Mais que o Tempo escrita por Le petit prince egoiste


Capítulo 7
Sete


Notas iniciais do capítulo

Antes que eu soubesse, já estava com você
Quando eu te vi, não foi fácil entender
Demorou pra ver, demorou pra ser
Mas agora (mas agora)
É



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No dia seguinte, um sábado, a livraria estava fechada e Délia aproveitou que Pietro se recuperara para convidá-lo a vir tomar café em sua casa. Então, lá estavam os quatro reunidos. Vinícius viu o convidado e fez uma carranca. Pelo visto, a criança prodígio achava o amigo da família um rapaz pedante.

“Dá pra você ajeitar essa sua cara?” Délia ralhou.         

“É a única que eu tenho.” E cruzou os braços, amuado.

“Vai já pro quarto. Agora!”

“Mãe!”

“Não estou brincando, Vinícius! Agora!”

O menino fez barulho de propósito ao sair de mesa e foi para o quarto batendo o pé. Ela bufou e sacudiu a cabeça em negativa.

“Este menino é impossível. Desculpe, Pê. Não sabemos o que dá nele toda vez que te vê. Ele não é assim. Já falei pra ele parar com essa birra.”

“Infelizmente acho que ele herdou o gênio forte dos pais” Comentou Vitor.

“Não tem problema, gente. Crianças são assim.”

Délia, mesmo constrangida, sorriu para o amigo, grata pela compreensão. Vitor observou a luz fugitiva que vinha da janela para o meio da mesa de jantar. A esposa notou o movimento e leu o olhar do marido.

“Um dia lindo hoje”

“E não é? Que tal se a gente correr hoje, Pê?”

“Correr?” Pietro cansou só de se imaginar numa corrida.

Délia riu.

“De moto, bobo. Temos duas motos aqui em casa. Um terreno aqui próximo é muito bom pra treinar. Que tal? Você precisa se exercitar. Pra não ter mais esses desmaios, sabia? Vamos!”

“Tá, tudo bem” Pietro revirou os olhos, cínico.

O celular de Délia começou a tocar na sala. Ela se levantou num instante para atender e daí em diante só se ouvia sua voz abafada. Quando retornou, os três terminaram o café rapidamente e decidiram partir enquanto o tempo estava bom - a previsão indicava pancadas de chuva. Vitor abriu a pequena garagem anexa a casa e tirou de lá as duas motos. Pietro ficou com a moto de Vitor. Délia levou Vinícius para ficar com Giovani enquanto eles saíam e, em seguida, subiu na sua moto, não sem antes colocar o capacete.

“Essa é boa. Não sabia que vocês pilotavam.”

“Eu amo andar de moto! Foi assim que conheci o Vitor.”

Délia deu a partida. Pietro os seguiu. As imagens do Vale do Café se tornaram ágeis e bem mais empolgantes para Vitor e Délia. Pietro havia perdido um pouco da prática e, de início, sentiu tontura. Mas a adrenalina do passeio não demorou a tomar conta de si e ele se deixou levar. Uma boa mudança começava em experimentar novas sensações.

“Agora vamos entrar na estrada velha, Pê!” Délia gritou para ele. Vitor ia no banco do passageiro, sorrindo de orelha a orelha. Ele tinha orgulho de ver a esposa tão empolgada em pilotar.

De fato, na próxima curva, os dois entraram numa estrada de terra batida, e daí a verdadeira aventura começou. Délia inventou uma competição de quem chegava primeiro no galpão abandonado. É claro que ela venceu, pelo tempo de experiência. Aquela parte da viagem agradava Pietro. Ele era um homem da tranquilidade, portanto preferia a vertigem do campo que a da cidade, e as árvores em pleno movimento junto à moto lhe pareciam uma pintura impressionista.

Quando chegaram no galpão e tiraram o capacete, Pietro riu do seu reflexo. Os cabelos bagunçados, o rosto amarrotado. Délia se encontrava tão feliz, livre e realizada! Vitor se sentia contente de terem um vizinho que aceitava viver aventuras. Ele mesmo, no começo, era receoso quanto a isso, mas aprendeu a se permitir. Giovani era cauteloso, embora fosse um bom vizinho. Então, a chegada de Pietro alegrava a vida dos dois.

“E aí, o que achou?”

“Achei fantástico! Há muito tempo não fazia isso!”

Délia concordou.

“Eu adoro a liberdade de estar numa moto. Tudo passa pelos seus olhos, mas ao mesmo tempo, nada. Fica tudo tão indefinido. A única coisa que faz sentido é você e sua moto.”

“Agora preciso descansar um pouco” Ele sentou-se no chão, buscando fôlego.

“A gente vem aqui quando pode. Ajuda a espairecer. Então, você leu o livro?”

“Deixei em casa, mas li quando fiquei de cama. É um livro excelente.”

 “O Pacifista ou o Orgulho e Paixão?

“Deixei O Pacifista pra depois. E li o Orgulho e Paixão. São vários capítulos e cada um conta a história do ponto de vista de uma mulher. Agora você quer saber da parte que nos levou ao livro?”

Délia pulou de empolgação.

“Oh, sim! Eles aparecem no livro?”

“O que vocês dois estão aprontando?” Vitor ficou curioso.

“Nada, ué! Coisa de rato de biblioteca.”

“Vou dar uma caminhada na trilha.”

Assim que Vitor sumiu de vista, Pietro continuou.

