Os Lordes de Ferro escrita por valberto


Capítulo 13
Capítulo 13 – Chuva




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Sara acordou com a goteira pingando sobre a sua cabeça. Ela olhou para a escuridão do quarto de estalagem e perscrutou a escuridão. Tudo o que conseguiu foi ouvir o ronco de Yhago, que dormia pesadamente alguns metros dali. O braseiro que tinham acendido antes de dormir agora bruxuleava fraquinho, incapaz de aquecer o ambiente, muito menos dar qualquer iluminação. Ela bateu as mãos pelo corpo em busca do celular e lembrou-se que não via o aparelho a semanas, desde que tinha ido parar naquele mundo medieval maluco. Estranhamente se deu conta que não sentia tanta falta assim do aparelho. Ela foi até o braseiro e o atiçou um pouco. Pegou uma vareta e com ela acendeu a vela que ficava ao lado do braseiro. A luz da chama tremeluziu tímida enquanto ela inspecionava o teto sobre sua cabeça. Telhas velhas e mal encaixadas. A goteira pingava exatamente onde ela tinha deixado o travesseiro. Ela bufou de frustração e afastou a cama o bastante para evitar a goteira. Depois voltou a deitar, mas já era tarde. O sono já havia ido embora.

Ela se levantou e foi até a janela do quarto e observou o mundo por fora dos grossos vidros opacos. Não sabia dizer se eram opacos naturalmente ou se era apenas sujeira acumulada. Ela olhou a rua lá embaixo, vazia a esta hora, iluminada apenas com o discreto brilho de algumas luminárias de óleo da frente de algumas casas. A chuva caía torrencialmente, com rajadas de vento em todas as direções, fazendo não apenas as luminárias dançarem, mas jogando sombras ameaçadoras em todas as direções. A água da chuva também dançava, fazendo espirais de gotículas de chuva em meio a tempestade que caía sem dó. Tinha sido assim nos últimos dias. Uma chuva que fechava o tempo em questão de minutos e depois caía como se fosse um anuncio do dilúvio. Para depois cessar sem deixar rastros, a não ser tudo molhado e a lama nas estradas.

Ela forçou um pouco a janela e deixou a brisa fria da noite entrar. Sentiu um arrepio revigorante. Estava usando um camisolão, daqueles de filmes, que você usa junto com um chapéu pontudo e com uma bolinha felpuda na ponta. Dispensou o chapéu, mas mesmo sem um espelho perto podia se imaginar parecendo que tinha fugido do especial de natal de Charles Dickens.

Passou a recapitular tudo que tinha feito junto com o companheiro de viagens desde o episódio da ponte. Tinham chegado até Pedreiras. A cidade – se é que dava para chamar aquele amontoado de casas mal distribuído em ruas tortas, na beira de uma grande pedreira – não era diferente em sua essência de todas as cidades pequenas que conhecia. Tinha uma rua principal, que dava direto para um enorme templo dedicado aos doze divinos. Era o maior e mais alto prédio da região e também o mais bem cuidado. “duvido que tenha qualquer goteira na nave daquela igreja”, pensou ela ao ouvir o tamborilar da goteira no piso de madeira. Em frente dele, do outro lado da praça, ficava o palácio do rei do lugar. Palácio era modo de dizer. Era um fortim, atarracado e compacto, como se tivesse sido feito pensando nos anões da Branca de Neve, com uma torre de tijolos vermelhos saindo de seu centro. E entre o templo e o palácio ficava a feira de Pedreiras. Foi lá onde ela e o seu companheiro gastaram parte de suas recompensas pelo bando da mão de ferro.

Ela tinha vendido boa parte dos equipamentos que tinha pego com o bando e agora tinha a sua disposição uma armadura que lhe daria chances reais de sobreviver a uma batalha. Também comprou novas armas e diversos equipamentos.

Ela olhou para o seu colega de armas que dormia todo torto em cima de uma cama, roncando como se fosse um urso hibernando. “Yhago era uma pessoa boa e doce” pensou ela enquanto se lembrava de forma protetora e galhofeira que o rapaz sempre se referia a ela. Era o companheiro de viagens ideal e melhor de tudo: não apenas parecia conhecer tudo sobre aquele mundo como também era muito conhecido na cidade. Praticamente todos os comerciantes da feira o chamavam pelo nome, ofertando alguma coisa. Era como caminhar ao lado de uma mini-celebridade, como um deputado federal, no meio de uma feira regional.  Ele tinha confidenciado a ela que já estava naquele mundo a cerca de seis ou cinco anos.

— Não tem como ter certeza mesmo – as palavras do rapaz ecoaram na mente de Sara enquanto ela olhava a chuva cair lá em baixo – Mas eu descobri rápido que minha habilidade como praticante de swordplay poderia ser o meu ganha-pão por aqui. Desde então eu vago por aí como um “cavaleiro errante”.

