Entre Páginas escrita por Raíssa Duarte


Capítulo 3
Capítulo 3


Notas iniciais do capítulo

Boa noite!



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Amanda estava em casa, preparando a refeição no cortiço, acompanhada de sua avó. Mas sua mente estava em outro lugar. Há dois dias antes.
   Não quero você aqui. Você já teve sua aventura. Agora volte para casa.
   A conversa fora um pouco mais dura do que ela gostaria. Estava trabalhando, e não poderia bater papo com o pai dentro do ambiente de serviço. Heitor Passos, no entanto, não tinha nenhuma consideração pelo emprego da filha. Ele na verdade, parecia querer que ela fosse demitida.
   Por que está fazendo isso, Amanda? O que você quer de mim? Quer que eu exija que este senhor a demita? Você não precisa disto.
   Ela pedira que o pai mantivesse o tom calmo para não chamar atenção. Pedira que se retirasse e respeitasse sua decisão. Outros clientes haviam chegado e precisavam de atendimento.
   Você vem comigo agora, mocinha. Tolerei sua idéia maluca por tempo demais.
   Amanda implorou para que fosse embora. Ele se recusou. Erguera-se de sua cadeira, imponente, como se estivesse pronto para exigir sua demissão e arrastá-la pela orelha para seu casarão como se ela ainda fosse uma garotinha. Seu Manoel a demitiria. Ela tinha certeza. Ninguém negava nada ao influente Heitor Passos, antigo Marquês de Petrópolis. Mesmo que um senhor tão humilde como seu patrão não conhecesse tal figura importante, era óbvio que seu pai não era alguém a ser ignorado. Sua postura gritava um alto status social.
   Amanda então propusera um acordo. Conversaria com o pai na primeira oportunidade. Em seu dia de folga.
   -Menina, tá com a cabeça aonde? – Sua avó repreendeu. – Quase deixou a canja grudar no fundo.
   Amanda pediu desculpas e voltou a mexer o conteúdo da caçarola.
   -Menina, o que aconteceu? ‘Cê’ tá estranha...
   -Nada, vózinha. – Tranquilizou tentando recuperar o fundo da refeição
   Zilda soltou um resmungo e a olhou com olhos certeiros;
   -Eu não nasci ontem. Me diz a verdade.
   Amanda abriu a boca, mas não tinha o que dizer. Seu pai era sempre um assunto delicado.
   -Essa canja sai hoje, mãe? – Perguntou Helena, salvando a filha da resposta.
   -Se a Amanda não queimar, sai sim. – Colocou um pouco de sal e então exigiu a colher de madeira silenciosamente com a mão. Experimentou e devolveu o objeto para a neta.
   -Quase pronta, mãe. – Respondeu.
   Antes que sua avó pudesse retornar ao tópico anterior, Amanda discorreu a falar novidades dos jornais, sobre seu dia, mas tinha certeza de que sua avó era esperta demais para não desconfiar. Seus olhos semicerrados diziam isso. Mas felizmente não tocou mais na questão.

                       ◇◇◇

—Rio de Janeiro? – Bufou Conrado. – Esta é sua solução? Mandá-la com o rabo entre as pernas para sua irmã?
   Amélia retirou os grampos do cabelo, encarando o marido pelo espelho central da penteadeira.
   -E qual é a sua solução? Deixá-la aqui em casa, com o rabo entre as pernas? Porque você sabe muito bem o que vai acontecer quando o canalha começar a desfilar com a fujona pelas ruas da Capital ano que vem. E não falemos sobre o que virá quando e depois de se casarem.
   Conrado passou a mão pela barba escura, insatisfeito.
   -Qualquer uma das opções é dramática para nossa filha. – Afirmou sua esposa apanhando uma escova – Mas somente aqui, é crítica. Ah, todos vão falar dela... – Colocou uma mão sobre o rosto, como se já conseguisse ouvir a fofoca das pessoas. – Ao menos no Rio ninguém a conhece... Ela poderá encontrar um rapaz... Voltará casada. E essa dor de cabeça ficará no passado. – Suspirou e penteou os cachos claros.
   O silêncio reinou no quarto.
   Conrado cedeu.
   -Ela vai depois do ano novo. Em fevereiro.
   -Você quer que ela compareça ao casamento da outra?
   -Janeiro, então. Vamos mandá-la de presente para sua irmã. – Ironizou abotoando as últimas casas do pijama.
   -Vamos mandar Luísa também. Ela pode se arranjar por lá assim como a irmã.
   Conrado não tinha a menor vontade de permanecer naquele maldito assunto. Já lhe era suficiente a animosidade com seu amigo por conta da molequice do filho. Arquitetara sempre o melhor para seus filhos, e após ter recusado outros pedidos de casamento para aceitar um Ramos como genro, a decepção era pungente.

