Where Are You? escrita por Lyubi


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Para entrar na melancolia da fic e conhecer uma música maravilhosa: WOODKID - I Love You (Quintet Version)

https://www.youtube.com/watch?v=u-nFIo4f71g



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/772076/chapter/1

Vovô tinha morrido nos meus braços três noites atrás. O casaco cinzento do uniforme estava com manchas secas de sangue, havia sangue misturado à poeira nas minhas mãos e rosto também. Eu precisava de um banho urgente; meu cabelo comprido tinha endurecido com a sujeira, me sentia um indigente imundo como estava, mas voltar para casa era meu último desejo. Sempre foi meu último desejo... A casa dos Zoldyck sempre foi mais como um quartel do que um lar e nesse exato momento os ânimos deviam estar a flor da pele... Eu poderia conversar com papai amigavelmente, mas ele não tomaria o meu lado, não fazia o seu tipo comprar brigas...

Respirei fundo, o ar parado era quase sufocante. Aqui talvez já tenha sido um restaurante. Agora era apenas um amontoado de entulho, mesas e cadeiras reviradas, a porta da rua permanecia fechada, intacta, mas tinha perdido seu valor com o rombo que fizeram na parede, era quase engraçado ver o estabelecimento totalmente aberto para a rua. Eu estava sentado num dos bancos sobreviventes no balcão do bar, a luz da lua não chegava até aqui, mas mesmo que chegasse a poeira estava tão grossa que eu não saberia dizer a cor da madeira.

Tinha o sentimento de que aqui estava a salvo do tempo. Aqui o tempo não passaria. Minhas companhias se restringiam a luz perolada da lua, o homem caído no canto e meu copo. O olhei no escuro, não havia quase nada mais. Me servi de mais uma dose. Conhaque. O líquido desceu ardendo pela garganta, um ardor gostoso, mas bebida quente ainda era bebida quente...

A guerra tinha acabado e imaginei ouvir as vozes do povo nas ruas festejando e agradecendo a deus e ao diabo pela breve pausa no sofrimento, mas eles estavam muito longe para que eu conseguisse identificar qualquer som. Uns moleques tinham passado gritando algumas horas atrás, mas já estavam longe, o sino da igreja tinha soado algumas vezes também, eu não contei quantas...

Tudo indicava que eu era um herói para o povo e agora, com a morte do velhote, eu seria o representante da Guarda pelo Movimento. Não queria ser. Pensando bem, eu não queria ser nada como sou hoje. Queria voltar no tempo e flutuar sobre o mar nas primeiras horas do sol com as risadas infantis e as brincadeiras e aventuras que eu vivi com Gon. Queria que tudo não fosse tão complicado e queria que ele ainda fosse meu amigo.

Meu rosto se repuxou num sorriso, embora eu estivesse prestes a chorar. Um homem de quase quarenta... Suspirei me servindo de novo.

Pensar em Gon era complicado. Era complicado porque ele tinha sido mais um problema do que uma solução, mas eu sempre idealizava que bastava estar com ele para estar tudo bem. O que não era verdade e nesse momento talvez nunca seria. O Gon das minhas recordações não é mais a mesma pessoa que eu costumava amar, nem eu sou o mesmo Killua que costumava ser.

Fico pensando se talvez alguma palavra diferente teria mudado tudo, se eu fizesse ou deixasse de fazer alguma coisa, se mudaria alguma coisa. Mas a desesperança me diz que não. Nós temos a vida que temos. Eu não pedi para nascer, não pedi para nascer na família que nasci, não pedi para ser a pessoa que eu sou. Que bobagem! É claro que eu sou responsável pelas decisões que eu tomei, pelas palavras que falei.

