Memento Mori escrita por EsterNW


Capítulo 9
8.0 - Ashes to ashes




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“Ouça o badalar de um relógio,
O som da própria vida.
Ninguém quer realmente morrer
Para salvar o mundo.”

— The Human Stain, Kamelot

 

Londres, Inglaterra, Outubro de 1940.

Com os olhos fechados, a pianista sentia as teclas de marfim sob os seus dedos que iam e vinham pelo instrumento, intercalando entre notas. Mesmo concentrada em sua música, ainda ouvia algumas conversas e barulho de vidro e cadeiras sendo arrastadas.

De longe, aquilo não era tão movimentado quanto alguns meses — até mesmo semanas — antes, quando o som de seu piano era nada mais que uma trilha sonora para a vida noturna naquele pub suburbano de Londres.

Com o início da Segunda Guerra e a chegada de tempos mais negros, a cada noite o número de pessoas no local começava a escassear junto com o dinheiro. Alguns provavelmente iam embora do continente, com um perigo cada vez mais constante e que havia chegado até suas portas algumas semanas atrás, com as bombas*. Aliás, esse provavelmente era o principal motivo pelo baixo número de presentes no pub: todos estavam temerosos demais para saírem de suas casas em busca de um pouco de diversão e bebida.

Com as notas agudas no acorde menor de seu piano, Clara tocava um jazz suave, contrastando com o ambiente com uma tensão fervente que era o bar enquanto ela tocava aquela música.

Não podia negar que ela mesma estava preocupada, a cada dia que passava mais ansiosa para que sua amiga conseguisse as passagens delas — e dos familiares de Ella, sua melhor amiga — para a América.

Ella era sua melhor amiga e, compadecida com a situação da jovem Oswin, que não tinha mais ninguém no mundo senão a si própria, e conseguia apenas dinheiro suficiente para se sustentar, tocando pelos pubs da vida, decidiu ajudá-la, levando-a junto de sua família.

Clara não sabia como agradecer Ella e já fazia planos para quando colocasse os pés no novo continente. Será que continuaria trabalhando como pianista ou encontraria algo mais… Tradicional? Só o tempo diria.

E enquanto este tempo não chegava, o tempo de findar a música se aproximava. Com uma mistura de acordes maiores e menores, melodiosos e doces, ela terminou a canção, usando um dos pedais para sustentar a nota que tocava por alguns segundos, para em seguida finalizar com uma nota grave, apertando duas teclas de marfim, um pouco escurecida pelo passar do tempo e do pouco caso com o pobre piano.

Erguendo-se do banco, abaixou a cabeça e segurou as pontas da saia xadrez do vestido de algodão, fazendo uma mesura como agradecimento. Apenas duas pessoas aplaudiram, sendo uma deles um bêbado que mal se aguentava em pé, mas mesmo assim pedia por mais um copo de gim, e o outro um homem excêntrico, com um sobretudo em um tom de verde e o que pareciam ser roupas de décadas atrás por baixo da peça.

Clara sorriu e se retirou do palco, um pouco chateada pelos presentes sequer repararem nas músicas que ela tocara, por cerca de quarenta minutos ininterruptos.

Resignada, atravessou por entre as mesas, estando poucas dessas ocupadas, sendo a maioria dos presentes grupos de amigos, e se dirigiu para o fundo do pub, onde se encontrava o barman, entregando o gim que o bêbado pedira.

— Clara! — James saudou a amiga com simpatia e a jovem Oswin devolveu com um sorriso. — Você tocou bem essa noite — elogiou e a menina deu um tapinha no braço que o rapaz loiro apoiara sobre a bancada.

— Você me diz isso todas as noites — devolveu rindo, fazendo o barman sorrir e dar de ombros como se dissesse “mas é verdade”.

— Vai querer o que hoje?

— Apenas um licor — ela respondeu e James logo se prontificou a preparar a bebida para a amiga, entretanto, teve sua ação interrompida pelo mesmo bêbado de instantes antes, que começava a arrumar arruaça no pub.