                       ◇◇◇

Amanda foi levada até a mansão de seu pai em uma charrete fechada bem cedo. Ela não queria ser reconhecida ou ser vítima de fofoca. Teria de comprar algo no armazém como a desculpa perfeita para sua mãe.
   Ao parar na propriedade que conhecia muito bem, sequer precisou se apresentar aos empregados. Mas eles a olharam com muita curiosidade. A filha do patrão usando roupas tão abaixo de seu nascimento.
   Mas seu nascimento era baixo, sendo bastarda.
   O sol já estava a postos, irradiando seu calor quando Amanda foi até a Sala de Jantar, onde seu pai a esperava.
   -Sente-se e coma alguma coisa. – Ordenou. Era algo muito usual á ele. Dar ordens. E ser obedecido.
   -Eu já comi.
   -Então sente-se. – Não foi um pedido.
   Seu pai foi servido por uma negra que não encontrara trabalho após a escravidão. Ela sabia que seu progenitor tratava seus empregados com dignidade e respeito. Amanda até mesmo conhecia a mulher, e sorriu ao vê-la.
   -‘Sinhorita’ Amanda! A senhora voltou?! – Regina a recebeu com um enorme sorriso.
   -Eu não vou ficar muito, Regina. – Sentia saudade daqueles que já conhecia dali.
   -Ah, sinhá... – O sorriso murchou.
   -Regina... – Seu pai interrompeu calmamente. – Vá chamar as crianças para o desjejum.
   -Sim, ‘sinhô’. – A mulher saiu do amplo cômodo.
   -Eu não posso demorar muito.
   -Então serei direto. A situação é simples; Vá até aquele gentil senhor e peça suas contas.
   -Não posso.
   -‘Não pode’... – Replicou-a com uma calma fria. - Ou não quer.
   -O senhor sabe o porquê.
   -O que eu sei, é que encontrei minha filha servindo mesas e retirando pratos em um bar.
   -Não há nada de errado nisso. É um trabalho digno.
   -É um trabalho digno do qual você não precisa. Ceda o lugar para uma moça que esteja em pior situação do que você. Volte para casa. É o seu lugar.
   A possibilidade de poder estar ocupando algo que outra pessoa poderia precisar mais fez Amanda morder o lábio, hesitante.
Mas viver escondida na Mansão Passos... vestir a melhor seda e comer do melhor banquete, e ainda assim sair das vistas de visitantes...
   Seu pai não queria escondê-la. Ele a amava. Amanda tinha a mais absoluta certeza disso. Mas viviam no país onde viviam. Onde todos sabiam que Heitor tinha uma bastarda com uma mulher negra. Com uma ex-escrava. Mas saber e tolerar a presença da bastarda eram coisas diferentes. Seu pai sempre a protegeu de olhares maldosos. Ela era sua criança.
   E agora, ele novamente queria protegê-la da vida.
   Mas sua avó e mãe haviam enfrentado tanto sem nada...
   Ela não as abandonaria. Por mais que sua mãe insistisse... Ela não viveria no conforto e no luxo enquanto sua mãe lavava roupas no riacho e sua avó cansada e idosa cozinhava para alguns habitantes do cortiço em troca de alguns trocados.
   Amanda ficou em silêncio, não querendo magoá-lo. Contudo, seu pai era um homem perspicaz;
   -O que você quer? Não vai aceitar que eu a sustente, não é? Mesmo sendo você minha filha.
   -O senhor sabe como serão as coisas se eu viver aqui.
   Amanda poderia ter o mesmo conforto que sua irmã Nicole, mas as duas seguiriam caminhos inegavelmente diferentes. Sendo filha ilegítima de um branco e uma negra... Tendo a pele escura, jamais casaria com um rapaz rico de boa família, como sua irmã. O mais provável é que permanecesse na cozinha, longe das pessoas. No cortiço, poderia encontrar um homem honrado que a amaria sem preconceito algum, alguém como ela... Amanda queria sua própria família, mas desejava respeito ainda mais.
