Meu querido sonâmbulo escrita por Cellis


Capítulo 1
Minha querida casa


Notas iniciais do capítulo

Olaaaa!
Para quem veio lá de "Iguais, porém opostos" espero que goste dessa minha pequena válvula de escape. Logo estarei por lá novamente.

Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/770869/chapter/1

Qual foi a coisa mais estranha que já lhe aconteceu?

Coisas estranhas acontecem o tempo todo com pessoas igualmente estranhas (ou não, na verdade), mas sempre há uma característica peculiar que torna cada uma delas especial. Nenhuma história de fantasma é exatamente idêntica e nenhum deja vú é igual, assim como todas as outras situações inusitadas na qual você possa ter pensado como resposta à minha pergunta.

Bem, a coisa mais estranha que já me aconteceu é igualmente recente. Na verdade, esse acontecimento foi uma exótica consequência de uma série de outros fatores — para a minha sorte, não tão peculiares assim. Tudo começou há praticamente um par de décadas, mas o que realmente interessa agora é como tudo recomeçou.

— Parabéns, Jeon Soojin. — disse Yoongi com um sorriso discreto, disfarçando o quão orgulhoso realmente estava da minha pessoa.

Estávamos todos reunidos na sala de reuniões e meus colegas de trabalho, ao ouvirem o anúncio feito pelo Chefe Min, logo vieram me cumprimentar. Sinceramente, era provável que eles estivessem mais felizes por não terem mais que conviver comigo do que realmente pela minha promoção, mas isso é apenas um detalhe. Ser promovido naquela empresa era o diabo de difícil. Típico conglomerado com forte influência sobre a economia do país, a Maximum Group era mais uma daquelas empresas repletas de funcionários engravatados que se matam de trabalhar para sustentar a si próprios e também aos seus CEO’s; e, dentre o mar de ternos falsamente caros, estamos eu e a minha pouca altura.

E foi com o anúncio (oficialmente dizendo, pois Yoongi já havia me dado a notícia por debaixo dos panos) da minha promoção que tudo recomeçou. Depois de anos e mais anos trabalhando dia e noite no décimo andar da imponente sede da Maximum Group (o andar faz tudo que recebe ordens de todas as direções), eu agora passaria a trabalhar no décimo quarto, também conhecido como andar premium (o nome enfeitado para o andar dos executivos, onde circulam e trabalham os tais CEO’s e seus secretários de confiança). Sinceramente, não me enche muito os olhos poder caminhar por entre as salas que basicamente cheiram a dinheiro, mas há um fator essencial para que eu esteja tão feliz com a minha promoção: o salário.

Oras, eu sou humana também. Dinheiro pode não trazer felicidade, mas um salário duas vezes e meia maior do que o meu atual ajuda a encher a minha barriga, o que é muito bem-vindo. E, com uma conta bancária mais cheia, eu posso seguramente partir para a fase dois da história sobre como cheguei nessa situação.

— Mas, Soojin-ah... — chamou-me Naeun, batendo as longas unhas vermelhas contra o mármore da pia da cozinha. — Você não achou essa casa muito barata?

Lee Naeun tinha no rosto a expressão de desconfiança que sempre fazia quando alguma assistente era simpática demais com ela no trabalho, a qual era muito engraçada, por sinal. Como forma de comemorar a minha promoção, eu tinha convocado minha amiga para sair comigo depois do nosso expediente — nos conhecemos trabalhando no mesmo setor, quando ela me confundiu com uma estagiária e ordenou que eu lhe pagasse um café e eu, basicamente, a mandei ir para aquele belo lugar — para fazer aquilo que realmente me deixaria feliz e extasiada: comprar uma casa.

