Os Lordes de Ferro escrita por valberto


Capítulo 10
Capítulo 10 - O desafio do maltrapilho




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/772603/chapter/10

— Como assim, só isso? – Yhago esmurrou a mesa do secretario do conselheiro real de Santa Ajora, que apesar do suor escorrendo pela testa lisa, fazia o possível para se mantiver impassível.

— São as regras milorde cavaleiro. Não as faço, eu só as aplico. Suplico que o senhor possa entender minha humilde posição. Eu não tenho nem meios para pagar mais e nem para sobreviver a uma investida sua. Tenho certeza também que minha mesa não adicionaria nenhum cacetinho à sua recompensa. – disse o homem, tentando parecer calmo. Yhago sentiu a mão de Sara em seu ombro. Para alívio de todos, o gigante acalmou-se.

 Já do lado de fora do escritório Yhago entregou uma bolsa de couro com as moedas que achava que eram direito da sua colega de viagens.

— Tem 500 paus aí dentro, em moedas de cinco e de dez. É uma grana razoável. Dá para passar quase dois meses hospedado numa estalagem de qualidade, comendo do bom e do melhor. O que você pretende fazer com a sua parte? – Inquiriu o rapaz enquanto os dois caminhavam pelas ruas centrais das terras de Santa Ajora.

— Eu ainda não sei. Todos os meus instintos dizem que eu deveria guardar essa grana para emergências. Tipo um banco ou caixa forte. Mas será que tem isso por aqui? – perguntou a menina, segurando uma reluzente moeda de cinco paus nas mãos.

— Bom, existem bancos sim. Eles trabalham com cartas de crédito ao portador que podem ser trocadas em suas filiais. Mas as taxas são um abuso. Beirando 20%. Quase agiotagem, se você me perguntar. Mas acho que podemos achar um uso melhor para o seu dinheiro. Você poderia se equipar melhor. Seu gear não é melhor do que o dos bandidos que eu costumo caçar por aí.

— O que tem de errado no meu equipamento? – perguntou sara fingindo indignação.

— Nada... – disse Yhago mastigando uma porção de amendoim torrado. – Nada se você quer ser uma amadora para sempre. Veja sua espada. Olhe bem para o fio da lâmina dela. Toda rachada e cheia de falhas... – Sara sacou a lâmina e olhou com atenção. Não conseguia ver as rachaduras que o amigo lhe dizia, mas viu alguns dentinhos e imperfeições na lâmina da espada.

— Isso aqui é assim tão sério? – perguntou Sara, incrédula.

— Tudo o que você não quer é ficar sem arma no meio de uma luta de vida e morte. Veja minha adaga, por exemplo: é um modelo templário, peça única, com sulco central e espiga oculta, com cabo de olmo coberto com couro, e pomo do mesmo material da lâmina.

Sara olhou a adaga do companheiro com atenção e então passou a perceber do que ele estava falando. A espada dela era quase um fiat uno bem usado, enquanto a adaga de Yhago parecia um carro de luxo recém saído da concessionária.

— E você conhece algum lugar onde eu possa comprar equipamento, ou como você mesmo diz, gear “mais interessante”?- perguntou Sara.

— Para sua sorte madame, eu conheço um bom vendedor de gear aqui perto. Ele deve ter umas boas ofertas para nós. Podemos trocar quase tudo o que você tem e com alguma sorte você ainda vai ter dinheiro para uns dois dias de estalagem de boa qualidade.

Os dois se encaminharam para Pedreiras, uma cidade perto da capital de Santa Ajora, cuja feira era famosa. Não tinham andado mais de duas horas quando encontraram uma fila de carroças para atravessar uma ponte. Quatro carroções e duas carroças aguardavam a vez de passar, embora não parecesse haver qualquer barreira na ponte. Do outro lado, sentado sob a sombra de uma frondosa árvore descansava um jovem de aparência maltrapilha, cercado por uma dúzia de espadas fincadas no chão a sua volta.

— Oh meu senhor... O que é que esta havendo aí? – perguntou Yhago ao primeiro carroceiro que encontrou.

— Ah cavaleiro... Aquele rufião ali do outro lado do rio está desafiando qualquer um que queira atravessar a ponte. Qualquer um que ponha os pés na ponte, independente se porta ou não uma espada, é desafiado para um duelo de vida ou morte. Se perder o duelo, deixa sua espada... E normalmente a sua vida também. Está vendo aquelas duas espadas ali na frente? As mais do lado esquerdo? Foram de dois jovens aventureiros que tentaram a sorte. Os corpos dos dois desceram o rio e a essa altura já devem ter chegado no mar de água doce. 

