Entre Páginas escrita por Raíssa Duarte


Capítulo 16
Capítulo 16




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—Absolutamente fora de questão. – Afirmou Heitor, assinando seus papéis sobre a mesa. Sua filha teimosa estava sentada com as pernas cruzadas sobre um divã do escritório. – Se você finalmente foi demitida, sossegue e poupe-me de enxaquecas. Este papel é dos seus irmãos pequenos.
    -Eu estou pedindo seu conselho para qual vaga eu deveria me apresentar. Pensão ou alguma casa nobre? – Retrucou audaciosamente. Era claro o quanto ela se divertia em dar-lhe fios de cabelo branco.
    O homem a olhou com censura, enquanto virava uma página da pasta, e então seus olhos claros voltaram para o material em mãos.
    -Eu não sei mais o que fazer com você. Não peça minha opinião a respeito de um despautério desses.
   Ela também não sabia o que fazer consigo mesma.
   -Eu poderia aprender a fazer comidas refinadas trabalhando em uma casa de respeito.
    -De jeito nenhum você vai trabalhar em uma casa onde terá de fazer tudo.
   -Então uma pensão. A da Sra. Emengarda.
  Heitor a ignorou, demonstrando sua desaprovação.
    Amanda mordeu o lábio, sem saber como abordar o assunto que vinha ocupando sua cabeça ultimamente além da questão profissional.
    Não sabia até onde a história de seus pais ia. Sua mãe era uma ostra com relação ao tema, e seu pai era obviamente interessado em tudo que ela tinha a dizer sobre sua mãe. Incluindo bem estar ou a mera conversa do dia-a-dia. Tampouco sabia o que impedia sua mãe de se envolver romanticamente com qualquer um. Talvez fosse o jeito dela. Mas Manda simplesmente não conseguia acreditar que sua mãe gostasse de permanecer sozinha. Sem um par.
  -Minha mãe têm recebido flores ultimamente. Mas não sei de quem são. – Sondou fingindo desinteresse.
   O silêncio de seu pai revelou o que estava por trás do gesto, naturalmente.
  -O Sr. Armando consegue ser muito atencioso. - Continuou.
   -Quem? – Heitor ergueu a cabeça e parou de assinar.
  -É um cliente dela. – Gesticulou com a mão, como se a informação não fosse importante. – Ele também come a comida da vóvó. Foi ele que nos ajudou com nossas coisas quando chegamos ao cortiço... Acho que mencionei isso uma vez...
   Heitor manteve a boca fechada, mas o aperto na caneta mudou ligeiramente;
    -Um cliente...
    -Mas é claro. O que mais poderia ser? – Piscou inocentemente.
    -Nada. – Concordou. – Contudo, ele está excedendo os limites entre cliente e empregado.
    -Ela lava as roupas dele, só isso. Não é empregada dele.
   -Sua mãe é livre e adulta. Pode escolher para quem presta trabalho. – A ponta da caneta provocou ruídos irritantes no papel.
   Amanda inspirou, constatando que seu pai estava com ciúmes.
    O que havia acontecido entre eles?
  E porque parecia ainda não ter terminado?
  Amanda sempre desconfiou que sua concepção envolvera um caso de amor mal fadado e mal finalizado. Se seus pais ainda se amassem, haveria alguma chance para eles? Sua madrasta estava morta, e ambos eram solteiros.
   Seria possível que seu pai temesse o escárnio da sociedade ao assumir sua mãe? Ou o contrário? Helena detestava ser alvo de fofoca ou maledicência. Ela já tivera seu quinhão de mexericos no tempo que em que vivia na fazenda, sob a alcunha de amante do patrão.
   Amanda entendia que seu avô era autoritário e jamais teria permitido que seu filho desposasse uma escrava. Mas a escravidão acabara, e seu pai sempre fora um homem de influência e poder na região. Ele era aquele que uma parte mais baixa socialmente da elite tentava impressionar ou agradar.
     Infelizmente, havia um limite naquele assunto que Amanda não se arriscava a cruzar.