“Cinco ou seis anos”, pensou a menina agarrando os joelhos como se fosse um ursinho de pelúcia. Só então ela se deu conta: se Yhago estava ali outros amigos poderiam estar. Quem sabe o Cronos, ou o Loki... pelos deuses, até mesmo seu irmão poderia estar perdido naquele lugar. Ela sentiu uma verdadeira agonia em pensar que o seu irmão pudesse estar ali. Do jeito que ele era espevitado, poderia ter se metido em mais confusões que poderia dar conta de sair.

Ela suspirou e a chuva cessou imediatamente, como se tivesse caído tudo o que tinha para cair. Sem o barulho da chuva o ronco de Yhago e o pinga-pinga da goteira pareciam martelar na sua cabeça. Ela pensou em acordar o colega de quarto para conversar, mas não lhe parecia justo acordar o amigo só porque ela estava cheia de preocupações.

Ela então vestiu um par de calças de algodão reforçado por baixo do camisolão e calçou as botas de couro preto. Quem sabe se desse uma caminhadinha pelas ruas poderia se sentir melhor? Ela pegou uma espada média que tinha adquirido na feira e colocou na bainha ás suas costas. Na bota colocou a adaga que tinha pego do mago do bando da mão de ferro. Por algum motivo achava que aquela adaga tinha alguma coisa de especial e não conseguiu se desfazer dela, embora tivesse visto modelos bem melhores na praça.

A menina resolveu sair pela janela. Afinal de contas a essa hora a estalagem estava fechada e só ia reabrir as portas pela manhã. Com desenvoltura e condicionamento físico que vinha ganhando nos últimos dias pelas viagens e treinos com Yhago ela não teve problemas de saltar pela janela, escalando a parede da hospedaria até o chão uns três metros e meio lá embaixo. Ela pousou sobre a calçada de pedra, ainda úmida da última chuva e pôs-se a andar pelas ruas da cidade. Atravessou as ruas apreciando o clima frio e recém-molhado, curtindo a solidão. “Era bom estar sozinha um pouco”, pensou ela. Passou pela rua dos sapateiros e virou no beco das fivelas. Era engraçado que as ruas indicavam o trabalho dos artesãos ou lojas. O que aconteceria se mais pessoas quisessem trabalhar com fivelas? O beco das fivelas era uma ruela bem apertada que mal cabiam as quatro lojas que contou pelo caminho. Será que iam mudar o nome se elas fossem para outra rua? Ela saiu do beco das fivelas e passou pelo quarteirão do aço. Ferreiros e forjas para todos os lados. Depois avançou mais um pouco saindo nua rua principal. Evitou seguir na direção do castelo e buscou outra rota, chegando a uma área mais descampada, mais perto da estrada que dava na pedreira. Bem ali começava a rua da ladeira. Não achou que fosse uma boa ideia descer por ela, já que o chão estava coberto por uma espessa camada de barro fino, escorregadio e pegajoso. Deu meia volta e seguiu de volta para a praça da feira que estava abandonada a esta hora.

Foi quando ouviu o grito vindo das barracas fechadas. Do meio delas emergiu uma mulher suja e de aparência desesperada, com a barra do vestido azul converto de lama grossa e marrom. Ela corria desesperadamente, tropeçando nas próprias pernas e nas irregularidades do terreno. Atrás dela quatro homens vestindo túnicas da guarda da cidade também emergiram da feira silenciosa, e todos também cambaleantes. Mas ao contrário da mulher que cambaleava de pavor, os homens vinham movidos ao álcool barato do vinho. Um deles ainda carregava um garrafão pela metade.

A mulher caiu a poucos metros de Sara e se arrastou em direção da menina suplicando por ajuda.

— Por favor senhora, tenha piedade e me proteja, por favor!

Sara viu a boca entreaberta da mulher coberta por sangue. O seu olho esquerdo estava roxo e fechado e várias escoriações ficaram visíveis em seus braços àquela distância. Mas a mulher não teve tempo de dizer mais nada. Um dos guardas finalmente a alcançou e, ignorando sara completamente, pegou a mulher pelos cabelos e voltou na direção das barracas, puxando-a violentamente.

— Escute aqui vadia – vociferou um dos homens que segurava uma corda nas mãos. – se eu sentir seus dentes em mim novamente eu vou voltar para casa com eles no meu bolso.

O homem preparou um nó de forca e passou o laço pelo pescoço da mulher, arrastando-a pela lama como se fosse um cachorro.

Sara estava atônita. Seu primeiro pensamento foi correr e buscar ajuda com Yhago.  Mas, na hora que conseguisse buscar o amigo, seja lá o que estivesse para acontecer já teria acontecido. A mulher já teria sofrido abuso nas mãos daqueles homens ou até pior. Puxou o camisolão até a altura da cintura e deu um nó decidido.  

Os homens amarraram as mãos e pernas na mulher para forçá-la fica de joelhos na lama. Então jogaram a corda por cima de uma viga de madeira de uma as barracas e esticaram a corda. A mulher se viu semi-enforcada, com os pés esticados, tentando vencer a tensão no seu pescoço. Ela tossiu quando um dos homens deu-lhe um soco na boca do estômago. Esse mesmo cara foi para de trás da mulher e começou a levantar o vestido dela.

