Os Lordes de Ferro escrita por valberto


Capítulo 2
Capítulo 2 – Na cantina




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O domingo e suas doces lembranças tinham ficado para trás, num passado distante e longínquo, assim que Sara cruzou o portão de casa. Sentada na sala de estar, celular na mão, estava sua mãe. Cara de poucos amigos.  Bastou um olhar para Sara saber que estava encrencada. Mas para a sua mãe a punição não estava completa sem um sermão de uma hora inteira sobre chegar atrasada, os perigos das ruas e hobbies estranhos. Além de estar de castigo e de ter de chegar em casa cedo todos os dias da semana, a mãe de adicionou uma pitada extra de maldade...

— Ah mãe, fala sério! Prefiro lavar a louça por um mês! – esbravejou a menina no meio da sala, dando voltas em torno de si mesma, desesperada.

— Já está decidido. Se você quiser ir a esse negócio de espadas de novo ou aquela sua dança indiana vai ter de levar o seu irmão, Ronaldo. – o tom da mãe era mais inflexível que a um delegado de polícia. Lá no canto da sala Ronaldo escondia o risinho por trás do tablet que fingia jogar. Sara podia jurar que conseguia ouvir as maquinações do irmão, por trás daquela cabeçorra de ossos grossos.  

— Mãe, pelo amor de deus. O Ronaldo é um hiperativo movido a açúcar de plutônio. Ele vai me fazer morrer de vergonha. E é dança cigana e não indiana.

— Nem mais uma palavra – decretou a mãe – amanhã você tem aula e não quero saber de chegar atrasada na escola de novo.

 A menina foi dormir contrariada, sabendo que teria uma semana infernal pela frente. Se havia uma coisa que Sara tinha mais ódio nessa vida do que comparecer a eventos sociais com o seu irmão essa coisa era ir para a escola. Estudava num colégio público no centro da cidade. Era o sexto colégio que frequentava desde o começo da sua vida escolar no ensino médio. E mal tinha chegado no segundo ano ainda! Sempre havia alguma coisa, alguma confusão em que acabava se metendo, ou acabava sendo envolvida, que a levava da sala do diretor para uma sala da secretaria de educação. E de lá para uma nova escola. Sara era “convidada a mudar de escola” com uma frequência absurda.

Não era como o seu irmão, Ronaldo, que estudava desde sempre na mesma escola particular do centro. Pelo menos era o que sua mãe fazia questão de lembrar cada vez que a palavra “escola” surgia em seu universo. Se o menino era o demônio em casa, era um verdadeiro “santo” na escola. Até medalha de bom comportamento ele ganhou – embora Sara suspeitasse que ela tinha sido roubada ou comprada. Não era nenhum gênio, mas a mãe nunca fora avisada de nenhum comportamento diferenciado. Aliás pelo entendimento de Sara o Ronaldo poderia fazer o que quisesse que estaria instantaneamente perdoado pela mãe.  

Se Sara não gostava da escola, a recíproca parecia verdadeira. Transferida três semanas depois do início das aulas a menina se viu excluída de todos os grupos: dos nerds aos descolados, dos esportistas ao pessoal do grêmio estudantil. Todo mundo parecia fazer questão de esquecer que a menina existia, enquanto outros faziam questão de ignorá-la na cara dura, sem rodeios. No dia que ficar isolada no canto da sala, sem falar com ninguém, for uma disciplina, ela iria tirar dez com louvor.

A escola ainda tinha uma característica especialmente depressiva: ela tinha duas cantinas. Uma com comida do governo e outra para quem podia pagar. Parecia que estava diante daquelas fotos do apertheid que tinha viso no documentário da aula de sociologia: de um lado o “bandejão” que servia como comida uma maçaroca indefinida de soja, biscoitos duros e água suja com um leve sabor de suco. Do outro lado do salão parecia uma versão descolada do McDonalds ou do Burguer King. Mas cobrava os olhos da cara. Olhos que a menina não tinha.

Naquele dia, depois de duas aulas de matemática e uma aula de química tudo o que ela queria era se sentar longe de qualquer coisa que significasse minimamente uma equação qualquer. Ela pegou sua bandeja de gororoba sabor “risoto de frango com ervas finas”, que de frango não tinha nada e cujas ervas pareciam grama recém-aparada, e foi sentar-se no fundo do salão. De lá acompanhava com uma pontada de inveja as pessoas que passavam a sua frente, todas acompanhadas e sorridentes. Puxou o celular do bolso, um moto G1 de tela rachada e começou a procurar alguma coisa para ouvir quando uma sombra parou bem na sua frente.