                       ◇◇◇

Luísa e Sofia foram interrompidas no meio de sua conversa com a chegada da mãe da espevitada, e uma empregada;
   -Mandei trazer um lanchinho com refresco para vocês. – Seu sorriso era simpático, e diretamente direcionado á Luísa. – Neste calor, é melhor nos mantermos refrescadas, não é? – A empregada silenciosamente posicionou a bandeja bem polida sobre a mesinha próxima as poltronas claras sobre as quais as meninas estavam sentadas relaxadamente.
    -Tem razão, Sra. Medeiros. – Os cantos dos lábios de Lu puxaram-se para cima, meigamente.
   Marguerite Medeiros juntou as mãos delicadamente, após a refeição ter sido servida;
   -Vou deixá-las á vontade. Sinta-se em casa, querida.
    Saiu com as saias pesadas provocando barulho suave.
    Sofia explodiu em gargalhadas assim que as mulheres deixaram o aposento;
    -O que foi? – Indagou a Albuquerque.
  -Não é óbvio? – Os olhos azuis de Sofia estavam divertidos. – Aquilo foi um pedido de socorro; ‘Por favor, case-se com meu filho imbecil’.
    Luísa bufou, sua franja levantando-se para logo em seguida descer.
    -Pare com isso.
    -Ora, não finja que não sabe o que nossos parentes estão pensando. E planejando.
  -Lamento, mas eu e seu irmão frustraremos os planos deles.
   Sofia focou seu olhar em um canto do quarto, pensativa;
  -Eu gostaria se você fosse minha cunhada. Todas as outras garotas julgam-me pelo meu jeito... diferente. Você só acha esquisito.
    Lu deu um risinho;
  -Somos duas páreas sociais. Talvez esse seja o motivo por estarmos nos dando bem.
    Sofia agarrou suas mãos agitadamente;
   -Por favor, case-se com meu irmão! - Suplicou - Assim você ficará aqui no Rio de Janeiro e seremos irmãs! Roberto tem que ser útil pelo menos uma vez na vida!
     Luísa olhou-a, boquiaberta.
   -Eu definitivamente não vou me casar com seu irmão só porque você me pediu.
   -Mas se você não se casar com ele, ninguém mais vai. Ele é insuportável.
    -Eu sei. Por isso quero distância.
   -Mas você já está acostumada! E não tem medo de ferir o ego ridículo dele! Aquela mancha de ponche não saiu nunca, ele teve que jogar a camisa fora! – Riu.
    -Então pelo bem do guarda-roupa dele, encerremos o assunto.
   Sofia semicerrou os olhos matreiramente;
   -Você não gosta dele? Nem um pouquinho assim? – Fez uma quantidade mínima entre o polegar e o indicador.
    -Não!
   -Que pena... – Deu de ombros. – Desde o dia na biblioteca ele não fala de outra coisa a não ser você.
    Luísa sentiu as bochechas queimando de vergonha, estendendo-se até o rosto inteiro.
   -Não deveria ter mandado-o me pedir desculpas.
    -Eu não mandei.
  A moça piscou atordoada diante da réplica tranquila.
    -Como assim?
   -Aquela mula nunca faz o que ninguém manda. Eu dei uma bronca e disse para se desculpar com você, entretanto, se ele foi até sua casa fazê-lo, foi porque quis.
    -Vocês sempre se dão bem assim?
   -Naturalmente. – Sorriu Sofia. – Ele pensa que é o papai. Acha que pode controlar minha vida mais do que meu pai já faz, só porque é mais velho.
    -Ele só quer te proteger. - Luísa sentiu necessidade de defender Roberto, já que nunca lhe parecera que ele não amasse a irmã ou se preocupasse com ela. - Antes de meu irmão ir para a faculdade, ele também queria ficar de olho em tudo que eu e minha irmã fazíamos.
   -E um dia... Eu vou passar das mãos do meu pai para um homem qualquer. – Suspirou.
    -Você pode se apaixonar. – Animou Lu.
   -Na verdade não sei como meu pai ainda não me arrumou ninguém. Acho que ele está esperando o maior ricaço aparecer.
   -Por enquanto você pode tentar conhecer alguns rapazes...
    Sofia cruzou os braços;
   -E por que você não faz o mesmo?
    Luísa inflou as maçãs do rosto, cansada.
    -Podemos falar sobre outra coisa?

