Mais que o Tempo escrita por Le petit prince egoiste


Capítulo 17
Dezessete




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/772425/chapter/17

“Desse jeito, Pê. Sim. Aí. Isso. Assim, assim.”

“Fiz certo? É assim?”

“Pê...” Júlio soltou uma risada. “É com a mão, Pê... Isso, bem aí.”

Júlio e Pietro se encontravam na oficina, abraçados numa das paredes. Aproveitavam que ainda havia um pouco de sol e, para distrair Pê, Júlio demonstrava a ele a complicada arte de fazer animais de sombras. A mão de Pietro era dura demais.

“O que é isso, um pássaro?” Pietro perguntou, referindo-se a própria criação.

“Do jeito que você fez, tá mais pra morcego.”

“Ei!” Ele deu um soco leve nos ombros de Ju. “Você que é um péssimo professor.”

“Pê, você teve essa coragem?”

“Fazer o quê? Seus pássaros não são exatamente pássaros também.”

“Quando eu era criança, escrevi uma peça. E ela foi encenada com teatro de sombras. Foi a minha maior realização naquele ano.”

Pietro assentiu, orgulhoso.

“Eu tinha onze anos. Com a idade que você tem, não consegue fazer um pássaro. Você que parece que não teve infância, Pê!”

O rapaz se fez de ofendido.

“Ah, é? Eu vou te mostrar quem não teve infância!”

Pietro atacou Júlio com cócegas. Os dois começaram a rolar pelo chão da oficina, Júlio tendo uma crise de risos e Pietro vermelho de empolgação. Até que, quando Júlio se encontrava em cima de Pietro, ambos pararam de rolar e se encararam. O sorriso de Ju foi desfazendo de uma maneira hipnotizante. Ele deu um longo suspiro. Pê olhava diretamente para sua boca quando o surpreendeu com um selinho. As bochechas de Júlio ficaram vermelhas - ele voltou a sorrir.

“Se eu preciso fazer isso pra te ver sorrir de novo, então...”

“Eu, bobo? Você que tem que voltar a sorrir aqui. Aliás, eu que deveria estar fazendo de tudo contra essa sua carinha triste. ”

“Eu não me importo” Respondeu Pietro “Mas estou te dando as dicas” Piscou.  

Nessa hora, o irmão de Pê chegou ao lugar.

Giovani não se chocou ao chegar à oficina e ver Pietro e Júlio abraçados. Na verdade, contanto que o irmão estivesse feliz, nada lhe importava se fosse com um homem ou com uma mulher.

Os rapazes receberam com alegria a notícia de que Caetano havia acordado. Juntos, os três voltaram ao hospital, comemorando a conquista. Esta era uma das segundas chances. Ao chegarem lá, após certo tempo, o pai pediu que Pietro fosse falar com ele no quarto. Pietro tentou não se abalar ao notar a fragilidade de Caetano, que se movia na cama com alguma lentidão e falava com dificuldade. Pietro tinha fé de que as sequelas não seriam permanentes. Quando se aproximou do pai, ele sabia que agora tudo seria diferente. Pois nunca havia sido olhado por ele com tanto carinho. Caetano deu um longo suspiro cansado.

“Filho.”

“Pai, procura não falar muito.”

“Eu preciso.”

“Pai, está tudo bem. Logo você vai sair daqui.”

Caetano virou a cabeça para o lado, parecendo desorientado.

“Filho. Desculpa seu pai.”

Pietro soltou o ar, sentindo uma lágrima no rosto.

“É claro que eu desculpo, pai. Tudo que eu queria é que a gente fosse como antes...”

“Fui ruim com você.”

“É passado, papai. Agora nós podemos... Recuperar. Recomeçar.”

Caetano lagrimou.

“Você... Bom filho. Tenho orgulho de você.”

“O senhor sempre foi um homem forte e vai se recuperar.”

Pietro aproximou-se da cama e deu um beijo na testa do pai.

“Não desiste, tá? Você tem muitas razões pra viver. Eu estarei em casa, cuidando de você.”

“Eu... Você...” Caetano tossiu.

“O quê, pai?”