Era um rapaz alto, atlético, de pele morena e olhos castanhos. Não era de “parar o transito”, mas na escala Sara Dias de “gatinhos pegáveis” ele marcava pelo menos um seis. Ok, seis e meio. Estava enfiado numa calça jeans e botas estilo coturno, com uma camiseta preta de uma banda de j-rock (ou k-pop, tanto faz) e por cima de tudo uma jaqueta da escola. Ele estava encarando Sara com um olhar inquisidor, como se quisesse lembrar alguma coisa. Aquele olhar deixou a menina incomodada e ela baixou a cabeça. Ele segurou a sua bandeja com uma mão e fez sinal que a menina tirasse os fones de ouvido.

— Sim? – perguntou Sara olhando para o sujeito que devia ter pelo menos um metro e oitenta tranquilamente.

— Você estava domingo no parque Leste não estava? Batendo espadinha com o pessoal dos Lordes de Ferro? – inquiriu o rapaz com um sorriso no canto da boca.

 - É... eu estava sim – respondeu Sara, temendo ser zoada ali na frente de todo mundo ou pior. Porque se tem uma coisa pior do que ser invisível na escola é ser alvo de bullying.

— Puxa vida que coisa mais da hora! Lutadora e ainda estuda na nossa escola. Que coisa mais legal! – disse o menino verdadeiramente feliz – Desculpa não me apresentar direito. Eu sou o Marlon Rodrigues, mas o pessoal do treino me chama de Crono.

— Sara... – disse a menina ainda sem jeito enquanto Lana del Rey esgoelava-se no fone de ouvido que ainda estava enfiado na sua orelha – Mas não tenho apelido ainda.

— Vai ter, nem se preocupe. Se eu fosse você já ia pensando em um. Estou indo lanchar com o pessoal do clã. Quer vir comigo? Temos um lugar só nosso aqui na escola.

O convite parecia sincero e sara decidiu aceitar. Ela fez a menção de levar a sua bandeja, mas Marlon a impediu com um sorriso:

— Deixa essa gororoba aí. Eu racho o meu lanche com você. Eu tenho hambúrguer, fritas e milk-shake de nutella. Tá na cara que eu não vou comer tudo isso.

Sara passou a seguir o Marlon pela escola. O centro de ensino P2 onde estudavam era enorme, com direito a uma pista de atletismo e várias quadras poliesportivas. Os dois foram em direção à biblioteca, virando pouco antes do prédio principal para um pequeno pátio com um ipê rosa no seu centro. Em volta dele alguns alunos comiam e conversavam enquanto caixas de som bluetooth tocavam rock pesado. Bem ali do lado dois deles lutavam com espadas de espuma.

— Gente essa é a Sara. Estava com a gente no treino de domingo. Esses aqui são o Alê (Loki), o Daniel (Zoltan), a Amanda (Vanny) e o Hugo (Kurama). Lutando ali estão o Johnnie (Lobo) e Rivca (Caska). Senta aí e se apresenta para a galera.

— Ãn... oi gente. Eu sou a Sara e prazer em conhecer vocês. – a menina estava realmente descolada. Se tinha começado o dia sem nenhum amigo agora tinha um grupo. Mal podia acreditar na sua sorte.   

A Amanda, uma menina de cabelos curtos e óculos de grau, abriu espaço para ela na roda e estendeu a mão. Na hora percebeu que a menina usava uma coleira de couro, com uma argola bem na frente. A menina tinha uma pele pálida, rosadinha e muito macia. Assim como os demais ela também usava botas.

— Puxa Marlon, você tirou a sorte grande para mim. Como é bom ter mais uma menina na roda, já que a Caska passava o tempo lutando. – então ela se virou para Sara e arregalou os olhos, perguntando com esperança na voz – você não é dessas que é viciada em lutar, né? Eu adoraria conversar com alguém de coisas de menina.

— Uai, e eu não conto nessa sua equação não? – a voz grossa e firme, com um tom de indignação mais falso que uma nota de três reais vinha de um barbudinho sentado mais à direita, do rapaz que tinha sido apresentado como Zoltan.

— Não é a mesma coisa Zol... – disse a menina olhando para baixo e balançando os calcanhares estirados no chão. – Você nem é gay para ser meu amiguinho gay.

— Minha filha, eu sou flex! Um motor do amor – disse o rapaz pondo-se de pé e fazendo parte da coreografia de “I’m too sexy” do Righ Said Fred.

— Ah meu senhor Odin, eu fiquei cego! – berrou outro que mais cedo foi identificado como Kurama. Alto, forte e de cabelos castanhos bem clarinhos cheios de dreadlocks ele ganhou um oito com louvor na escala Sara Dias de “gatinhos pegáveis”. Ele andou ainda uns dois passos de olhos fechados e braços estirados para frente como se tivesse ficado cego mesmo.  Apalpou o tronco do ipê rosa e depois gritou de novo. Todo mundo caiu na gargalhada.

