Os Lordes de Ferro escrita por valberto


Capítulo 15
Capítulo 15 – O rugido do trovão de sangue.




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Sangue. Sangue em todo lugar. Nas roupas. No cabelo. No rosto. O gosto do sangue na boca. Nada disso parecia ser real e tudo o que Caska ouvia era o som da sua própria respiração ofegante. Seu pulso estava acelerado e entre uma respirada e outra podia sentir a vida pulsando forte em suas veias. Cada batida do seu coração ecoava pelo seu corpo como um trovão retumbando distante. Em volta dela, no que era a cozinha da taverna, repousavam no chão seis homens. Todos mortos por sua lâmina. Apesar de estar de olhos bem abertos ela não via nada a sua volta. Não. Ela estava absorta em suas memórias. Memórias de outros tempos, quase que de outras vidas. 

Era estranho, mas em volta àquela destruição ela só conseguia lembrar-se de seu pai. Tenente-coronel do exercito e ex-membro da missão de paz do Brasil no Haiti, seu pai já tinha visto mais sangue e morte naqueles três meses de missão do que muitos homens em toda a sua vida. Ela lembrava especialmente de uma história em particular quando o comboio do seu pai foi atacado por um grupo de terroristas armados. Dez soldados contra trinta homens. Seu pai disse que teve medo e quase morreu. “Mas na hora agá”, lembrou-se ela “o instinto de sobrevivência do soldado assume e você luta para se manter vivo. Não tenho orgulho do que eu fiz, mas foi o que eu fiz que me possibilitou estar aqui hoje”. Caska nunca tinha entendido completamente àquelas palavras até agora.

Ela foi arrancada de seu transe quando ouviu o som da luta cessar na sala ao lado, o salão principal da taverna, agora convertida num verdadeiro abatedouro de homens. Lá dentro o homem que aprendeu a chamar de Rei e sua companheira de armas, que chamava de Bekka, estavam lutando. Só que sem o som das espadas se batendo e o grito dos homens, o silêncio parecia opressor. Ela sentiu a mão da espada tremer incontrolavelmente. Ela soltou o escudo e procurou segurar a mão que tremia. “Concentre-se, droga!” exclamou para si mesmo enquanto sentia as lágrimas rolarem pelo seu rosto. “Não é hora de bancar a fracote.” Reprimiu a si mesma. Por fim, após um momento que pareceu durar uma eternidade, ela abriu a porta que dava acesso ao salão principal.

A cena realmente não era o que ela esperava. Em pé, ao lado do balcão o homem que se chamava de Rei estava servindo dois copos de vinho. Ao seu lado, sentada no balcão e balançando as pernas como se estivesse num banco alto de uma praça, Bekka trazia um sorriso jovial no rosto, apensar do corte já enfaixado no braço direito. Os dois conversavam animadamente sobre alguma coisa. Em volta deles uma cena digna de devastação cataclísmica, como se um tornado, armado com uma dúzia de espadas afiadas tivesse girado várias vezes em torno da sala. Havia homens mortos por todos os lados e partes desses homens espalhados em todas as direções. Cadáveres destroçados, como num quebra-cabeças macabro se espalhavam por onde os olhos podiam alcançar. Bekka estava, assim como Caska, coberta de sangue. Mas o Rei não demonstrava nenhuma mancha de sangue em nenhuma parte do seu corpo. Mesmo o sangue dos mortos parecia temer o contato com aquele homem.

Caska passou pelo salão, esquivando das partes dos guerreiros no chão e sem dizer uma única palavra tomou a garrafa da mesa e verteu seu conteúdo o máximo que seu fôlego permitiu. Ela sentiu o líquido adocicado encher sua garganta de uma ardência insuportável e ela engasgou, cuspindo uma golada de vinho temperado no chão. Ela tossiu e resignada, tentou de novo. Aguentou mais alguns goles antes do mesmo efeito. Quando foi tentar pela terceira vez a mão de Bekka a segurou.

— Alguma coisa errada? Você foi ferida em algum lugar? – perguntou Bekka, desmanchando o seu semblante despreocupado e pondo-se a amparar Caska.

— Alguma coisa errada? Alguma coisa errada? Você acha? Alguma coisa? – disse a menina escalonando a voz a cada repetição da frase até quase gritar – Não... Claro que não... Eu só estou num mundo maluco, que mais parece uma cópia gore de Game of Thrones, onde um monte de gente que eu não me conheço tentou me matar hoje, não faz nem dez minutos! E agora esse monte de gente que eu não conheço, e que não me conhecia também, está morta. E eu estou coberta do sangue deles... Não... Tá tudo ótimo! Suave na nave! – respondeu a menina com sarcasmo e frustração na voz.

Bekka olhou para a menina com os olhos cheios de piedade e uma pontada de impotência. Ela também tinha passado por isso, quando se perdeu dos amigos na floresta e foi encontrada pelo Rei. Ela lembrou-se do vazio de estar naquele mundo. De tudo o que tinha feito. De uma hora para outra o sentimento de vitória foi substituído por um grande vazio, uma mágoa, uma melancolia sem fim. Anos de busca vazia e lutas sem sentido a tinham empurrado para aquele momento. Ela olhou suplicante para o Rei que terminava de beber seu copo. Ele olhou de volta, e seu semblante desanuviou um pouco.