Na minha lembrança mais antiga, eu já conhecia ele, então não sei como ou por que nossos mundos se encontraram. Eu era um garoto prodígio duma linhagem de pessoas que nasceram para servir a Casa e ao Rei, eu era o melhor aos olhos do meu pai e meus irmãos invejavam isso — inveja que era alimentada como uma competitividade saudável, embora passasse longe disso. Gon era... o perfeito oposto. O menino da selva que tinha aprendido a viver pelo instinto e corria solto o dia todo pescando, nadando e criando aventuras para, no final, voltar para os braços da tia amorosa e receber puxadas de orelhas e ouvir broncas que me faziam querer rir. Era um ambiente feliz e simples que me deslumbrou desde pequeno.

De alguma forma, eu consegui crescer na casa da tia Mito e da Obaa-chan. Fugindo todos os dias da mansão dos Zoldyck e indo brincar com Gon. Ás vezes me pegavam e eu passava semanas sendo castigado por Milluki ou Illumi, ou num treinamento intensivo com papai, mas sempre conseguia voltar para a casinha de madeira no topo do morro. Acho que vovô tinha um dedo ou dois nisso, mas nunca descobri.

Percebo que já não me lembro do rosto de Gon quando criança. Me lembro do cabelo molhado, preto e espetado brilhando na luz do sol, da pele morena, dos olhos honestos cor de caramelo e do sorriso largo. Me lembro das risadas, embora não recorde a voz. Lembro das nossas mãos juntas quando me arrastava para algum lugar, para uma nova aventura.

 

Where the light shivers offshore

through the tides of oceans

we are shining in the rising sun

Onde a luz treme no mar

através das marés dos oceanos

estamos brilhando no sol nascente

as we are floating in the blue

I am softly watching you

oh boy your eyes betray what burns inside you

como estamos flutuando no azul

estou singelamente te observando

oh, seus olhos traem o que queima dentro de você

 

E não tinha me dado conta do que sentia até conhecer Leorio e Kurapika. Em pensar que eu fui o causador de todo estresse que se seguiria... Arranjando uma briga infantil com um desconhecido engravatado, eu lhe roubei a maleta e fiz Leorio correr atrás de mim por toda a Ilha da Baleia apenas por diversão. Quando encontrei Gon pelo caminho, ele apenas me acompanhou na brincadeira, mas de alguma forma quando paramos ele fez amizade com o velhote. Carismático como sempre enquanto eu continuava irritando o moreno.

Tivemos que levá-lo de volta ao hotel já que ele tinha se perdido com a minha travessura e quando chegamos Kurapika estava sentado na recepção. Ver aquele garoto loiro e magro de uns 16 anos daquele jeito me deu um nó na garganta e, embora eu acredite que compaixão não é um sentimento que ele gostaria que tivessem por si, foi o que eu senti naquele primeiro momento. Pernas e braços cruzados, o pé batendo de ansiedade, a guia dobrada no colo, o cenho franzido de ansiedade, preocupação e irritação, e as íris esbranquiçadas apontadas para um canto qualquer. O mais impressionante eram as cicatrizes ao redor dos olhos.

Fomos apresentados e depois de alguma resistência, o loiro foi convencido por Leorio de que como nativos, poderíamos ajudar na sua causa. Observar Gon encantar alguém e fazer dele seu amigo era ao mesmo tempo mágico e misterioso, ele tinha jeito.

Quase um mês depois, Kurapika nos contou a sua história. Ele vinha de uma vila ao extremo oeste do Continente, a vila Kuruta tinha sido auto suficiente por muito tempo e era bastante isolada pelas florestas pouco acessíveis que circundavam o local. Eles viviam num local muito rico pelas gemas preciosas chamadas de Lua Rubra, mais preciosas e raras que o diamante. As gemas faziam parte da religião deles e eram consideradas sagradas.

Alguém ficou sabendo das preciosidades que a vila guardava e eles foram atacados por uma gangue de ladrões e traficantes conhecida com Aranha ou Trupe Fantasma. As casas foram queimadas, as gemas roubadas e os homens foram massacrados. Era uma história horrível que me deixou pensando por dias. A expressão de ódio no rosto de Kurapika nunca saiu totalmente da minha mente.