Calma, eu não sou maluca e faço pleno uso de minhas faculdades mentais. Lembra de quando eu disse que tudo isso começou há um par de décadas? Bem, cá estamos. Eu era criança e estava passando por uma rua da minha vizinhança acompanhada do meu irmão mais novo, ambos indo para o colégio, quando ele parou de caminhar de repente. Bem menor do que eu e com a franja negra caindo sobre os olhos, ele ergueu seu indicador na direção da mais bela casa da rua, de onde saía uma família feliz às sete da manhã. Pai, mãe e o filho (esse aparentando ter a mesma idade do meu irmão) riam e caminhavam até o carro, realmente feito um daqueles comerciais de margarina.

Os olhos do meu irmãozinho brilharam diante daquela cena.

Noona, eu queria que fosse a gente ali.

Ele era tão pequeno e a nossa situação era tão frágil naquela época, que sua frase dita com a típica língua embolada das crianças partiu o meu coração em vários pedaços.

Afaguei seus cabelos e ele me fitou atento como sempre.

— Um dia será. — eu disse, firme. — Eu prometo.

E foi assim, aos dez anos de idade, que eu estabeleci o maior objetivo de toda a minha vida. Os anos se passaram e meu irmão cresceu ao ponto de tornar-se maior do que eu, mas minha cabeça permaneceu a mesma. E agora, tão perto de alcançar essa aspiração, eu fitei Naeun disposta a ignorar sua observação.

— Eu acho que tive sorte, só isso. — respondi, sacudindo os ombros. — Essa casa está à venda há algum tempo já, os donos devem estar precisando de dinheiro ou alguma coisa assim.

Naeun arregalou levemente seus pequenos olhos castanhos.

Yah, essa promoção já começou a fazer a sua cabeça. — ela disse, brincando. — Eu lembro de quando você era extremamente realista e pensava em tudo... Agora acredita em sorte.

— Eu ainda penso em tudo, Naeun-ah. — retruquei. — Você sabe há quanto tempo eu planejo isso.

— Eu sei, eu sei. — deu-se por vencida, ajeitando os longos cabelos loiros (tingidos, obviamente) em um rabo de cavalo. Ela era uma das poucas pessoas que sabia da minha história. — A sua sorte é que eu estou aqui e vou arrancar fio por fio de cabelo dessa corretora se isso for uma frau...

— Então, Soojin-ssi. — a corretora de imóveis retornou à cozinha e Naeun calou-se no mesmo instante, o que me fez rir. Sem entender nada, a mulher continuou. — Podemos fechar negócio?

Eu respirei fundo e olhei ao meu redor. A cozinha daquela casa, assim como o restante dos cômodos, era grande e bem arejada. A enorme pia era coberta por um mármore claro, uma cor muita similar à do piso e à das paredes, e a generosa quantidade de luz que adentrava o ambiente dava ao mesmo um aspecto elegante. Havia um balcão no centro e eu podia facilmente visualizar aquela família feliz de anos atrás ali, cozinhando alguma refeição e rindo em pleno domingo.

Aliás, o que teria acontecido com aqueles três? Tinham se mudado, isso era um fato, mas seria interessante saber o porquê.

E o garotinho, já teria crescido o suficiente para estar na faculdade, como o meu irmão?

Sorri sozinha, atraindo um olhar confuso da corretora. Aquela casa de vários quartos e muito bem decorada, aconchegante e bem localizada, agora seria a minha casa.

— Sim. — eu respondi. — Podemos.

E assim nós chegamos à próxima fase. Depois de comprovar que em dentro de alguns dias eu passaria a receber um salário confortável o suficiente para pagar pelas prestações da casa, a documentação da mesma foi assinada por mim e no dia seguinte pelo proprietário — o qual eu cheguei sequer a conhecer, mas isso não importava. Seria como pagar pelo meu empréstimo estudantil novamente, porém, desta vez, com algumas (muitas) parcelas a mais.

Mas tudo aquilo era irrelevante, considerando o que eu estava conquistando naquele momento.

Decidi organizar todas as minhas coisas primeiro e dar fim ao contrato de aluguel do meu antigo apartamento antes de contar a novidade para meu irmão. Meu dongsaeng estudava em uma boa faculdade, porém distante de mim o suficiente para nãos nos vermos tanto quanto gostaríamos. Como ele dependia de boas notas para manter sua bolsa de estudos, eu tentava sempre não atrapalha-lo com nada; por isso, esperaria para dar-lhe a notícia.