“Eu... Amo você... Você... É meu filho.”

 Pietro não conseguiu segurar a emoção. Caetano era um homem educado aos moldes antigos; nunca fora ensinado a externar seus sentimentos daquela maneira. Portanto, o filho sabia que ele estava se esforçando.

“Também amo você, meu pai.”

“Filho.”

“Sim?”

“Seja... Feliz.” Engoliu em seco “Eu não vou... Me incomodar com a sua felicidade. Com quem ela for.”

“Obrigado, papai.” O filho puxava e soltava o ar “Não sabe o quanto é... Importante pra mim ouvir tudo isso. Poder contar com o seu amor. Desculpe se falei coisas que não devia. Desculpe todas as vezes que te machuquei.”

Caetano escutou em silêncio por um tempo.

“Sua mãe... Estaria feliz.”

“Ela está, papai. Muito feliz.”

Era inexplicável o tamanho de sua gratidão e felicidade. Pietro deu um abraço delicado no pai, limpou suas lágrimas e saiu do quarto com um imenso sorriso. Júlio o esperava e, ao vê-lo, compreendeu de imediato o que havia se passado. Os dois se abraçaram. Júlio falou em seu ouvido, sem soltá-lo de seus braços.

“Vocês conseguiram, Pê. Vocês dois!”

Pietro lhe olhou firme.

“Estou tão aliviado! Era um desejo meu resolver essa briga com ele. Não queria deixar isso pendente de novo. Parece que é um fardo que sai de mim. Ele disse que me ama, Ju. E que eu fosse feliz como eu quisesse.”

“Fico tão feliz por você! Quando meus pais morreram, eu ainda não me entendia direito... Eles nunca souberam. Pelo menos, não nesta dimensão. Mas talvez estejam zelando por mim em outro lugar.”

Pietro sorriu.

“Então você acredita?”

“Que não termina aqui? Sim. Mas não digo mais nada além disso. É incompreensível pra qualquer pessoa viva o que se passa do lado de lá, certo? Mas eu creio que exista um lado de lá.”

Pietro decidiu arriscar.

“Você... Tem curiosidade com isso? Saber, por exemplo, de vidas que seu espírito viveu antes?”

“Eu queria fazer regressão, mas nunca deu certo. O Ricardo não gosta. Mas... Você sabe aquela vez que eu te falei que vivi como Luccino no sonho? Cara, eu gostaria de ter sido o Luccino.”

“Alguma vez, depois dessa, você tentou... Voltar?”

“Voltar?”

“É. Você entrou pela porta, não foi?”

“Sim. Mas era um sonho...”

“E se não fosse? E se você tivesse sido o Luccino?”

“Eu? Mas é tão improvável! Quero dizer, a maioria das pessoas que faz regressão espera ser, sei lá, a Cleópatra. O que eu posso descobrir? Que fui um mero camponês ou sei lá... Mas o Luccino? Eu? Que vim justamente pesquisar a história dos dois?”

Existem mais coincidências do que você pensa, Refletiu Pietro.

“Olha, Júlio, sei que parece papo de doido, mas preciso te mostrar uma coisa. E falar outras. O que você sentiu não foi um acaso ou uma alucinação. E se eu dissesse que você pode... Sentir tudo aquilo de novo?”

A curiosidade de artista brilhava nos olhos de Júlio, apesar do susto.

“Pois já que seu pai está melhor, assim que sairmos daqui, eu quero que me mostre.”

x-x-x

Otávio e Luccino estavam abraçados no centro da sala, apavorados. No corpo de suas vivências anteriores, Pietro e Júlio conseguiam sentir a angústia e a agonia daquela hora incerta. Outro barulho ocorreu na janela.

“Otávio! Eles não vão parar!” Luccino sussurrava, em lágrimas.

“Eles vão parar algum dia. Vão ter de parar.”