Leorio tomou a palavra a partir dali. Contando que encontrou o loiro três dias depois enquanto ajudava a apagar o incêndio que tinha se arrastado pela floresta. Ele estava desacordado e ferido. Fazia cerca de um ano que tudo tinha acontecido, Kurapika ainda não estava totalmente recuperado nem adaptado com a cegueira (Leorio reforçou encarando Kurapika que fingiu não ser atingido), mas estavam ali seguindo uma pista de que o grupo de ladrões se reuniria.

Gon imediatamente tomou partido dos dois, prometendo ajudá-los no que quer que fosse e soltando estupidamente que eu fazia parte da família que comandava a Guarda na Baía e podia ajudar também. Mesmo contrariado, eu não me opus.

Os encontros se tornaram diários enquanto fazíamos pesquisas, mostramos a ilha para os dois e acompanhamos Kurapika no seu planejamento para encurralar a Aranha. Ele era muito inteligente, quase um gênio, e, embora tivesse motivos emocionais, pensava friamente em cada coisa — meu avô gostaria de conhecê-lo. Ele tinha contatos com outras pessoas também, não estavam sozinhos na caça das gemas.

Tínhamos só doze anos e totalmente empenhados num plano suicida para capturar um dos treze assassinos perigosos e o interrogar, talvez até chegar ao final...

Eles ficaram meses conosco e mesmo sentindo ciúmes das amizades do Gon eu acabei me afeiçoando muito também. Foi com Leorio que observei o sentimento de proteção que ele dedicava a Kurapika, e entendi que o cuidado não era apenas pela condição do Kuruta, mas por ser o Kuruta. Me perguntava se Kurapika já tinha se dado conta também... E então me caiu a ficha que o que eu sentia por Gon era mais complexo do que irmandade. Foi uma época horrível, mas o que estava por vir foi pior.

 

whatever I feel for you

you only seem to care about you

is there any chance you could see me too?

'cause I love you

o que eu sinto por você

você só parece se preocupar com você

existe alguma chance de você pudesse me ver também?

porque eu te amo

 

O plano não foi um completo fracasso, mas acabou sendo inutilizado. Um dia antes da execução, a Trupe foi presa em flagrante numa missão oficial das Nações Unidas. Foi um balde d'água em todos nós. Nos foi esclarecido que o informante de Kurapika, além de um grandessíssimo filho da puta com humor deturpado, era um agente infiltrado e tinha utilizado das informações de Kurapika para finalizar a captura da trupe perigosa.

A notícia quase infartou Kurapika e eu fiquei feliz por ele não conseguir ver o divertimento no rosto do policial ruivo psicótico — que encarou Gon e eu de um jeito insanamente pervertido. Anos depois eu descobri que Hisoka era amigo de meu irmão mais velho e que já tinham trabalhado juntos como agentes especiais. A loucura dele fez mais sentido.

Depois disso não demorou para que Leorio e Kurapika partissem para o outro lado do mundo na caça das gemas perdidas. Foi uma despedida sentida, embora nem eu nem o loiro tivessemos demonstrado muito.

Há um branco na minha memória neste período de quatro anos até os nossos dezesseis. A vida continuou. Minha família (Illumi) descobriu Gon e fez de tudo para nos separar. Foi um pequeno inferninho, mas tudo se resolveu. Chegamos até a viajar juntos para fora da Baía do Caçador. Na Ilha da Ambição tivemos treinamento com Biscuit, uma velha amiga do vovô que tinha a aparência de uma garotinha, mas na verdade era quase uma centenária — e que ela nunca escute meus pensamentos!

Minha admiração por Gon apenas crescia e o sentimento no meu peito era guardado com cuidado. Não queria que ele descobrisse — ele era tão inocente naquela época… Ao mesmo tempo, eu estava descobrindo o desejo e tentei com todas as forças me distanciar dele. O que só o fez ficar mais colado tentando descobrir por que eu estava "bravo" com ele. Aquela época foi uma bagunça...

E então Kaito apareceu.

Maturidade é uma palavra que vem amarga. E sinto que apesar da razão e das rugas no meu rosto eu ainda não sou maduro o suficiente para não culpá-lo de uma culpa que ele não tem. Algo dentro de mim grita como uma criança quando eu penso que com Kaito vieram todas as coisas complicadas.