— Eu já volto — garantiu para Clara, que assentiu, e saiu de trás do bar, pronto para chutar o homem para fora.

Clara assistiu à cena por alguns segundos, voltando sua atenção para as bebidas em prateleiras na parede. Toda semana havia algum bêbado arrumando arruaça no pub, já estava até acostumada.

— Stormy Weather… É uma bela canção essa que você estava tocando — Clara ouviu uma voz estranha e virou-se para o lado, vendo o homem de sobretudo verde que a aplaudira, puxando conversa com ela. — Tive a honra de ouvi-la ser interpretada por Etta James na década de cinquenta. Você a tocou lindamente agora pouco.

Clara ergueu as sobrancelhas, confusa com o que o estranho falava. Quem era Etta James? Década de 50? Ele parecia ter por volta de trinta e poucos anos, não mais do que quarenta, era impossível que estivesse vivo em 1850. Talvez estivesse mais bêbado do que aparentava.

— Obrigada — respondeu com um riso sem graça, não muito a fim de conversar com um bêbado desconhecido. — Fico feliz que pelo menos alguém tenha prestado atenção na minha música — disse sincera, afinal, ela tinha sorte quando conseguia ao menos dois ou três aplausos após uma apresentação. Meia dúzia se fosse um dia realmente muito bom.

— Por que não parar para apreciar um pouco de piano? Ainda mais um jazz tão suave. Eu gosto bastante de jazz... — o estranho então começou a falar sobre seus gostos musicais, enquanto Clara apenas ouvia, até que interessada na conversa.

O homem não parecia bêbado, aparentando completamente lúcido, apesar de soltar algumas coisas estranhas aqui e ali. Ele tinha uma aura que emanava calma e fazia-a ter vontade de interagir… Apesar de ser bem incomum.

— A propósito, sou o Doutor — apresentou-se, estendendo uma mão para cumprimentá-la.

— Clara Oswin — ela disse o seu nome e levou a mão para o cumprimento. O homem, contudo, acabou depositando um beijo sobre as costas da sua mão, em um gesto cavalheiro. — Doutor? Doutor o que? — questionou achando graça do outro e soltaram as mãos, com a pianista usando a outra para apoiar seu rosto.

— Apenas o Doutor. Sobrenomes são um tanto complicados…

Clara riu, entretida com a conversa, e olhou para o lado, não vendo James em lugar nenhum. Onde será que ele tinha ido? Achava difícil que aquele bêbado estivesse dando tanto trabalho para demorar tudo isso para voltar.

— Você é pianista há muito tempo? — O Doutor perguntou, desviando o tópico da conversa dele para ela.

— Eu tocava apenas por hobby. — Ela desviou o olhar da porta, voltando-o para o estranho, que mantinha os olhos claros nela. — Eu trabalhava numa fábrica até alguns meses atrás, mas você sabe como andam as coisas por causa da guerra.

Indicou um “fazer o que” com sua linguagem corporal, de certa forma acostumada com a situação. O Doutor, porém, suspirou desgostoso, fazendo com que Clara arqueasse uma sobrancelha com a reação do senhor do tempo.

— Vocês, humanos, sempre matando uns aos outros. Sempre! — A jovem Oswin arqueou ainda mais a sobrancelha, estranhando ele endereçar-se aos humanos como “vocês”, como se não se incluísse na contagem. — Se apenas deixassem suas diferenças de lado… — soltou quase entrando em um devaneio.

Todavia, não houve tempo para que continuasse com sua linha de raciocínio, pois a porta do pub fora aberta com um estrondo, revelando a volta de James.

— Os alemães estão atacando novamente! — despejou em um berro, fazendo os presentes entrarem em desespero. — Para o porão da igreja, rápido!

Os clientes do bar largaram suas bebidas e as cadeiras em um tumulto, acotovelando-se para saírem do pub o mais rápido possível.