— Arian, me dá teu charuto. Quero marcar as minhas iniciais no rabo desta potranca fugitiva para ela saber que não deve desobedecer os homens do Duque.  – o homem estendeu a mão e o colega dele que tinha metade de um charuto acesso na boa de uma boa tragada antes de passar o artefato a diante. O homem sorriu ao receber o charuto e deu uma bela tragada, atiçando ainda mais a brasa de sua ponta. A mulher se contorcia desesperadamente, antevendo a dor que estava por vir, tentando se livrar das cordas, mas tudo que conseguir era ficar ainda mais sufocada.

Um dos homens que estava com o garrafão de vinho fez menção de erguer a garrafa para beber dela quando foi agarrado pelo ombro. Ele ficou de frente para Sara tempo o bastante para sorrir abobadamente... Antes de seu rosto se contorcer numa careta de dor. Ele curvou-se para frente, agarrando as partes íntimas, que tinham acabado de receber uma joelhada de muay thai.  Sara o jogou para trás, usando uma força que ela mesma desconhecia.

Um dos outros homens sacou o que parecia um cassetete de metal e investiu contra a menina. Sara esquivou-se com facilidade e então, com a espada, golpeou perto do cotovelo. O golpe partiu o cotovelo do guarda, fazendo com que braço pendesse para frente num ângulo impossível. Sara passou para as costas do soldado e com um golpe apenas acertou as duas pernas do homem, por trás dos joelhos, com o lado cego da espada. Dois dos guardas já tinham sido eliminados.

 O terceiro, que segurava o charuto berrou uma imprecação sacando a sua espada e o quarto guarda fez o mesmo. Os dois avançaram ao mesmo tempo contra Sara, sendo que o outro guarda chegou na menina primeiro. Sara não se abalou com o sabre curvado do homem e com um movimento rápido, chutou lama espessa e grudenta na cada dele. Sara aproveitou a vantagem e desarmou o homem com uma pancada seca e depois o levou ao chão com outra joelhada certeira.

O homem do charuto deteve o seu avanço e assumiu uma posição estratégica, balançando a cabeça como se pudesse cancelar os efeitos do vinho barato que tinha bebido a noite toda. Ele começou a contornar sara pelo lado das barracas, usando as mesmas como proteção caso a menina tentasse cegá-lo com barro. Com três de seus companheiros ao chão o homem não cometeria o erro de subestimar a menina e lutaria com o máximo de suas forças. A chuva voltou a cair, dessa vez com mais intensidade ainda. A lama se liquefez aos pés de Sara e parecia que ela estava caminhando sobre óleo. O homem percebeu isso  e avançou contra  a menina, deslizando sobre a lama lisa como se fosse um patinador sobre gelo. Sara esquivou do ataque, mas teve sua espada arrancada de sua mão. O homem deslizou um pouco mais, ainda com o charuto na boca.

— Eu ia me divertir apenas com aquela mulher, mas parece que eu ganhei a sorte grande. Quando terminar com você, eu vou cegar seus olhos e arrancar sua língua. Depois eu vou te vender para aqueles mercadores de Águas Claras. – disse ele com os dentes amarelados mordendo firmemente o charuto.  

Sara abaixou-se e pegou a adaga, segurando-a com o máximo de firmeza que podia. O homem deslizou novamente e Sara tentou boquear o ataque com a peça de metal escura e fria. O golpe estilhaçou a adaga jogando a menina para trás, batendo suas costas numa barraca vazia. O homem deslizou novamente. Sara olhou a mão ferida e sentiu uma pressão crescendo dentro dela. Como a pressão que sentira antes com Yhago  com o maltrapilho da ponte. Mas a pressão vinha de dentro dela, como se fosse explodir. Confusa ela estimou a mão para dentro e gritou, mas nenhum som saiu de sua garganta.  Uma onda de choque invisível projetou-se para frente, arremetendo o homem para trás como se ele fosse um pedaço de papel colhido por uma ventania. Sara pegou sua espada da lama e soltou a mulher.

Yhago acordou com a luz do sol acossando o seu rosto. Ele sentou-se na cama, coçando o queixo. Ele se levantou e foi até a janela. “Sara deve ter deixando aberta”, pensou ele. Ele olhou do lado de fora e viu o movimento da feira e de seus comerciantes começar. Sentiu a barriga avisar que já devia ser a hora do café da manhã. A ideia de bacon, ovos e café lhe encheu a boca de água.

— Vamos Sara, hora de levantar! – disse o gigante arrancando o lençol que cobria a cama da menina. Mas logo depois ele se envergonhou de ter feito isso. Deitadas na cama, sara e uma mulher que ele não conhecia jaziam nuas, dormindo agarradas como amantes. Ambas molhadas... Yhago não sabia dizer se era água da chuva ou suor. Ele recolocou os lençóis quando percebeu que a menina estava para despertar.

Apressadamente ele desceu as escadas para o café. E não se falava de outra coisa lá embaixo a não ser dos estragos da chuva. Bem, um burburinho falava de uma bruxa que surrou quatro guardas bêbados, mas ele tinha outras coisas para pensar.


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