Sei que Mito tentou mantê-lo afastado de Gon o máximo que pôde e apesar do desespero dela, Gon acabou se envolvendo com aquele estranho que dizia vir da parte de Ging, o pai ausente e desconhecido que tanto a tia quanto a avó evitavam falar. Gon sempre pensou que Ging o tinha abandonado (o que não é totalmente mentira), mas com Kaito descobriu que seu pai tinha saído da Baía como fugitivo do governo.

A Baía do Caçador viveu sob a ditadura disfarçada da Monarquia da família Quimera por quase um século. Muitos movimentos surgiram ao longo dos anos para organizar uma rebelião, a mais conhecida e efetiva tinha sido o Movimento dos Pescadores e ao que parecia, o misterioso líder estava vivendo em outro país por quase quinze anos e era pai de Gon.

Gon foi totalmente engolido pela causa, estudando mais e mais sobre a política e a sociedade em que vivíamos. Eu ficava constrangido estando tão envolvido com a Guarda do país e consequentemente sob os cuidados da Monarquia. Era um assunto que eu odiei a vida toda pensar e evitava falar sobre. Mas Gon se tornou obcecado e cada vez mais enérgico conseguindo um lugar no Movimento ao lado de Kaito e outros membros. Eu participava das Assembléias às escondidas, das missões sempre que possível e realmente fiz amigos preciosos ali. Pessoas com quem pude contar ao longo dos anos, mas ainda assim o futuro era bastante claro e meus dias estavam contados naquele lado da história…

 

is there anything I could do

just to get some attention from you?

in the waves I've lost every trace of you

where are you?

há algo que eu poderia fazer

apenas para ter alguma atenção sua?

nas ondas perdi todos os rastros de você

onde está você?

 

Tudo aconteceu rápido demais e parecia que ao mesmo tempo, mas depois de tanto mastigar o assunto em minha mente, talvez hoje eu possa colocá-las em ordem. O primeiro golpe veio durante uma missão importante do Movimento em que Gon se arriscou para proteger Palm e quase fomos pegos. Eu nunca fiquei tão furioso e entre os meus gritos e os dele muitas ofensas foram trocadas, palavras que não voltam. Hoje eu sei que foi a tensão e o medo de perdê-lo que me deixaram tão fora de mim, mas naquela hora era apenas culpa dele e de Palm. Se eu fechar os olhos acho que posso ouvir de novo as coisas que ele disse sobre a minha família deturpada e controladora, sobre eu ser um riquinho mimado que nunca entenderia o que o Movimento significava para ele, porque era protegido pelo meu pai — e ele nunca teve o dele…

Foi a pior briga que tivemos. Não eramos mais crianças brigando por qualquer coisa e logo depois voltando a brincar como se nada tivesse acontecido.

O segundo golpe veio quando descobri que tinham levado Alluka para longe. Minha irmã tinha uma mentalidade especial. Quase toda a família não a considerava uma Zoldyck por isso, por não ser um soldado. Foi uma questão de semanas em que eu e os mordomos dos Zoldycks fomos resgatá-la, mas nesse meio tempo Kaito morreu em missão e Gon se viu em completa desolação com uma sede de vingança cega que lembrava muito Kurapika. Eu consegui voltar com Alluka apenas sob a condição de cumprir meus deveres iniciando o treinamento oficial da Guarda. Quando voltei, encontrei um Gon louco de ódio e magoado, se sentindo traído por mim por não ter estado ali. Ele me descartou para se vingar sozinho e eu não tive a chance de me explicar ou tentar reverter a situação. Eu não poderia passar mais todo o meu tempo com ele, de toda forma…

A nossa amizade quebrada ainda perdurou algum tempo até que ele encontrou a vingança que procurava. Isso quase o levou também. Foram meses no hospital lutando entre a vida e a morte. Meses em que eu dormi no banco do hospital sempre saindo do treinamento e indo desmaiar de cansaço do lado dele. Gon já estava se recuperando em casa quando Leorio surgiu com Ging. Foi um encontro curioso, via-se na cara do pai que ele não queria estar ali, mas Gon ficou muito emocionado e isso derreteria qualquer um. Mito parou de bater com a vassoura no pai desnaturado ao notar a felicidade do sobrinho e então deixamos os dois a sós.