Eu tinha certeza de que ele iria adorar e isso já me bastava.

Como ainda não havia começado em meu novo cargo, aproveitei todo o tempo antes e depois do trabalho para empacotar minhas coisas, que não eram muitas, mas eram em maior quantidade que meu tempo. Em menos de uma semana, eu estava me mudando e me sentia como uma adolescente colegial notada pela sua paixonite de tão animada.

Ah, deixem-me ser feliz. Quando se é um adulto sem tempo, com uma péssima alimentação e um trabalho longe de ser seu emprego dos sonhos, coisas aparentemente trabalhosas e sem graças como essa se tornam pequenos e sutis prazeres da vida.

No final de semana, todas as minhas caixas já estavam em seus respectivos cômodos na minha nova casa — foi assim que descobri que, na verdade, eu tinha sim uma infinidade de coisas, ainda que tudo aquilo não fosse o suficiente para encher uma casa daquele tamanho.  Eu sentia cada músculo e articulação do meu corpo doerem e começaria em meu novo cargo no dia seguinte, então decidi ir arrumando tudo com calma ao longo da semana. Coloquei, no máximo, meu colchão no meio do meu quarto (no chão mesmo, pois sabia muito bem da guerra que travaria com a minha cama para montá-la, mais tarde) e pendurei algumas roupas de trabalho em uma velha arara de roupas que encontrei durante a mudança. Além da comida, era tudo que eu precisava para sobreviver.

Depois de um longo banho morno, eu vesti apenas um roupão fofo e joguei-me em meu colchão. Ali, rodeada de caixas de papelão e no escuro da noite — pois acabei ficando com preguiça de acender as luzes do quarto — eu comecei a repassar mentalmente tudo que estava acontecendo. Tudo que, sozinha, eu tinha alcançado ao longo dos anos. Com certeza eu tinha conquistado coisas que poderiam parecer fúteis para alguns ou insuficiente para outros mais abastados, mas aos meus olhos o que eu tinha agora era uma vida inteira.

Lembrei-me dos olhinhos vibrantes do meu irmão, ainda pequeno, vendo aquela família sair desta casa. Nós agora seríamos aquela família, exatamente como ele sonhava e, consequentemente, eu também.

Alcancei meu celular e busquei seu contato.

Você está estudando, dormindo ou comendo?

Enviei a mensagem e mantive a tela do celular acesa, pois sabia que a resposta não demoraria a chegar.

Todas as opções acima.

Apesar de me parecer uma situação um tanto desesperadora, eu já havia estado no lugar dele e tinha sobrevivido. Acabei rindo, imaginando-o dormindo sobre um livro e com um hambúrguer em mãos.

Estou com saudades de você, coelho. O que acha de vir me visitar semana que vem?

Sozinha, continuei rindo. Ele odiava aquele apelido, pois eu havia lhe dado justamente por conta de seus dois dentes da frente que pareciam mais um par de dentes de coelho.

Acho que posso fazer esse sacrifício. Vamos combinar o dia mais tarde e também o que você vai cozinhar para mim, pode ser?

Aquele pivete havia se tornado uma pessoa um tanto abusada, isso era verdade. Mas conversando com ele assim, sem vê-lo pessoalmente, eu ainda o visualizava como o pequeno garoto de franja nos olhos.

Pode, coelho abusado.

Assim, depois de nos despedirmos, eu acabei rolando para o lado e perdendo meu celular no meio das cobertas. Adormeci num piscar de olhos e com a sensação de quem estava dormindo sobre as nuvens.

 

***

 

Para quem havia ido dormir como um anjo na noite passada, eu tinha despertado feito uma senhora de idade depois de ser atropelada por um caminhão de blocos de ferro. Mesmo sem abrir os olhos eu já me sentia um tanto cansada e, para piorar a situação, sentia um enorme peso sobre minha barriga.

