Mais que o Tempo escrita por Le petit prince egoiste


Capítulo 14
Quatorze




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/772425/chapter/14

Júlio foi quem acordou primeiro. Aproveitou a calmaria do quarto para observar a respiração de Pietro indo e vindo, seu corpo arqueando e relaxando. A luz atravessava a pele. Ele se deteve, embora estivesse com o desejo de, com os dedos, ir percorrendo aquele espaço habitado. Fazer caminho de um sinal a outro, sentir seu cabelo bem batido, castanho claro.

Ver sua expressão relaxada, aquela de quando dormimos, pois, para ele, era a mais sincera de alguém. A de Ricardo, por exemplo, era dura; no começo do casamento, como brincadeira, Júlio o chamava de “cara de tempestade”. Mas o marido se ofendia por pouco e ele resolveu parar.

Pietro começou a se mexer na cama, virando-se para Júlio já acordado por completo. A princípio, ele demorou a entender o que havia acontecido na noite anterior. E, quando processou as informações, relaxou.

“Bom dia. Dormiu bem?” Pietro perguntou ainda deitado.

 “Dormi bem. Obrigado.”

Pietro sorriu.

“O que deu na sua cabeça pra bater na janela do meu quarto, hein?”

“Eu não tinha muita opção.”

“Ah! Então eu era o que tinha, né? Muito bem, muito bem.” Fez um bico.

“Segunda opção? Nada disso, não se faça de ofendido. Você foi minha primeira opção. Eu pensei... Hum, preciso de abrigo. Quem mais que poderia me fazer morada?”

“Ah, meu Deus, que trocadilho infame!” Ele riu “Vai procurar a Sandy, cara. Esperava mais criatividade de um escritor”.

Júlio riu.

“Olha, tem dia que amanheço zero inspirado. A gente não é abençoado pela musa grega, não. Também temos boletos pra pagar. E somos cafonas. Acontece. Mas... Com certas companhias... Talvez a inspiração venha.” Ele piscou para o outro.

  Pietro levantou-se e vestiu uma de suas camisas. Júlio levantou em seguida, os cabelos bagunçados e volumosos. Pietro recordava da lembrança, de quando estava tão perto de Luccino que podia tocar aqueles mesmos cabelos bagunçados após uma noite de amor. Quero repetir com ele. Com... Ele.  

Nessa hora, alguém adentrou no quarto sem avisar. Era Bel.

“Papai, papai!”

“Bel, meu amor!” Júlio abraçou-a pelo tronco.

“Por que não dormiu em casa? Por que dormiu aqui?” Olhou desconfiada para Pietro, na defensiva.

“Um pequeno... desentendimento com seu pai, só isso. Mas vou voltar.”

“Ah, papai. O Ric chorou a noite toda, dava pra ouvir do meu quarto. Aí eu acordei fora do horário e ele tava lá, chorando. Ele disse que o Pietro tava levando você embora de nós dois.”

“O quê? Mas é claro que não, minha filha. Eu amo você, não importa o que aconteça. E seu pai, eu vou ter uma bela de uma conversa com ele. Anda, vamos tomar o café lá em casa. Me espera na sala que eu já me apronto aqui.”

Bel ficou feliz e correu para a sala. Júlio suspirou, olhando para Pietro. 

“Sabe que ela é uma das razões de eu ainda tentar entender o Ricardo? Ele foi importante na criação da Bel. Quero dizer... Ele não foi sempre assim. Me ajudou pra caramba nos primeiros anos, quando eu fiquei sozinho com ela. Eu perdi uma irmã, minha sobrinha perdeu uma mãe. Foi difícil. E era ele quem estava lá. Eu trabalhava num escritório de advocacia antes de largar tudo para escrever. Depois... Quis arriscar. Fazer o que gosto. A partir disso, Ricardo mudou.”

“Então você está com ele por que gosta do passado que tiveram?”