Não sei dizer o que senti daquele homem, um misto de admiração e temor por ele ser pai de Gon e ser uma pessoa tão importante, uma pessoa que mudava as pessoas e as coisas à sua volta, que lutava com determinação ferrenha pelo que queria, como o próprio filho fazia sem perceber.

Soube que ele viajaria com o pai quando ele já estava fazendo as malas.

 

after all I drifted ashore

through the streams of oceans

whispers wasted in the sand

afinal eu me afastei da terra

através das correntes de oceanos

sussurros desperdiçados na areia

 

Respostas curtas, não olhava no meu rosto e parecia querer se livrar de mim. Segurei seu pulso, ainda estava muito magro da recente recuperação de quase morte. Olhou nos meus olhos e eu vi. Vi a tristeza e desespero e a certeza de que não éramos mais amigos naquele momento. Tinha se quebrado totalmente. Gon tinha crescido mais rápido que eu, tinha admitido o que eu não conseguia admitir… que só havia um futuro para nós e nele estamos de lados opostos do campo de batalha.

Dez anos depois e foi exatamente assim que aconteceu. Nossos olhares se cruzaram por um breve instante. O meu azul congelante e apático, vestia a farda cinzenta de soldado da Guarda, o cabelo preso na nuca, estava nos arredores do palácio contendo a multidão que se rebelava. O caramelo quente, uma ruga de teimosia na testa, as roupas largadas, a barba por fazer como seu pai costumava usar.

 

as we were dancing in the blue

I was synchronized with you

but now the sound of love is out of tune

como estávamos dançando no azul

eu estava sincronizado com você

mas agora o som do amor está fora de sintonia

 

Eu nunca mais o vi depois desse incidente. Nossos amigos ainda me falavam dele de vez em quando, mas no geral evitavam tocar na ferida.

Os anos foram passando sem que eu percebesse. Sempre ocupado, sempre uma nova preocupação, sempre uma nova informação. Os dias da Monarquia Quimera estavam contados. Vovô e Netero, um dos mais influentes homens do país, se juntaram ao movimento e agiram por baixo dos panos por décadas para que a revolução conseguisse vencer. E ela venceu, embora tenha custado a vida de tantos amigos queridos e tantos anos perdidos.

A estratégia de décadas tinha culminado nesse momento presente. A cidade estava destruída, mas o rei foi deposto e suas forças infiltradas ou vencidas. O povo estava livre e aliviado, por hora. Não sabíamos quem ou como seria o próximo governo e eu não estava nem um pouco disposto a pôr as mãos nisso...

Mas vovô já tinha deixado a bomba nas minhas mãos... eu cuidaria da família Zoldyck a partir de agora e teria que domar a parte contrariada. Eu preferia lutar contra o país inteiro do que contra a minha família teimosa...

A garrafa de conhaque estava vazia e percebi que tinha ficado tempo demais ali, a lua estava alta no céu e não mais iluminava o interior do bar destruído. O bêbado ainda estava caído no canto e parecia longe de acordar. Me espreguicei e tomei a rua. Carros abandonados, paredes destruídas ou pichadas, entulhos por todo lado. Mas o céu estava limpo ou limpo o suficiente para que a lua cheia cobrisse tudo com a sua luz esbranquiçada e pudesse ver algumas esparsas estrelas.

Desci até a praia, distraído com o barulho das ondas enquanto encarava a areia tentando não pensar em nada. A maresia estava fria e não foi difícil decidir ir para casa dessa vez.

A Montanha inteira como residência era um exagero, mas chegando próximo da entrada percebi um homem parado olhando para o último e mais pesado dos nove portões. Meu coração acelerou reconhecendo algo no formato daqueles ombros, o cabelo arrepiado para cima. Ele estava com os braços nus, mais forte e melhor vestido do que da última vez que o vi — doze anos atrás? — estava mantendo o cabelo curto também ou mais curto do que na infância.

