O Voador escrita por Gabriel Gorski


Capítulo 14
Alvedrena e a História dos Magos




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De súbito, toda a força de Ecco se esvaiu e Nthaír o puxou num solavanco. Caídos, os dois viam agora a criatura, crescendo em várias direções, até alcançar o teto.

Ecco foi o primeiro a correr pelas escadas, xingando tantos nomes que Nthaír quase ficou envergonhado, não fosse o medo da criatura que os perseguia. O monstro, por sua vez, os seguia, contorcendo-se para passar nas escadas.

— A coisa está atrás de nós! – Gritou Nthaír.

— Desgraça, desgraça, inferno! – Era tudo que Ecco dizia e repetia cada vez que ouvia os barulhos das escadas atrás de ambos quebrando-se com o peso da coisa, que gritava um som guturalmente demoníaco.

Por onde passavam, encontravam os andares estavam vazios, sem bodes nem círculos. Viam, porém, escombros e lascas de madeira caindo, os andares sendo destruídos.

— Mas que merda, nós vamos morrer!

Já estavam no terceiro andar quando perceberam que algumas coisas estavam diferentes de antes.

Um gigantesco pavilhão se estendia à frente deles, com um teto muito alto e colunas de mármore enfileiradas dos dois lados. Entre os dois lados do pavilhão, pilhas e mais pilhas de entulho dos mais variados tipos e tamanhos cobriam o chão, quase completamente. Móveis de madeira e de ferro, caixas quebradas ou intactas, invenções mirabolantes, máquinas absurdamente incomuns, pequenos objetos, barris de cimelim, estátuas de pedra ou metal, peles de animais, tecidos e tantas outras coisas estavam reunidas ali. Uma trilha serpenteava seu caminho através de todos as tranqueiras.

Havia um tecido colorido muito grande que cobria parte dos objetos, preso a uma cesta quadrada, tão grada que caberiam umas quatro pessoas ali dentro. Onde a cesta estava, uma bifurcação se formava. Ecco e Nthaír continuaram correndo, mas cada um tomou um rumo diferente.

— Por aqui. – Disse Ecco ao entrar no caminho à direita, mas parou ao ver que o amigo tinha sumido. – Cadê você?

— Estou perto das colunas da esquerda. – Respondeu Nthaír. – Não pare de correr.

Ecco teve a brilhante ideia de subir numa pilha de caixotes e outras coisas para, do alto, ver Lièspe. Conseguiu encontrá-lo, ao longe, correndo até parar em frente a alguma coisa. Nthaír encheu os bolsos com muitas moedas que encontrou num baú. Ecco considerou pegar um pouco, mas então sentiu uma coisa estranha dentro de si. Esse sentimento não é meu.

— Nthaír, se afaste! Está enfeitiçado.

Nthaír, porém, não prestou atenção nele e voltou a correr. O pavilhão era longo e ainda faltava muita coisa.

Debaixo dos seus pés havia um papel de pergaminho bem conservado, cheio de desenhos embaralhados. Ao abrir, viu o esquema de uma máquina voadora, redonda em cima, parecida com a cesta que tinham visto, onde o tecido inflava com alguma coisa. Havia também muitos desenhos mais complexos, instrumentos de guerra, de água, terra e tantas outras coisas que Ecco pareceu um tanto confuso.

Um tremendo grito estridente o alertou para a realidade. A criatura metamórfica estava ali e avançava na direção de Ecco, destruindo e consumindo todo o entulho.

Não esperou para ver o que aconteceria. Simplesmente correu com todas as forças que tinha. Nthaír já havia alcançado a porta e a puxava, mas estava emperrada.

— Abra, sua porta imprestável! – Gritou, enfurecido.

E a porta se abriu, emitindo um clarão que cegou a ambos. Todo o pavilhão se desfez em branco e Ecco percebeu que já não estavam mais ali.

— Sai de cima de mim. – Disse Nthaír.

Ao abrir os olhos, Ecco se levantou e viu que estavam de volta ao décimo quinto andar. No centro, o círculo de sal, intacto. Dentro dele, uma chama azul brilhante queimava, pairando sobre o nada.

— O que está acontecendo? – Perguntou Nthaír, em desespero e insegurança.