Em poucos minutos de conversa Sara se sentia bem vinda como nunca antes em toda a sua vida escolar. Todos conversavam com todos e conversavam com ela. Era tanta informação que ela sentiu vontade de chorar de alegria.

— Olha só o que o gato trouxe... – a voz veio lá de trás quando um rapaz de cabelos blackpower veio carregando uma espada de duas mãos. – Eu me lembro de você no treino. Eu sou o Lobo. – disse ele estendendo a mão para Sara.

— Meu namorado – completou Amanda, que mastigava um pedaço de maça ruidosamente. Sara percebeu que apesar da jovialidade do aviso havia alguma coisa como por baixo como “não mexa com o que é meu”.

— Meu amante! – berrou Zoltan, acompanhado de uma serie de vaias.

— E essa daqui é a...

— Caska – completou Sara antes que o Lobo pudesse fazer as apresentações. A menina estava com uma camiseta escolar desbotada e uma saia plissada azul marinho e as indefectíveis botas estilo coturnos.

— Oi menina. Esperei você me ligar no domingo... – disse a menina mordendo o lábio inferior como se estivesse fazendo uma reclamação.

— Não rolou. Estou de castigo. Minha mãe não gostou nada de eu ter chegado tarde em casa.

— Sei como é... – respondeu Kurama, se metendo na conversa.

— Pois é... estou de castigo a semana toda. E ainda vou ter que levar o meu irmão mais novo no treino como castigo. O menino é um verdadeiro satanás de rabo! – reclamou Sara, suspirando e jogando os ombros para frente.

— Ah, nem me fale. Meu irmão mais velho também treina com a gente. O apelido dele é Bakka. Dá para acreditar?

— E cadê ele?

— Ah, deu um jeito de faltar hoje, aquele safado. Campeonato de LOL. Você acredita que a minha mãe caiu naquele velho truque de esquentar o termômetro na lâmpada da luminária de cabeceira?

— Gente, cinco minutos para o fim do intervalo. Alguém ainda vai lutar? Eu queria esticar as pernas antes da aula de inglês. – disse Alê puxando duas imitações de katana e wakizashi largadas ali do lado.

— Olha, por que a novata não luta? – perguntou Amanda, devidamente agarrada no braço do namorado.

— É uma boa ideia, viu? Eu vi que ela foi treinada pela Annie. – comentou o Lobo.

— Bah, todo mundo foi treinado pela Annie. – resmungou Zoltan, catando os restos de comida de uma das bandejas. – Mas eu queria ver do que ela é capaz. Dá uma espada para ela.

Caska entregou a espada que estava usando para Sara. Era uma arming sword muito bonita, de guarda azul em formato de “u” bem averto. A espada era estranhamente leve e a sua guarda era coberta por couro preto muito macio e firme.

— Cuidado com ela. – advertiu Caska – foi um prêmio que eu conquistei na arena.  

No alto falante uma musica instrumental começou a tocar. Dance of darkness, do Blackmore's Night. Os dois foram até o centro da “arena” e se cumprimentaram. Logo depois disso Loki jogou-se para frente e com um rápido movimento com sua wakizashi tirou a espada de Sara do caminho, acertando um corte em seu abdômen.

— Ittouryuu iai! Shishi sonson! – berrou Loki ao terminar o golpe.   

— De novo! – berrou  Zoltan, cuspindo pedaços de torta seca de maça.

Os dois se cumprimentaram de novo. Sara assumiu uma postura que viu no treino. Uma postura básica da esgrima japonesa. Espada apontada para o pescoço de Loki. Postura firme. Mas o mesmo resultado.

— De novo! De novo! – berraram em uníssono Zoltan e Vanny.

No alto falante começou a tocar uma musica chamada Dance of Curse. Sara foi sentindo o ritmo e começou a girar a espada como tinha visto numa apresentação de dança cigana, anos atrás. A espada dos cossacos dançava em torno do seu corpo. Sua respiração se entrecortava com os golpes, como se uma centena de lâminas girassem a seu redor, protegendo-a.

Loki correu na direção dela, espadas cruzadas para quebrar a defesa da menina. A espada de Sara girou de baixo para cima, arrancando as duas espadas das mãos de Loki. Antes das duas tocarem o chão a espada dela estava a centímetros do pescoço do colega.

Então o sinal tocou. E tão rápido quanto se formou, seu círculo de amigos se desfez no meio da bagunça para voltar ás aulas. Mas dessa vez ela não se sentia mais sozinha.


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