Quando se virou me encarou em choque por infinitos segundos. Meu estado pós-guerra me incomodou ainda mais e senti a barba rala que começava a crescer coçar, era constrangedor me pegar tão preocupado pela aparência por causa de outra pessoa. Eu tinha trinta e nove agora, não dezesseis.

— Killua.

Não percebi que ele vinha inseguro na minha direção. Uma mão erguida em cumprimento, o sorriso fraco me estudando. Não sabia o que dizer, a ruga de dúvida ainda entre meus olhos.

— Gon — respondi por fim, esperando uma explicação.

Ele parou há alguns passos de mim, colocando as mãos nos bolsos da calça e desviando o olhar.

— Podemos dar uma volta? Ah, você deve estar cansado e com fome, não é? Então eu vou...

Mas antes que ele tivesse a chance, eu virei as costas para que ele me seguisse.

A caminhada foi longa e silenciosa. Um silêncio pesado. Sentia que ele queria falar alguma coisa, mas eu não estava aberto. Minha cabeça girava imaginando o que diabos o tinha levado até ali, o que diabos havia para ser dito depois de tanto tempo. Percebi que voltava para a praia, eu devia estar louco.

Quando chegamos na areia, eu parei de frente para o mar e Gon subiu num rochedo esfregando os braços nus começando a sentir o vento frio da maresia.

— No final, não teríamos vencido sem a ajuda da Guarda e dos Zoldyck — comentou casual observando a superfície agitada das ondas.

— Meu avô e Netero planejaram tudo nos mínimos detalhes durante muitos anos. Mesmo tendo resistência dentro da família, ainda conseguimos colocar em prática — expliquei a contra gosto.

O silêncio caiu sobre nós mais uma vez, era desconfortável e sem saber o que fazer me aproximei do rochedo onde ele estava com as mãos nos bolsos. Ele parecia longe de falar mais alguma coisa então investi:

— Eu não o vi por muitos anos.

— Eu estive escondido com Netero estudando e treinando em outros países. — Nada que eu já não soubesse...

— Pensei que você se tornaria líder da Associação.

— Hm... tem gente mais qualificada para isso. — Ele me olhou por sobre o ombro parecendo ter se lembrado de algo. — Eu soube sobre o seu avô. Sinto muito.

Balancei a cabeça em negativo.

— Foi o preço — senti ele me estudar antes de assentir.

— Agora você está no comando — perguntou afirmando.

— Não totalmente.

— Qual a sua patente?

— General.

Não entendi o porquê da pergunta, mas não questionei. Ficamos em silêncio por mais um momento, o vento da madrugada nos castigando.

— Você se casou.

A minha boca amargou.

— E você?

— Tive um filho. A mãe dele e meu pai cuidam. Meu pai está pagando o tempo que não cuidou de mim...

— Hm.

Vontade de chorar. Estávamos evitando o assunto ou ele nunca tinha existido? Procurei a lua no céu, mas não a encontrei. Logo amanheceria. Quando meus olhos baixaram até ele, percebi que seus ombros tremiam.

— Gon? — E Gon chorava. — Gon?

 

whatever I feel for you

you only seem to care about you

is there any chance you could see me too?

'cause I love you

o que eu sinto por você

você só parece se preocupar com você

existe alguma chance de você pudesse me ver também?

porque eu te amo

is there anything I could do

just to get some attention from you

in the waves I've lost every trace of you

where are you?

há algo que eu poderia fazer

apenas para ter alguma atenção de você

nas ondas perdi todos os rastros de você

onde está você?

 

Meus pés se arrastaram até ele, uma tormenta gigante em meu peito. Quando toquei seus ombros nus, Gon me deu um soco. Escorreguei da pedra caindo na água, não por que não pudesse me defender, mas porque não tive forças.

— Onde esteve você, droga?! Onde você esteve todo esse tempo, maldito?