— O que está acontecendo? — O Doutor questionou, enquanto ele e Clara levantavam-se com rapidez dos bancos em que estavam e iam de encontro a James, que ainda permanecia na porta do bar, ajudando todos a saírem.

— É mais um bombardeio — respondeu com um tom de medo em sua voz.

Clara estava cansada de passar mais uma noite em desespero debaixo da igreja, enquanto tudo o que ouvia eram preces desesperadas dos refugiados junto a ela e o barulho de aviões sobre suas cabeças, junto da tensão que parecia pressionar seus ouvidos. Ela estava cansada de passar por isso mais uma vez. Parecia que nunca ia acabar.

— Os alarmes não funcionam — James alertou enquanto os três saíam do pub o mais velozmente que conseguiam, com Clara quase correndo para alcançar os dois homens com suas pernas longas. — Precisamos alertar os moradores, não devemos ter muito tempo.

Na rua, viram famílias inteiras, homens, mulheres, crianças, idosos e até animais de estimação — carregados pelos donos — saírem em desespero das casas simples do bairro suburbano. Todos pareciam confusos, sonolentos, tendo acabado de acordar direto com a face do perigo em suas portas.

Mas ainda havia mais. Famílias inteiras adormecidas em suas camas, inconscientes dos inimigos que se aproximavam.

— Você vai naquela direção. — O Doutor apontou para onde mais pessoas vinham, provavelmente onde haveria menos casas para alertarem, possibilitando James de chamar a todos sozinho. — Eu e Clara vamos para lá — definiu e cada um correu na direção combinada, abrindo portas com ímpeto e puxando pessoas e mais pessoas do conforto de suas camas, para depois repetir a mesma coisa na próxima residência.

Clara começava a arfar, cansada de tanta correria e subir e descer escadas em direção a quartos. Mais ainda havia mais, ainda havia muito mais gente para salvar e o tempo corria e, ela poderia não ver e nem ouvir, mas as aeronaves alemãs estavam mais perto do que imaginava.

A pianista foi para mais uma casa, porém, para seu azar, a porta estava trancada. Todos sabiam que o melhor era não passar a chave, afinal, não havia nenhum fatíloquo entre eles, para prever quando cenas como essa aconteceriam. E o melhor de tudo era sair o mais rápido possível e partir em direção ao abrigo.

Clara olhou para o lado, vendo o Doutor correr junto de um casal, que andavam o mais rápido que conseguiam em direção à igreja no final da rua, mesmo com a barriga enorme de uma gravidez avançada da moça dificultando sua corrida.

O senhor do tempo logo viu Clara parada à porta da residência.

— Está trancada! — avisou o óbvio para ele e os alarmes, finalmente, começaram a soar. Um pouco tarde demais.

— Estamos quase conseguindo — garantiu para Oswin, sendo a última casa daquele quarteirão. Puxando a chave de fenda sônica do bolso, conseguiu destrancar a porta, deixando a moça ao seu lado confusa com aquele objeto brilhante e com a ponta avermelhada que trazia em mãos.

Não tendo tempo para permitir-se parar, subiu logo as escadas, indo atrás dele, cada um apressando-se em direção a uma porta. Contudo, não precisaram sequer entrar, já que a família toda acordara com o barulho ensurdecedor das sirenes.

— Meu bebê — a mãe choramingou e o Doutor entrou no quarto usado como berçário para a criança, enquanto Clara guiava o casal para baixo.

Logo, o senhor do tempo surgiu no topo das escadas com a pequena criança chorando em seus braços.

— Corram! — ele gritou para os três adultos, pulando os degraus de dois em dois e saindo logo na rua junto da família e do bebê choroso que segurava com todo o cuidado que conseguia.