   -Então trabalhe para mim. – Sugeriu, embora também soasse mais como uma intimação. – Traga sua mãe e sua avó. Sabe que elas serão bem tratadas. Podem ter uma casa como a dos colonos. Sua mãe sequer precisaria me ver.
   A moça poderia jurar que seu pai fora esculpido em aço enquanto falava.
   -Você já sabe quem vive em cortiços, não sabe? O tipo de gente com quem está convivendo... – Heitor não conseguia esconder sua incredulidade.
   -Pessoas honradas! – Insistiu. – Não é um lugar perfeito...
   -Um eufemismo.
   -Mas muitas pessoas honestas vivem lá. – Continuou. – Pessoas que não tem para onde ir.
   -Você é uma delas? – Alfinetou.
   Amanda olhou para a determinação inabalável nos olhos do pai, sabendo que aquele tipo de acordo que ele propunha nunca funcionaria. Ela não poderia aceitar uma casa e um trabalho. O homem á sua frente não se controlaria. Favoreceria á ela e sua mãe. E Helena não suportaria ser chamada de ‘a prostituta do patrão’. Não novamente. Amanda não exporia sua mãe á tal vergonha.
   -Pai... Estamos bem...
   -Não tente me enrolar.
   -Nós já nos adaptamos... Eu já me adaptei.
   O olhar dominante e reprovador continuava ali.
   -Pode ficar de olho em mim, se quiser... – Sugeriu. - Eu mando notícias, pode me ver também sempre que quiser. Mas... vamos manter as coisas como estão...
   -Isso não me agrada.
   -Eu sei. – Concordou com a cabeça. – Paizinho, tudo bem... Cândido já toma conta de mim perfeitamente, o lugar onde vivo é melhor do que outros. E... – Sorriu encabulada. – por mais estranho que possa parecer, eu gosto de trabalhar.
   Passos a olhou firmemente.
   Por favor, aceite... Pensou. Já está sendo difícil lutar com mamãe também, não posso com os dois.
   -Então você vai aceitar um dinheiro meu. – Afirmou a contra gosto. - Para emergências. E se precisar de alguma coisa, vai me avisar. Imediatamente.
   Não haveria recusa.
 Amanda sorriu, concordando, entusiasmada com a pequena vitória.
   -Sim, senhor.
   -E agora, antes que saia, coma um pouco comigo e seus irmãos.
   -Manda! – Nicole a abraçou por trás, sendo seguida por seu gêmeo, Inácio.
   -Mas o que é isso? – Fingiu um susto.
   -Não é assim que se assusta, Nicole. – Brigou Inácio.
   -A Manda se assustou. – Respondeu.
   Amanda levantou-se e abraçou ambos os pequenos de onze anos, rindo.
   -Manda, você veio brincar com a gente? – Perguntou o menino ainda esfregando os olhos.
   -Eu bem que gostaria, mas tenho que ir...
   -Você vai brincar com outra pessoa? – Ele estava com ciúmes. – Papai disse que você ia voltar para casa porque brincar lá fora não é divertido.
   A garota riu.
   -Ás vezes pode ser. Mas venho brincar com vocês quando puder. Por enquanto podem brincar com a Regina.
   -Não, Sinhá. – Reclamou a mulher que trouxera as crianças. – Esses dois precisam é estudar. Daqui a um tempo o Sinhôzinho Inácio vai pro estrangeiro aprender que nem o seu Eduardo.
   -Eu vou também, Manda. – Afirmou Nicole, em toda a sua certeza infantil.
   -A Sinhá vai casar muito bem. – Regina colocou a menina sentada sobre a cadeira antes que ela decidisse que aquela era uma ótima hora para apostar corrida com o gêmeo. Logo fez o mesmo com Inácio.
   Amanda comeu rapidamente um pouco enquanto o pai acertava os detalhes da quantia que enviaria. Não muita, ou haveria um novo debate.
   -Bem, eu devo ir. – Disse quando viu o relógio no canto da área. Sua mãe desconfiaria. Piscou com carinho para os irmãos e beijou o rosto do pai, pegando-o de surpresa. – Obrigada, paizinho.
   Saiu da mansão rumo ao armazém mais próximo onde a charrete poderia deixá-la para que então seguisse sozinha.