Ele chorava pesado, as lágrimas grossas caindo enquanto ele berrava, um braço sobre os olhos como uma criança. Quando olhou para mim desviei o olhar. Isso deve tê-lo deixado puto porque se jogou contra mim socando meu rosto. Tinha montado em meu colo e se molhado também.

— Gon... — eu estava estupefato. Como ele podia falar o que estava preso em minha garganta com tanta facilidade — Gon... — um soluço escapou em meio ao sussurro, meus os olhos marejaram e isso fez ele parar, a cabeça abaixada sobre o peito.

Me levantei bruscamente, sentando e o fazendo ir para trás, mas o agarrei antes que caísse deitado e o abracei apertado. O calor dos corpos juntos, beijei a lateral do seu rosto e afundei em seu pescoço deixando o choro sair em meio aos berros. Um lamento que vinha do fundo da minha alma. Quando o pior passou percebi que ele tinha se acalmado e acariciava meu cabelo retribuindo o abraço.

Quando ergui a cabeça, nossos olhares se encontraram por um momento indefinido. Senti Gon puxando meu cabelo e me fazendo deitar na areia molhada enquanto encaixava sua boca na minha. Meus olhos permaneceram abertos num primeiro momento, eu estava chocado. Mas o calor dos seus lábios nos meus era algo que precisava ser apreciado mesmo que fosse loucura, então me entreguei aquele beijo que durou longos minutos.

Nos separamos e ele saiu de cima de mim relutante se sentando na água que a última onda tinha trazido ao meu lado.

— Killua, eu... — ele parecia não saber se explicar, mas não precisava.

Eu me levantei o assustando e comecei a tirar a roupa enquanto ele me olhava estupefato.

— Vamos — chamei enquanto entrava no mar.

Mergulhei sem olhar para trás, a água congelante me fazia perder o fôlego, mas segui adiante até estar há uns vinte metros da praia. Ele surgiu pouco depois perguntando o que eu estava fazendo e então eu o puxei pela nuca e o beijei.

Estávamos tremendo, sentia seu queixo bater e seus braços me comprimindo procurando calor, eu estava apertando os dentes, mas quando o sol começou a submergir da água e os fracos raios amanteigados tocaram seu rosto, seus olhos, seus cabelos, sua pele, suas rugas, criando inúmeros cristais na água, eu voltei a chorar, mas de alegria. Gon estava comigo. Era o mesmo Gon que eu amei quando criança. O mesmo Gon que eu amei a mundos e eras de distância. O meu Gon estava comigo.

Estávamos juntos finalmente e então eu disse. O que estava entalado na garganta, reprimido, mas presente em cada poro meu. Eu te amo. E soube nos seus olhos surpresos que era correspondido. E embora isso não mudasse minhas responsabilidades, não resolvesse meus problemas nem me prometesse uma vida de paz e alegria, eu estava completo.

 

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Ah! Foi um longo caminho chegar até aqui hahahaha' eu escrevi umas três versões dessa história até achar numa que me agradasse... Obrigada por ter acompanhado o resultado da minha jornada e espero que tenha gostado. Adorei ter trabalhado com uma versão madura de Gon e Killua — confesso que prefiro o romance deles assim. Desculpem a tristeza excessiva, mas se você deu uma olhadinha na música vai entender, rs. E fala sério, essa música é perfeita demais para esses dois ♥

Ainda sobre a música, e essa nota vai para Bonifácio Vieira que jogou ela na panela (se um dia ele chegar a passar por aqui, claro), antes do sorteio eu acompanhei algumas sugestões para saber qual tentaria recorrer se caísse com uma música muito difícil e a ideia para a fanfic veio instantaneamente ♥ Fiquei de queixo caído quando ela saiu para mim! Adoro piratas e até podia usar como gancho para outra fic, mas essa música pediu para que eu escrevesse sobre esses dois Romeus, então desculpe não ter seguido sua deliciosa sugestão.

Novamente, obrigada a todos que lerem. Jaa~



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Where Are You?" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.