua irmã?

Yearnan riu de si mesmo por esquecer de um detalhe tão importante.

— Avyin... Avyin Ernandd.

— Vão antes que eu mude de ideia. – Brincou.

Ao sair da cabine, Yearnan encontrou seus dois futuros companheiros de jornada à espera dele, já com a bolsa na mão.

— Por onde vamos? – Indagou Yearnan.

— Por fora da cidade. – Sugeriu Nthaír. – Não conhecemos o caminho entre as torres.

— Ali estão eles! – Gritou Richard da popa, apontando para os três. – Eles mataram o capitão e estão tentando fugir!

— Mas e essa merda agora!? – Perguntou Yearnan.

Os três puseram-se a correr assim que viram a tripulação e alguns aprendizes emergirem de todo tipo de esconderijo. Saltaram para fora do navante e desceram à floresta.

— Por dentro da floresta? – Gritou Nthaír após correrem por alguns minutos. Nenhum dos outros havia desistido de perseguir os três.

Ecco respondeu.

— Com certeza.


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