                      ◇◇◇

—Mel? Você prestou atenção?
   -Uh? – Melissa ergueu o olhar de seu baú. Estivera encarando-o por um tempo, sem saber ao certo o que fazer. As sobrancelhas franzidas, formando um vinco na testa.
   Estavam planejando o que levar na viagem, testando quantas bagagens seriam necessárias, quantos baús.
   Luísa estava um tanto indignada.
   -Você não ouviu nada do que eu disse? Eu perguntei qual dos dois você acha melhor para a viagem. – Luísa ergueu ambos os vestidos.
   Melissa continuava com a cabeça no mundo da lua.
   -Sabe, você é uma incógnita. – Resmungou Luísa, deixando as peças para sentar-se em uma poltrona. – Não ama Rodolfo, mas ainda assim fica suspirando por ele.
   -Acho que ando suspirando por ele? – A insinuação finalmente desertou sua atenção. – Estou suspirando por mim mesma. Quanto tempo acha que vai demorar até a fofoca começar?
   -Nós estaremos no Rio até lá. – Deu de ombros. Nem sequer fora consultada sobre querer ou não deixar São Paulo.
   -Sim, ficarei escondida, procurando desesperadamente por um marido para que não volte para cá fracassada. De qualquer modo saberão que fui uma pobre coitada abandonada.
   -Nós duas sabemos que você não é nada disso.
   -Ah, Luísa, as coisas que falarão de mim... – Deu um sorriso amargo. – Eu sou a carniça perfeita. Os abutres vão adorar. Júlia vai dar pulos de alegria. Torço apenas para que a maledicência não se espalhe até a casa de titia.
   -Você vai superar isso.
   -Ah, eu espero que sim. Uma reputação é tudo que nós moças temos. –Retirou um traje pendurado em um cabide em seu amplo guarda-roupa. – Se eu fosse um homem, daria um tiro nele. No ombro ou perna. Far-me-ia imensamente feliz.
   -Você teria de desafiá-lo para um duelo.
   -Isso mesmo. Mas duelos são proibidos e eu jamais pediria tal coisa á papai ou Leo... – Continuou normalmente, inspecionando o traje e então deitando-o sobre sua cama. – Como uma dama, eu poderia esbofeteá-lo. Acabar com o bom nome dele. – Suspirou. – Mas isto nunca tem efeito nos homens como tem nas mulheres. É bem mais capaz de ele acabar com meu nome. – Voltou a procurar. – Vamos para o Rio de Janeiro ano que vem e encontrar maridos. Continuemos o assunto anterior, por favor. Por que não levar ambos? São lindos.
   -Porque não terei espaço no baú para meus livros se levar muita coisa. Você já tem mais do que o suficiente. Não pode deixar um ou dois vestidos para levar estes?
   Melissa sorriu meigamente;
   -De jeito nenhum. Seus romances estarão perfeitamente seguros aqui. Leve menos livros.
   Luísa bufou e decidiu que não precisava tanto assim do vestido amarelo, mas precisava imensamente de Jane Eyre. Sua mente divagou ligeiramente para o que a aguardava;
   Casar. Ano que vem.
   Ela não se sentia pronta. Contudo, talvez, apenas talvez, ela encontrasse um rapaz romântico e sensível como ela... Alguém como Henry Tilney de A Abadia de Northanger. Doce e gentil.
   Sim, ela pensou. Não seria tão pessimista á respeito de sua temporada. Ela vinha praticando seu piano e agora tocava quase tão bem quanto Melissa, que o fazia várias vezes. Só precisava ser menos tímida, e fazer amizades. Sair mais de casa também.
O mundo estava fora de seus romances, e quem sabe não fosse hora de ela conhecê-lo.

O Natal veio com festividades na Mansão Albuquerque com ceias fartas, e embora faltasse um membro na família, e houvesse uma leve nuvem de preocupação sobre o futuro de Mel, eles se alegraram e comemoraram.
   No meio de janeiro, Melissa e Luísa partiram para a casa da tia, no Rio de Janeiro.


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Notas finais do capítulo

*_*
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