“Então! Eles aparecem pouco. Nos capítulos de Mariana Benedito, irmã de Elisabeta. Ela se parece com você, sabia? Gosta de moto, se vestiu de homem pra correr e é melhor amiga do Luccino. Infelizmente, algumas páginas estão arrancadas ou muito desbotadas. Mas dá pra ter uma ideia geral da história.”

“Pietro! Será que eu sou a reencarnação da Mariana?”

“Só vou saber se encontrá-la no passado.”

“Isso é tão divertido e empolgante! O que você descobriu dos meninos?”

“O marido da Mariana se chamava Coronel Brandão. Adivinha? Vitor Brandão!”

Délia soltou um grito de empolgação.

“Ah meu Deus! Vitor!”

“De resto, só consegui entender que numa determinada parte da história, Brandão é transferido do quartel e só pode voltar com Mariana para o Vale do Café nos dias de folga.”

“Nossa! Uma pena que ela ficou longe do Luccino, hein?”

“Sim. Mas eles trocavam cartas.”

“Otávio fica no lugar dele?”

“Não. Um tal de Coronel Flávio.” 

 O diálogo foi interrompido pela chegada de Vitor da trilha. Délia correu para beijá-lo, o que o surpreendeu. Saber que o amor entre os dois provavelmente vinha de outras vidas lhe deixava com trejeitos românticos.

“Ora, ora! Minha linda esposa.”

Pietro adorava observá-los.

“Délia, que tal irmos? Vem uma nuvem de chuva por aí.”

“Ah, certo. Não podemos adoecer. Vamos, Pê?”

“Eu queria ficar mais um pouco. Posso alcançar vocês depois?”

“Tudo bem.”

O casal acenou em despedida e subiu na moto. Quando o barulho do motor enfim cessou, indicando que eles haviam sumido na estrada, Pietro observou de forma mais atenta a paisagem. Um local de vida selvagem, é claro, mas em algumas passagens, como na trilha, dava sinais de vestígios de presença humana. Não era de todo intocável. Ao olhar para trás, notou um galpão abandonado atrás de si e, curioso, resolveu explorá-lo. Boa parte da estrutura estava comprometida pelo tempo. Eram ruínas. Espantou-se ao perceber pequenos indícios de ferramentas mecânicas. Uma velha placa desbotada onde se lia “Reparos e...” com mais algumas frases ilegíveis. Em alguns pontos do galpão, a madeira caída cobria a terra e boa parte do telhado também cedera. Pietro pensou consigo mesmo que não era uma boa ideia permanecer ali.

Porém, um súbito pensamento passou pelo seu semblante. Dadas as evidências, aquela só podia ser... Ele não concluiu o raciocínio. A chuva anunciada havia começado e, assustado com as gotas pesadas em sua roupa, embrenhou-se para dentro do galpão buscando abrigo. Encontrou uma parte não muito longínqua onde o telhado permanecia. Lá, achou outro pedaço de madeira carcomida. Pelo que conseguiu ler, era uma placa: “Troco R...”

Sem sombra de dúvidas, aquelas eram as ruínas da oficina de Luccino.

Seu coração passou a palpitar. Era como a corda de um boneco. Bastou ele ter disparado para que o restante de seu corpo começasse a tremer. Naquele lugar, Luccino e Otávio se encontravam. E também era lá que Luccino trabalhava como mecânico, sua profissão deste tempo. As gotas da chuva alagavam seu corpo e ocultavam as lágrimas. Pietro mal conseguia respirar: sentia o peito ardendo, como se a emoção fosse uma mola encolhida, indo e voltando. Paralisado, mal enxergava o que havia em sua frente. Sua visão era borrada pela tontura das lembranças. Para cada parede, para cada pedaço abandonado da oficina, um fantasma lhe espreitava em silêncio. 

“Meu Luccino! Meu... Luccino!”

Chorando, sentou-se e colocou a cabeça em cima dos joelhos. Tremia de frio, mas se sentia quente pela surpresa. Era naquele lugar que, num passado, amava outro homem e que agora, como Pietro, se sentia mais em casa do que na realidade em que vivia. Ele queria desesperadamente sua casa de volta. Mas não a casa deste tempo. Tampouco a oficina, que era apenas uma lembrança do que fora. Queria ele... A sua casa...

“Cadê você, Luccino?” Disse, em desespero. Não conseguia se escutar, tampouco. Sua voz era mais loucura e menos som. A chuva calava o seu desespero.

Pietro soltava e puxava o ar. Tentou se levantar, porém se encontrava fraco. Era provável que desmaiasse de novo. Seus olhos deliravam. Ouviu passos que para ele eram os pés da água. Ouviu perguntas que para ele eram o som das gotas. No entanto, fora do seu eixo, não conseguiu distinguir o que era a silhueta que o tomou nos braços. Ele se deixou levar, pensando no abraço da morte.

Procurou abrir bem os olhos, para observar sua ceifadora com um pouco de lucidez. No entanto, viu que se encontrava nos braços de um homem. Ele falava algo. O temporal o abafava. Era Luccino? Era ele?

Pietro voltou a chorar, dizendo palavras desconexas entre seus soluços.

“Meu amor! Você veio! É você... É você, meu Luccino...”

Luccino o olhava com a expressão perdida. Pietro encontrou seus lábios com uma fome desesperada. Quando o beijou, enfim sentiu que estava em casa.  


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