  “Talvez... Talvez eu esteja errando. Ele não era assim, como eu falei. Talvez seja algo que eu esteja fazendo...”

Pietro fez um gesto enfático de negação.

“Você? Ele quer que você acredite que ele está certo. Você sabe que isso é abusivo, não sabe? Ele diz que ninguém pode aturar o que ele chama de suas merdas, aí você acredita e acha que nenhum outro homem pode te amar. Te aturar. Mas um casamento é feito de dois e não de um.”

“Na verdade, estou confuso. De qualquer maneira, acho que não deveria ter vindo. Até aqui, quero dizer. Eu e ele... Estamos dando um tempo. Mas acho que não foi correto com Bel. Olha como ela ficou.”

“Você sabe que está sabotando a própria felicidade, não sabe?”

Júlio engoliu em seco e se afastou.

x-x-x

Ao chegar em casa, Júlio foi recebido por um Ricardo cheio de raiva.

“Você não me respeita mesmo, né? Na verdade, eu queria que você respeitasse ao menos a sua filha. Meu Deus, Júlio, olha o que esse Pietro tá fazendo com você. Dormir na casa de outro homem. Francamente!”

“Nós brigamos, eu saí, não tinha onde ficar. Queria que eu dormisse na rua?”

“Você mudou tanto que nem sei. Costumava honrar tudo que nós prometemos um ao outro. E onde estamos agora? Que nem dois estranhos. Você acha que conhece mais a um estranho do que a mim, com quem está há anos. Ou é por que acha que conhece e acredita que pode me fazer de bobo? É isso?”

“Ricardo... Temos de reconhecer que tem algum tempo que já não fazemos bem um ao outro...”

Ricardo se aproximou violentamente e, para surpresa de Júlio, esbofeteou-o no rosto. Ele, espantado, tocou o rosto no lugar onde ficara a marca da mão do marido. Ele fez um movimento com as suas e, quando deu por si, havia retribuído o tapa. O marido encarou-o, os olhos secos, mas evidenciando orgulho ferido. 

“Imbecil! Você sabe que posso te denunciar por alienação parental, não é?” Júlio ameaçou.

“Como é que pode dizer isso! Tudo que tenho feito é te amar! E você me devolve tudo que fiz por você me traindo com o primeiro que aparece! Quem está fazendo tudo errado aqui às vistas de todo mundo, hein? Eu só aturo essa merda por que a Bel ainda me ama! Mas você... Você! Que me importa você? Sabe que posso simplesmente largar isso e ficar com Bel, não sabe? Mas por que não faço? Por que eu te amo! Ninguém vai te amar como eu. Ninguém.

Júlio chorava. Aquilo martelava em sua cabeça... Eu posso ficar com a Bel...

Ele engoliu a dignidade sem pestanejar.

“A Bel é o que mais importa agora. Tem o aniversário dela e... Bem, você? Fique longe de mim. Longe, entendeu? E qualquer gracinha da sua parte, eu te denuncio.”

“A Bel não vai dar razão pro cara que tá se metendo com outro. Eu a levo daqui sem pensar duas vezes. A não ser, é claro, que ela não me queira. Aí, eu vou embora. Por que você não é suficiente pra mim.”

“Tenta, vai. Ela tem o meu sangue.”

“Pode ser. Mas vamos ver quem a justiça poderá favorecer. O traidor... Ou eu. Por que bela conduta de pai você tem!”

Júlio engoliu em seco, acuado.

Atrás da porta, Bel escutava a tudo.

x-x-x

“Preciso de uma ajuda, Délia” Pietro pediu, estatelado no quarto.

Ela entendeu que era uma conversa séria e ficou ao seu lado, atenta. Pietro precisava desabafar com alguém e ela era a única que não achava loucura as viagens no tempo que tanto o confundiam.

“Você sabe, Júlio dormiu comigo porque brigou com o marido.”