                        ◇◇◇

Melissa estava acompanhada de sua tia em uma loja de tecidos, para escolher alguns apropriados para seu enxoval que deveria ficar pronto antes do casamento. Sem contar no guarda-roupa novo que Melissa desejava, banindo de vez o rosa, salmão, creme e todas as demais cores de donzela. Ansiava por toda uma imensidão de cores e possibilidades de vestidos mais ousados para mulheres casadas, que vira em suas revistas de moda. Sua mãe teria amado ajudar a escolher, contudo, confiava na irmã o suficiente para deixá-la decidir com a filha.
   Quanto ao seu noivado, tudo ia muito bem. Henrique tornara-se muito mais prestativo, e inclusive a levava para sair em locais públicos. Melissa apreciou o esforço, sabendo o quanto ele detestava perder tempo andando por aí. Não vira sua futura sogra desde então.
    -Este azul é perfeito. – Aproximou o pano de si mesma e esperou pela opinião da tia.

A parenta ergueu as sobrancelhas;
    -Combina com você.
 -Que tal vermelho? – Sorriu maliciosamente.
    -Também não ouse demais, Melissa. Você é quase uma recém casada. Vamos devagar. Ora... – Sua vista perdeu-se em um ponto da loja. – Fitas para chapeis... Preciso encomendar novos. Já volto, querida.
    Melissa distraiu-se com um tecido branco cintilante, muito adequado para um baile, e acabou chocando-se com uma jovem que passava por ali.
   -Ah, peço desculpas, acabei distraída... – Sua voz parou quando enxergou a pessoa com quem provocara o acidente.
     Bianca Ferraz.
    Melissa forçou seus dedos a manterem o tecido firme em mãos. Engolindo em seco, acenou com a cabeça;
    -Srta. Ferraz. Como vai? – Boas maneiras em público. Sempre.
    Felizmente Bianca também recordava-se desta lição. Ensinada á ela por Melissa.
    -Muito bem. E a senhorita?
   -Ótima. – Manteve a expressão tranqüila no rosto.
  Ambas encararam-se como meras estranhas, e então Bianca tomou seu próprio caminho dentro da loja.
    Melissa respirou fundo.
    Era difícil assim admitir que não sentia-se bem com aquilo?
  Perdendo o interesse nos outros materiais, decidiu que compraria todos os tecidos que já escolhera e pediu a tia para irem embora.
  Já na rua, prestes á entrarem na carruagem, Amália perguntou;
   -Aquela ruivinha na loja não é Bianca Ferraz? Aquela que visitava tanto você? Nunca mais a vi. Estava doente?
   Melissa levantou cuidadosamente a cauda do vestido engomando para subir o degrau do veículo. Sem olhar para a tia, respondeu;
    -Não sei.
    -A senhorita está se misturando demais com burgueses, mocinha. – Amália sentou-se e arrumou a própria saia de um tom Borgonha e mandou que o condutor as levasse para casa.