— Eu sei que não está tudo bem – disse ele pondo a mão sobre o ombro de Caska e apertando com firmeza suave. A menina sentiu o corpo afrouxar e a pulsação diminuir. Não tinha como saber o quanto daquilo era o toque do Rei ou era o efeito da bebida. – Eu me lembro da minha primeira vez aqui. E não foi nada fácil. Eu não queria que nenhuma de vocês passasse por isso. Mas era... Quero dizer, foi necessário. As regras deste mundo são simples e cruéis. É matar ou ser morto. Você pode ser a bota que esmaga ou o corpo no chão que é esmagado. Eu não tenho ilusões românticas do que eu sou ou do que eu fiz. Participei de uma revolução. Matei pessoas. Participei de saques. Queimei vilas e até pior – seu semblante tornou-se especialmente sombrio – até mesmo tinha perdido as esperanças de um dia ter uma vida normal de novo. Até que eu encontrei vocês. Vocês são os meus pontos de apoio e eu sou o apoio de vocês. Vocês são as primeiras peças do quebra-cabeças que vai nos levar para casa. Somos um time. Eu sei disso... Eu tenho que acreditar nisso. – ele virou para Caska, olhando fundo em seus olhos – Eu preciso que acreditar nisso. Eu sei que não é fácil. Mas eu garanto... Fica mais fácil com o tempo.

— Embora separados... – começou Bekka, finalmente rompendo o silêncio e estendendo a mão para frente. O Rei foi o primeiro a cobrir a sua mão com a dele, seguido de Caska.

— Nossos corações serão um só. – recitou o Rei, num tom solene e apaixonado.

— É isso que é ser um lorde de ferro – respondeu Caska, completando o mote do grupo.

— É tudo muito tocante... – disse a voz vinda de trás de uma das mesas viradas do salão. Um soldado remanescente se levantava com dificuldade, uma das mãos cobrindo a extensa ferida profunda no lado esquerdo do abdômen. Não era uma ferida qualquer: um golpe daqueles, se não mata de primeira, condena à morte mais cedo ou mais tarde. E a julgar pela palidez do homem, a sua hora estava para chegar a qualquer momento. Seu rosto estava pálido e banhado de suor. – É uma pena que nenhum dos três vai viver o bastante para comemorar essa vitória.

Ele puxou de dentro do casaco uma esfera de metal compacta, do tamanho de uma maçã madura, feita de uma cobertura que lembrava um mosaico de peças encaixadas. Ele mostrou a esfera como se fosse um amuleto de terror e apertou uma pequena reentrância em um de seus polos. A esfera iluminou-se e começou a girar, saindo da mão do soldado moribundo, flutuando pouco acima de sua cabeça.

Caska fez menção de mover-se, entretanto o Rei foi mais rápido protegendo a frente da menina. Instintivamente Bekka buscou proteção ás costas do homenzarrão e seu corpanzil. Dos três ele parecia ser o único a ter ideia do que estavam enfrentando.

— É isso mesmo, “Rei”... uma esfera devoradora. Vai matar tudo aqui dentro. Eu e vocês. Era para ser usado naquela mensalina que você chama de rainha, mas na falta dela serve o seu consorte. Espero ver você no inferno seu filho da...

Infelizmente o soldado não pode completar o seu raciocínio. O Rei sacou sua espada e com uma rápida passada de mão em sua lâmina ela irrompeu em luz como se estivesse carregando um relâmpago vivo em seu interior. O guerreiro girou a lâmina para frente e um arco de energia voou na direção do soldado moribundo, acertando a esfera.

Sem aviso esfera explodiu, liberando de seu ponto central uma centena de correntes farpadas que se espalharam em todas as direções, girando, cortando e moendo tudo em seu caminho. As correntes o envolveram e o moeram tão rápido que tudo terminou num piscar doloroso de olhos. Depois suas correntes voltaram ao se ponto inicial, arrastando tudo que tinham se fixado no caminho. A esfera caiu inerte no chão, em meio aos restos ensanguentados do soldado e de fragmentos de madeira e pedra, capturados pelo raio de ação da corrente.

Silenciosamente o Rei foi até a esfera. Inspecionou a peça com cuidado e a colocou numa sacola preta, que depois amarrou no cinto. Ele olhou para a sua espada, cuja lâmina estava coberta de rachaduras e pontos de pressão. Ela estava para se romper a qualquer momento.

— Adeus, velha amiga – disse ele depositando a espada no chão. Mesmo com todo o cuidado a espada se fragmentou como se fosse feita de cristal delicado ao tocar o chão.  – Esse é o preço para usar o “Kaminari”.

— Cara, o que é que você fez? Tu disparou uma rajada de energia pela tua espada? Que da hora! Pode me ensinar como fazer isso? – perguntou Caska, subitamente esquecendo-se de tudo o que tinha visto e vivido até ali.

— Eu posso tentar... – disse o rei se preparando para sair. – Mas temos que tomar banho primeiro. Vamos, eu acho que tem um riacho naqueles lados. Podemos usar os cavalos dos soldados de Amag. Eles não vão mais precisar mesmo.

Do lado de fora, escondido nas moitas o taverneiro contava as moedas que o Rei tinha lhe dado antes da chegada de Caska ao salão principal. Dinheiro o bastante para reconstruir sua taverna ou mesmo para mudar de vida. Ele agradeceu a sua boa sorte e pôs-se a caminho de casa. Afinal e contas a sua esposa não ia acreditar no que tinha acontecido...


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