Não havia ali escada alguma. Pelo contrário, não tinha nenhuma porta, janela ou alçapão. Uma voz ecoou. A alma dos dois já teria abandonado o corpo se fosse possível.

— Não deveriam ter rompido o círculo. – A voz disse.

Congelados de medo, ambos permaneceram quietos. Seria possível que romper o círculo fosse o único motivo para tudo que havia acabado de acontecer? A voz vinha da chama que com eles falava de igual para igual.

— Entretanto, vocês passaram no teste. Estão livres para irem. – Era uma notícia muito confortante. – Como recompensa, darei a vós o pergaminho que Ecco “usurpou”.

Ecco sentiu o pergaminho no bolso de trás. Ao puxá-lo, viu que estava enrolado e amarrado com uma fita vermelha.

— Vão.

— Não podemos. – Explicou Nthaír, mencionando o detalhe que parecia ter passado despercebidamente à chama falante. – Caso não tenha reparado, não há muitas formas de sair daqui.

— Toquem em mim, eu os levarei para fora daqui.

— Nem se as vacas trovejarem. – Desdenhou Ecco.

— Neste caso, adeus.

— Não, não! – Disse Nthaír à chama, e então a Ecco. – Quer nos matar?

Ecco não respondeu. Os dois se entreolharam por algum tempo até suspirarem, decididos a fazer aquilo.

— Não nos queimará?

— O círculo impede.

— O círculo impede. – Nthaír sussurrou, refletindo naquelas palavras.

Os dois, ao mesmo tempo, titubeantes, tocaram a chama, que se desfez, escurecendo o recinto. A única luz restante vinha de um buraco numa porta de madeira em frente a ambos. Eles poderiam jurar que ela não estava ali antes. Ecco correu para observar através do buraco e viu a rua da encruzilhada, vazia como antes. Mais ao longe, três cavaleiros pareciam revoltados com dois garotos que se afastavam do grupo. Acima deles, o céu mostrava-se claro.

— Parece que ainda é dia. – Falou, intrigado.

— Podemos sair?

— Valha! Somos nós. – Apontou Ecco para os dois garotos.

Nthaír enfiou o rosto pela porta. De alguma forma, graças àquela chama, tinham voltado no tempo.

— Ótimo. Corremos e os empurramos, como aconteceu. – Disse Nthaír.

— Não queria ter caído. – Disse Ecco.

— Se não fizermos isso, as coisas podem ser diferentes. – Explicou.

— Certo. Vamos.

Ecco abriu a porta e os dois correram, empurrando aqueles que discutiam. Entraram no primeiro beco que encontraram e pararam para respirar. Nthaír riu.

— Éramos nós, de verdade.

— Sim, eu disse. – Ecco riu.

Já iriam voltar ao Capitão de Ferro quando Nthaír puxou o braço de Ecco para dizer algo.

— A feiticeira. – Sussurrou.

A mulher estava carregando uma bacia com água, caminhando em direção à torre. Assim que os viu, parou. Seu rosto exprimia uma sombra de dúvida e fascínio.

— Vocês conseguiram. Meus parabéns. – Ela disse. – Tenho que ser sincera, achei que não conseguiriam.

— Mas... mas. – Disse Ecco. – Se estamos aqui agora, você não deveria ser capaz de nos reconhecer.

— Sim, é verdade. – Concordou. – Mas vejam meus braços.

Os braços dela estavam pretos até acima do cotovelo, assim como antes, mas as marcas que ela ainda haveria de fazer estavam ali.

— Quem é você? – Ecco ouviu-se dizer.

— Derália é o meu nome. – Respondeu, sorrindo.

— O que é isso? – Perguntou Nthaír.

A mulher conferiu com o olhar o ambiente ao redor. Não havendo ninguém, respondeu.

— É um feitiço raro que a Ordem desenvolveu.

— Qual Ordem? – Perguntou Ecco.

— Vamos à torre. – Sugeriu ela, por medo de ser ouvida.

— Nem se as vacas trovejarem entro na torre. – Rebateu Ecco.

— Eu também não. – Concordou Nthaír.

— É seguro. – Ela disse. – O monstro não está lá.

Receosos, acabaram mudando de ideia. Entraram na torre e sentaram-se à mesa. A mulher fechou a porta e começou a falar após sentar-se com eles.