                       ◇◇◇

Helena tentou cozinhar um ensopado de frango, mas nunca fora boa cozinheira. Sua mãe, no entanto, continuava a empurrá-la para a cozinha, esperando que um dia o talento culinário simplesmente a alcançasse. Ela conversava com uma vizinha de um quarto do prédio enquanto o jantar era preparado.
   Um raspar de sapatos chamou sua atenção. Virando-se para a mãe, surpreendeu-se em não encontrar um rosto negro e idoso, e sim de seu passado.
   -Sabe que horas são?! – Indagou, indignada. – Como se atreve a vir aqui nesse horário? – Seu tom de voz era baixo,  para não chamar atenção. Todavia, continha raiva nele. – Meu nome vai estar na boca de todo o cortiço amanhã.
   Heitor trazia na face uma expressão absolutamente impassível. O maxilar rígido e os olhos verdes faiscavam com uma energia indecifrável.
    -Quem é Armando?
    Helena piscou os olhos, alerta.
  Amanda teria de lhe dar uma excelente explicação.
  -É um cliente. Embora eu suspeite que Amanda já tenha dito tudo sobre ele. – Mexeu o conteúdo da caçarola. A última coisa da qual precisava era comida queimada empesteando o ar do prédio.
   A voz ás suas costas demandou em um tom irritante;
    -Desejo saber de você.
 Helena não conseguiu segurar uma risadinha sardônica;
   -Por que eu devo alguma satisfação á você, é claro.
   -Você entendeu o que eu disse. – Sua sombra projetava-se sua cama pequena, reflexo da luz do fogo.
   -Nossa única ligação é Amanda. Não tenho que dar explicações á você. Vá embora antes que minha mãe chegue. – Não queria nem pensar na reprimenda que receberia. Não queria nem pensar no que todos pensariam dela no dia seguinte.
    Colocou a caçarola distante do fogo, sobre a palha seca, para evitar que queimasse.
   Heitor aproximou-se e segurou-a pelo braço levemente;
   -Há mais de um ano eu tenho corrido atrás de você, Helena. Estou ficando cansado.
  Lena riu outra vez, saboreando a frustração dele.
    -Então eu deveria correr para você antes que se canse de mim, não é?
    -Se gosta de me atormentar como forma de me punir, então me diga de uma vez, assim eu poderei parar de alimentar qualquer esperança.
    Olhou-o nos olhos, firmemente;
  -Eu já disse para abandonar qualquer esperança sobre nós dois. Você insiste por vontade própria.
  -Eu teria parado. – Encarou-a com a mesma firmeza, em um quase embate de vontades. Nenhum cedendo. – Se soubesse que não me quer mais. Todavia, eu sinto que ainda me ama, Lena. Apenas me afasta. Está tentando me empurrar para longe com outro homem?
    Helena soltou-se de seu aperto, zangada;
   -Acha que sempre é tudo por causa de você? Eu não tenho nada com meu cliente. E se tivesse, não seria da sua conta. – Colocou as mãos sobre os quadris. – Não é como se você tivesse direito de me exigir qualquer coisa.

A indireta atingiu seu alvo certeiramente. E feriu.
   -Pérola está no meu passado. – Murmurou ele, decepcionado. – Deixe-a lá.
    Lena empinou o queixo, teimosamente.
     -Assim como eu.
   Heitor balançou a cabeça, cansado de ser rechaçado.

A quietude pairou, assim como o constrangimento.
     Nenhum dos dois tinha mais nada a dizer, e desencorajado, Heitor saiu em silêncio.
     Ele finalmente entendera.
     Talvez deixasse de tentar daquela vez.
   Helena conseguira o que tanto pedira á ele.
    Então por que sentia-se tão mal?
   Sentiu as bochechas úmidas e notou as lágrimas escorrendo.
   Parecia tão usual para ela que quase todos os seus encontros com ele terminassem em lágrimas.
   Aquela história estava fadada ao fracasso desde o início.
    Contudo, ela sempre foi tão teimosa.

                        ◇◇◇

Levou a sopa quente até sua mãe e ajudou a vendê-las mais tarde. Amanda estava em um quartinho dos fundos do cortiço, conversando com uma moça com quem começava uma amizade.
     -A gente vai ter que se mudar daqui se continuar do jeito que ‘tá’. – Alfinetou Zilda, enquanto levavam a caçarola vazia e já limpa de volta para o quarto após venderem tudo. – O problema é que ele nunca para de ‘vim’. Você devia casar logo com um moço daqui, assim ele toma vergonha na cara e para com isso.
   -Eu já resolvi o assunto. – Helena pendurou a panela no gancho que a sustentava sobre o fogo, que agora resumia-se á cinzas e brasas. Quatro velas de sebo espaçadas entre si iluminavam o cômodo quase minúsculo.
   -Amanda deve ter perdido a noção da hora. – Alongou o pescoço, exausta. – Vou buscá-la.
   -Como você ‘resolveu’ a situação? – Limpou as mãos no avental.
    -Não se preocupe.
  -Me preocupo, sim. Ele é muito escorregadio, e pra levar você na conversa, é assim, ó. – Estalou os dedos.
     Helena suspirou.
    -Eu não sou mais uma criança. – Olhou para a mãe, decidida, com a voz um tanto exaltada. – Sou adulta, e livre. Posso fazer minhas próprias escolhas.
    -Só não esquece do que eu e você ‘temo’ nas costas. – Relembrou Zilda, desconfiada do temperamento da filha. – É só isso que eles tem pra gente.


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