— Dizem que ele já está aí a uma semana. Ah, pelos doze divinos, eu tenho um carregamento de repolhos para entregas na feira de Pedreiras. Não posso me dar ao luxo de ficar aqui até que este rapaz se canse de desafiar pessoas. – reclamou outro,  com um sorriso de poucos dentes na boca. – E também não tenho como dar a volta. A ponte mais próxima me geraria um desvio de dois dias!

— Dois dias para ir de Santa Ajora até Pedreiras? – exclamou uma mulher gorda, de cabelos vermelhos  finamente trançados.

—Parece que vamos ter que agir... – disse Yhago. – Eu vou na frente e desafio este cara. Se ele começar a dar trabalho você o acerta com essas suas flechas. Você sabe usar o arco?

— Não seria trapaça? – perguntou Sara, muito mais receosa por sua vida do que por qualquer outra coisa. – Além do mais, será que não poderíamos simplesmente comprar a nossa passagem?

— Eu duvido que ele nos deixe passar, nem que déssemos um zilhão de paus nele. – Yhago não segurou um risinho, e depois endureceu o rosto e continuou – Além do quê, olhe essas pessoas. Tem um monte de gente cuja vida e negócios foram afetados apenas porque algum idiota quer se mostrar como o maior espadachim do mundo! Eu vou na frente. Pegue posição no lado leste da margem. Ali o vento não vai atrapalhar o seu disparo. Mas fique abaixada. Se o cara vir você pode perder a esportiva. Estamos de acordo? – Yhago não esperou a resposta da colega e pôs-se em marcha em direção à ponte. Sara não sabia o que fazer e tentou seguir para o leste, aproveitando a linha de mata ciliar em volta do rio. Esperava alcançar a posição indicada pelo colega, embora por dentro estivesse rezando para não ter que disparar aquele arco. Sempre que usava arco nos treinos era uma verdadeira negação. Tinha medo de errar a flechada ou ainda pior, de acertar o colega.

Yhago por sua vez também temia por sua vida. Uma coisa era enfrentar ladrões de estrada e saqueadores covardes desde que chegara a este mundo pseudo-medieval. Bastava projetar seu espírito de luta, como ele mesmo costumava dizer, para manter os inimigos longe, alguns desistiam sem ao menos lutar. Mas Yhago sentia que aquele sujeito não era um amador. Não deu mais do que dois passos ponte adentro que o espadachim maltrapilho levantar, agarra uma das espadas em volta e correr para a beira da ponte. Mas antes mesmo dele chega lá Yhago sentiu uma pressão firme sobre seu corpo. O espadachim estava projetando o seu espírito de luta! Yhago não se intimidou e manteve o passo firme. Do outro lado da ponte o rapaz parou e sorriu por entre as mechas do cabelo sujo e descuidado.

— Eu sou o dono desta ponte. – gritou o maltrapilho. – Se você ou qualquer um quiser passar vai ter de pagar o preço. Derrotar-me num duelo. Se você vence, pode passar. Se eu venço, eu tomo a sua vida e sua espada.

— Acho justo. Afinal de contas eu não fui com a sua cara e me daria grande prazer mandar você comer grama pela raiz – bravatou Yhago, sacando a sua espada longa.

Do outro lado do rio Sara estava atônita. Tinha sentido a pressão espiritual de Yhago lá na taverna, mas não era nada comparado ao que tinha sentido ali. Sentia um aperto no coração e muito temor em ao mesmo apontar o arco na direção dos dois.

Os dois contentores ficaram a meia distância, se estudando. O maltrapilho ergueu alta a espada, segurando-a com as duas mãos. Posta del falconi. Yhago optou por uma posta media, espada apontada para a garganta do maltrapilho. O oponente sorriu e desferiu o golpe de baixo para cima, num movimento tão rápido que Sara mal pode acompanhar. Por um momento ela sentiu-se grata por não ser ela a enfrentar aquele homem: aquele golpe a teria partido em duas. Yhago avançou um passo para o lado e girou a lâmina da espada, golpeando de baixo para cima, mirando o pulso do maltrapilho. Um contra golpe que teria derrotado um oponente menos experiente. Mas não o maltrapilho. Ele tirou uma das mãos da espada, segurando a espada pela parte de baixo de seu cabo, girando a espada para a direita num arco. Era o contra golpe do contra golpe! Yhago saltou para trás, evitando a lâmina mortal que passou a centímetros de seu rosto.