“Certo. Inclusive, fiquei irritada com o que aconteceu. Não vou deixar essa barata pro Ricardo, não.”

“Acontece que... Eu sinto algo forte por ele. Muito, muito forte, que não consigo compreender.”

“Pietro, amor é a coisa mais simples que existe. O que é que te complica?”

“Ele. Ele não me dá certeza. Eu não tenho certeza.”

“Vocês devem conversar.”

“Eu sei. Mas preciso me entender primeiro.”

“Em quê?”

“Em... Bom, tem uma questão. Não sei se gosto dele.”

“Tem absoluta certeza do que diz? Tem certeza que você não gosta dele?”

“Aí é que tá. Ele é o Luccino.”

“Não, ele é o Júlio. De qual dos dois você gosta?”

Pietro não soube responder.

“Talvez você deva ir até o fim com isso. Com o passado. E entender o que sente. Só aí, então, expor seus sentimentos ao Júlio. Júlio não é o Luccino, Pê. Só que você precisa ir até o fim pra saber o que aconteceu. Você o ama por que ele é um mistério não resolvido ou por que ele é o Júlio? Tente pensar nisso. No final das contas, Pê, o medo é um desses valentões que ameaçam, que esbravejam, mas no fundo não são de nada. Basta encará-lo e ele coloca o rabinho entre as pernas e sai correndo. E nunca mais aparece! O medo é um covarde.”

x-x-x

“Ah, que bom ver vocês dois! Fiquei com tanta saudade!”

Luccino e Otávio estavam reunidos na casa do Coronel Brandão, que aproveitou sua folga para fazer uma visita ao Vale do Café. Mariana, segundo observou Pietro, era Délia.

“Mariana, você faz falta por aqui!” Otávio disse.

“Otávio, eu soube do que aconteceu...” Seu tom tornou-se pesaroso “Lídia, Lídia, cabecinha de vento. O filho não é seu, não é? E ela veio falar isso agora... Oh, Lídia! Randolfo, já não basta o baque que teve, agora mais essa. O filho é do Uirapuru. E Luccino... sinto muito!” Ela afagou seus ombros, tentando confortá-lo.

“Já está feito, Mariana” Luccino baixou os olhos.

“Não, não está feito ainda. Aproveitem que a vida fez a verdade aparecer.”

“O que você está sugerindo?” Otávio indagou.

“Mandem a sociedade às favas e fujam daqui.”

Luccino arregalou os olhos. Otávio sentiu um frêmito no peito.

“Fugir? Como?”

“Ainda não pensei nisso. Mas damos um jeito! Eu ajudo! Luccino, amor ajuda, mas não tem pernas. Temos de tomar a iniciativa.”        

  Luccino trocou olhares com Otávio.

“Por que as pessoas acham que queremos afrontá-las ou... Ofendê-las? Quando só o que queremos é fazer um ao outro felizes!” Era uma indagação misturada aos pensamentos de Pietro.

“Os tempos vão mudar, Otávio, e esse povo ainda vai encontrar justificativas pra odiar os outros. Mas espero que um dia a gente não precise mais se defender.” Luccino tinha a expressão cansada.

“Oh, meninos.” Mariana deu um abraço nos dois. “Vamos, vou ajudar vocês. Não quero essas carinhas tristes. Vocês tem um ao outro, não é? Ora! O amor encontra e não separa. Pois vamos terminar com isso!”

x-x-x

Délia deixava o livro de Elisabeta em seu lugar original. Ao mexer nas prateleiras, os livros se encontravam apertados demais uns nos outros. Teve de tirar alguns para liberar espaço. Uma fileira inteira de obras caiu no chão.

“Droga!”

Ela se abaixou para tentar reorganizar. Foi quando encontrou... Uma carta. Uma carta antiga cujo remetente era Luccino, e a destinatária... Mariana Brandão Benedito.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Mais que o Tempo" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.