— Eu pertenço à Ordem de Alvedrena.

— O que ela é? – Insistiu Ecco, curioso.

— Nos tempos dos finghars, quando Therohnar era o Titã de Synthar e de toda Uzos, muitos boatos surgiram acerca dele.

— Synthar? – Interrompeu Nthaír. – És um ersni?

Derália assentiu. Suas orelhas não eram pontudas, porém, fato que deixou tanto Nthaír quanto Ecco desconfiados.

O nome de Nthaír não era uma mera semelhança ao nome do império dos finghars na língua élfica. Seus pais morreram quando ele era um pequeno bebê e um ersni o encontrou e o criou desde então, ou pelo menos foi o que lhe disseram.

— Permitam-me prosseguir. – Pediu. – Diziam entre os povos que Therohnar era brando e fraco demais para reinar. Grynth, o irmão dele, requisitou a Alvedrena para assassiná-lo.

— Grynth jamais deveria ter sido Titã de Uzos. – Disse Nthaír.

— A Ordem de Alvedrena conspirou contra Therohnar! – Disparou Ecco.

— Espere! – Disse Derália, tentando justificar. – Não foi assim. Horbatto Sphyen, o Segundo Mago era contra Grynth. Agheor, o Primeiro Mago, o expulsou da Ordem, mesmo que fosse um dos fundadores de Alvedrena, porque ambos sabiam o que Grynth pretendia fazer, mas poucos creram em Horbatto durante o primeiro Conclave de Alvedrena.

— Agheor lutava pelo mal? – Perguntou Nthaír.

— Sim.

Tudo deixou de fazer sentido. Agheor salvou o mundo, todos sabiam. Ecco pensou que, conhecendo a origem da Ordem, talvez descobrisse algo.

— Por que a Ordem foi criada? – Indagou.

— Foi uma forma de se preservar tudo que foi aprendido com os ersni, antes que eles fossem expulsos de Uzos por Umblerag III.

— O que os ersni ensinaram, enfim? – Ecco insistiu.

— Magia. – Respondeu Derália.

Por um segundo ou mais Ecco permaneceu quieto.

— Magia é falácia do mundo ínfero! – Exclamou. – Duvido que alguém seja capaz de criar fogo na palma da mão.

Derália o encarou por um instante, inconformada com a incredulidade dele. Esticou a mão com a palma virada para cima e não demorou para que Ecco e Nthaír ficassem boquiabertos, incrédulos com o que viam. Um pequeno filete flutuava, crescendo e se transformando numa esfera de fogo, azul como as cores do pôr do sol, quando se mistura às nuvens do Reino da Fumaça. Azul como a chama que com eles falara.

— Nós chamamos de fogo puro. – Ela disse, intrigada com o próprio poder. – Por isso tem esse azul fascinante, porque não está queimando algo.

Eu não entendo. Como isso é possível? Ecco pensava consigo mesmo, mas Derália continuou dizendo.

— Sphyen, Agheor e Quosheyr escreveram incontáveis grimórios contendo tudo que aprenderam com os ersni, e foi através desses livros que os poderes ersnilinos se espalharam até os dias de hoje.

Ecco não queria acreditar, mas não conseguia não crer. As coisas faziam um grande e bom sentido e, por um momento ou dois, ponderou fugir da Ordem de Sainlorth para ingressar na Ordem de Alvedrena, mesmo não entendendo como Agheor era o cara ruim da história.

— Com magia nos fez voltar no tempo? – Perguntou Nthaír.

— Sim. – Ela respondeu. – Mas eu disse, é raro e difícil de se fazer. Há muitas consequências para executá-lo com eficiência. Por isso fiz estes cortes no braço. É necessário um sacrifício de sangue.

— E agora nós nos multiplicaremos eternamente?

— Na verdade, quando ‘vocês’ chegarem, a chama os consumirá. Então só existirão vocês dois novamente.

Que destino cruel para duas pessoas.

— És a criadora da chama? – Perguntou Ecco, certo da resposta.

Derália assentiu.

— Como você desfará? – Nthaír insistia em conhecer os segredos dos feitiços.

— Não são membros de Alvedrena. Não saberão. Hão de ir antes que cheguem. – E se levantou para abrir a porta, expulsando-os.    


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