— Mas que coisa maravilhosa! – berrou o maltrapilho quase em êxtase, numa risada esganiçada que faria o dublador do coringa gelar de medo – Você é o primeiro homem, em meses, que sobrevive ao meu primeiro golpe. Será que vai ter tanta sorte contra os outros?

— Por que você não experimenta? – respondeu Yhago recuperando o fôlego.

Os dois contentores puseram suas espadas em guarda, prontos para nova leva de ataques. O maltrapilho avançou, fintando para a esquerda, com um golpe baixo, visando a perna de Yhago. Para a sua surpesa, o rapaz que estava de guarda meio alta simplesmente puxou o pé direito para trás, apoiando-se no esquerdo, evitando o ataque mortal e contra golpeando com um ataque de cima para baixo. O golpe rasgou as costas da folgada camisa do maltrapilho, sem no entanto, infligir-lhe nenhum dano real.

— Minha camisa! – disse o maltrapilho, avaliando os danos que sua rota vestimenta tinha sofrido – Esta camisa pertenceu a um jovem e orgulhoso membro das casas mais nobres do reino das Águas Claras! Eu o matei com um golpe limpo nas pernas para não estragar a camisa. Olha o que você fez! – disse o maltrapilho como se escarnecesse cada palavra.

Ele passou a adotar uma postura mais ofensiva, repousando a espada sobre o ombro esquerdo. O golpe veio veloz, mirando a lateral da cabeça de Yhago. Mas o jovem bloqueou o ataque disferindo uma estocada a altura do rosto do maltrapilho. A espada de Yhago rasgou a lateral do rosto do oponente, da metade de seu nariz até perto da orelha, num corte longo, assimétrico e profundo.  O andarilho recuou dois passos longos e passou a mão sobre o rosto ferido, avaliando os ferimentos que tinha recebido. O sangue quente esvaía em profusão pelo corte, manchando os eu rosto como uma macabra pintura de guerra.

— Meu sangue... eu nunca tinha visto o meu sangue antes... – ele balbuciava junto com palavras de uma língua que Yhago desconhecia. – Ninguém nunca me bateu assim. Nem meu pai. Nem minha mãe. Nem os doze divinos!

Ele voltou-se para Yhago desferindo vários golpes a esmo. Não havia técnica ou refinamento, apenas força bruta alimentada por muita raiva. Yhago defendeu-se como pode, esperando uma brecha para contra atacar quando sentiu um ardor nos olhos e um gosto salgado na boca. O maltrapilho tinha jogado alguma coisa no seu rosto. Um pó. A ardência inicial diminuiu, assim como a visão de Yhago. Ele pôs a mão no rosto, enquanto esticava a espada para se proteger dos ataques. Um golpe a altura do braço fez com que ele soltasse a espada enquanto ele ouvia o gargalhar do maltrapilho, cada vez mais perto.

Então ele ouviu um zumbido veloz passar perto de sua cabeça. Depois mais um e mais outro. Estaria o maltrapilho brincando com ele antes de mata-lo? Desde que chegara a este mundo estranho era a primeira vez que Yhago sentia-se desamparado e com medo. Então ele ouviu um gorgolejar abafado, e logo depois um baque seco sobre a ponte de pedra. Segundos depois ele sentiu um toque delicado sobre o seu ombro esquerdo.

— Calma, grandão. – a voz de Sara vinha com delicadeza firme – O sujeito ali já era. Vem comigo que temos que limpar esses seus olhos. Tá todo remelento, parecendo criança.

Sara cuidou de Yhago da melhor forma que pode e explicou que depois que viu a trapaça do outro, resolveu agir. Ela disparou cinco vezes ou mais com seu arco, mas apenas três flechadas boas atingiram o maltrapilho. Uma no pescoço fez com que ele caísse no chão, sufocando no próprio sangue. Mas a vitória tinha custando algumas feridas na menina: a corda do arco, manipulada àquela rapidez e sem luvas havia produzido cortes dolorosos nas dobras dos dedos.

— Ainda bem que você está comigo – respondeu Yhago. – Mas vamos nos apressar. Daqui até Pedreiras temos ainda um longo caminho.

Os mercadores não tiveram muita pena do maltrapilho sem nome e o jogaram no rio, da mesma forma que ele tinha feito com suas vítimas anteriores. Mas nenhuma das espadas que tinham ficado em baixo da árvore foram tocadas. Um monumento sem nome à loucura da espada.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Os Lordes de Ferro" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.