Mas não paravam. Todos os dias, uma pessoa, duas pessoas, três ou um grupo, depredavam a casa de Luccino, aquela que ele compartilhava uma porta com a de Otávio. Começaram jogando pedras na janela. Pequenas pedras em horários indefinidos. Vez ou outra, Luccino era atingido por essas pedras no rosto ou em qualquer outro lugar; seu corpo se enchia de machucados como sua alma. Apenas ele era afetado já que, na cabeça da população, Luccino é quem deveria ter vergonha de ter desviado um homem casado de seu caminho natural.

Logo os ataques começaram a ficar mais agressivos. De pedras, passaram a jogar pedaços grandes de madeira e a danificar a parte externa da casa. Mesmo que pensassem em denunciar, o delegado não faria nada. Ele também achava uma “sem vergonhice” o que os dois rapazes faziam. Otávio, indignado e cheio de culpa, não saía da casa de Luccino desde a semana passada. Fecharam as cortinas e resolveram ficar juntos para se proteger.

“Eles não podem fazer isso com a gente.”

“Otávio, vamos esperar que se cansem.”

Otávio se encontrava furioso. Fez menção de levantar para ir à janela. Luccino agarrou seu braço, apavorado.

“Não! Você vai se machucar!”

“Eu não aguento mais, Luccino! Quando era só comigo... Mas você! Eles descobriram você e não consigo suportar que você viva isso. Ser rejeitado na cidade. Ser machucado por esses imbecis! Não, Luccino, você não!”

“O que eu disse a você naquele dia? Eu não sou de vidro, Otávio. Posso suportar.”

Otávio beijou sua testa e o abraçou. Permaneceram abraçados no centro da sala em silêncio. Escutavam apenas os insultos vindos do lado de fora e as janelas se quebrando. O major não se deixou ver; um fio de lágrimas brotava de seus olhos.

x-x-x

Quando Júlio retornou do presente, não podia acreditar nas tantas emoções que haviam passado pelo seu corpo na pele de Luccino. Pietro observava a credulidade das viagens no tempo aos poucos atravessando o seu íntimo. Era uma experiência tão pessoal que ele não poderia entender o que se passava na sua cabeça naquele momento. Mas sabia que, a partir de agora, não poderia duvidar que não era real.

“O que foi isso! Estavam vandalizando essa casa!”

Pietro concordou.

“Você viu? A cidade começou a rejeitá-los.”

“E o que eles fizeram, Pê? O que eles fizeram?” Júlio perguntou, preocupado.

“Devem ter fugido. É o que sempre acontece. Essas pessoas somem do mapa, sabe? Vivem no anonimato... Não é surpresa terem optado o segredo.”

“Espero que sim. De verdade. Chega dessas histórias estarem destinadas ao desaparecimento.”

Bel entrou correndo na sala.

“Pai! Quando você vai voltar para casa?”

“Oi, Bel, tudo bom?” Pietro foi amigável.

“Não falei com você! Papai, quando volta pra casa?”

“Filha! Quê isso! Que falta de modos! Anda, fale direito com o Pê!”

Bel virou na direção dele, séria. Derrubou seus ombros. Um minuto sem defesas.

“Direito com o Pê.”

Pietro riu, mas Júlio olhou-a com repreensão.

“Bel!”

Inesperadamente, a menina sorriu.

“Eu tava brincando. Oi, Pietro. Pê.”

Ele respirou aliviado. Ok, era um começo.

“Então, querida, que você acha de um dia fazermos...” Ele olhou para Ju “Teatro de sombras?”

O rosto da criança iluminou-se.

“Eu ia adorar! Papai nunca foi bom nisso!”

“Ahá!” Pietro respondeu vitorioso na direção de Júlio.

“Filha, não vale me entregar...”

“Quem sabe mais é o Ricar... Ah.” Bel não terminou de falar. Um pouco tímida, ela recuou alguns passos e cumprimentou Pietro com um aceno amigável antes de ir embora.

“Vou falar com ela. Não se preocupe. Mas começamos bem, não é?”

“Espere... Fica aqui comigo.” Pietro segurou suas mãos. Júlio fixou seu olhar no dele.

Nada disseram. Apenas aguardaram naquele carregado silêncio. Júlio foi o primeiro a se afastar. Pietro, por sua vez, permaneceu parado na sala.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Mais que o Tempo" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.