Teria eu comido alguma coisa estragada ou seria aquilo uma consequência do esforço físico que fizera no dia anterior?

Resmunguei ao ouvir o som do despertador e virei-me na tentativa de encontra-lo — e foi naquele exato momento que o tal peso prendeu-me onde eu estava, como um cinto de segurança extra forte. Pelos céus, as caixas de papelão estavam começando a me atacar, era isso?

Abri os olhos para descobrir o que diabos estava exercendo tamanha força sobre a minha barriga e, assim que o fiz, minhas pupilas assustadas dobraram de tamanho.

Um braço.

Não, não qualquer braço. Um braço masculino, pesado, cujo dono dormia tranquilamente ao meu lado.

Um homem desconhecido.

Dormindo no chão do meu quarto.

Naquela situação, minha única saída foi fazer o que qualquer ser humano respeitável faria: gritar. Gritei o suficiente para sentir como se estivesse prestes a cuspir meus pulmões e, como esperava, despertei o estranho do modo mais brusco possível.

Mas tudo piorou quando ele também começou a gritar, nitidamente mais assustado do que eu.

De algum jeito, ainda gritando feito duas gazelas feridas de modo letal, nós dois já estávamos de pé.

— O que diabos você está fazendo na minha casa?! — eu exclamei. — Quem é você?!

Eu sequer sabia se aquelas eram as melhores perguntas a se fazer ou se, na verdade, eu deveria estar perguntando qualquer coisa. Meu cérebro ainda estava sobrecarregado demais com toda aquela situação de ter um louco dormindo ao meu lado, dentro do meu quarto, como se fôssemos um casal ou algo do tipo. Não que aquela fosse a hora ideal para isso também, mas pude reparar que nós erámos basicamente da mesma altura, o que fazia dele quase um hidrante. Além, claro, dos cabelos bagunçados feito um ninho de passarinho abandonado — que cor era aquela? Um dia já fui loiro 6.1?

— Calma, eu posso explicar. — ele disse parando de gritar, mas ainda ofegante pelo ato.

Então, ele ficou em silêncio. Nós ficamos em silêncio.

Eu sinceramente não sabia quem parecia mais perdido naquele cômodo, mas o título de pessoa mais desesperada passou a ser exclusivamente meu quando lembrei que estava de roupão. Por baixo da peça quentinha... bem, mais nada.

Voltei a gritar feito a gazela ferida.

— Eu vou ligar para a polícia, seu maluco! — praticamente gritei, junto de mais uma dúzia de xingamentos diferentes.

— Não, não faça isso! Por favor!

Comecei a procurar meu celular desesperadamente, ignorando suas súplicas. Como aquele maldito aparelho conseguia se esconder tão bem no meio de uma coberta de solteiro? Na verdade, com uma mão eu o procurava e com a outra apertava com toda força meu roupão, no intuito de mantê-lo muito bem fechado.

Quando finalmente alcancei o pedaço de tecnologia, o desespero tomou conta do rosto do homem. Ao contrário do que eu e o meu medo esperávamos, ele também fez o que qualquer ser humano respeitável faria: correu.

Yah, volta aqui! — eu berrava.

Não era como se eu quisesse que ele ficasse, então não sei porque fiz isso. Ele corria feito um louco pelas escadas e logo alcançou a grande porta de madeira da sala, tudo isso comigo correndo atrás dele. Usava uma bermuda de pijamas e uma camiseta e, descalço, ele abriu minha porta da frente e saiu correndo pela rua. Eu ainda gritava mas, por ser muito cedo, havia na rua apenas um casal de idosos que não fez a menor questão de prestar atenção naquela cena precária.

Eu pensei em correr, mas o roupão apertado em minhas mãos me impediu. Petrifiquei feito uma estátua na minha varanda e, ofegante, ainda tentava entender o que havia acabado de acontecer.

Quem diabos era aquele homem?

E pior: como ele havia entrado na minha casa?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

E então, o que acharam? Eu adoro interagir com vocês, então vamos lá!

Até ♥