O barulho de aviões começava a se fazer audível ao longe, alarmando os quatro e fazendo com que corressem o mais rápido que conseguiam para o final da rua. O som dos motores se fazia cada vez mais presente, aproximando-se soturno e fazendo a tensão percorrer seus corpos, temerosos de que não conseguissem chegar em tempo.

No meio da correria, Clara olhou para o lado, vendo uma menina, de não mais do que três anos, perdida e parada em frente a uma das casas, aparentemente sem saber o que fazer e para onde ir, tendo seus pais perdidos no meio da confusão. Não tendo tempo para que alguém percebesse a falta daquela criança, saiu de junto do grupo e correu até ela, pegando-a em seus braços.

— Onde estão seus pais, querida? — questionou-a, arfando um pouco devido à correria.

— Eu não sei — a garota respondeu em tom de inocência, talvez não compreendendo o que acontecia, apenas sentindo o desespero que emanava daquela rua vazia e escura, tendo como fundo uma sirene estridente que parecia que iria perfurar os tímpanos mais sensíveis. — Me perdi dos meus pais — explicou em tom choroso e Clara forçou suas pernas a correrem o máximo que conseguia, junto da menina que pegara no colo.

O Doutor e a família já haviam chegado até a igrejinha, devolvendo o bebê para a mãe e instruindo-os a entrarem logo. Foi então que, parado às portas, virou-se e viu que faltava alguém que estava junto a ele até não muito atrás.

— Clara! — ele exclamou seu nome, porém, qualquer ação que passou-lhe pela mente, não teve tempo de ser executada.

A ameaça aérea pairava sobre suas cabeças e a bomba foi atirada de cima do avião. Em questão de segundos, um som ensurdecedor atingiu seus ouvidos, dando a impressão de uma surdez temporária, e a única coisa que houve tempo, quanto o tempo pareceu parar por instantes, foi de Clara se jogar sobre a menina, impedindo, com seu próprio corpo, que qualquer escombro caísse sobre a garotinha.

Dentro da igreja, o medo era um companheiro a mais junto daquelas pessoas. Medo de morrer, medo de perder tudo, medo dos alemães, medo da guerra, e medo que aquela jovem pianista não sobrevivesse. Ele sabia que a possibilidade disso acontecer era quase nula, todavia, o Doutor preferia acreditar naquele pingo de esperança que ainda tinha.

Ela não merecia. Ninguém merecia morrer naquela guerra. Ainda mais pessoas inocentes como ela. Ah, humanos...

Após duas horas torturantes e arrastadas, finalmente algumas pessoas resolveram arriscar-se a sair, ansiosos em ver o estrago e tudo o que teriam que reconstruir. Tudo o que perderam.

O Doutor foi o primeiro a passar pelas portas da igreja no fim da rua. Porém, sua esperança era vã. Clara não sobreviveu. Contudo, seu sacrifício não havia sido em vão. A menininha estava viva. Machucada, é claro, mas ainda com vida, graças àquela pianista desconhecida de um pub suburbano qualquer.

Se não fosse por ela, o Doutor teria sido aquele a voltar para trás para salvar aquela criança. Se não fosse por ela, ele não teria visto a maior de todas as guerras.

E não era uma guerra comandada por um alemão megalomaníaco. Era a pior de todas que ele um dia veria.


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Notas finais do capítulo

Human Stain, Kamelot: https://youtu.be/mWGHRgd3Hjo

A música que a Clara tocou: https://youtu.be/EK2hGVo65MI
Stormy Weather foi composta em 1933, porém só foi ficar famosa mesmo nas décadas de 40/50, através de vozes como Etta James e Frank Sinatra.

*Entre setembro de 1940 e maio de 1941, a Luftwaffe — aviação alemã —, promoveu uma série de bombardeios estratégicos contra o Reino Unido. Esse período ficou conhecido como Blitz de Londres #fictbmécultura

O que acharam do capítulo? Eu sei que continuamos com aquele clima mais sombrio, mas calma que isso vai durar mais um capítulo e depois voltamos a programação normal -q
Povo, tenho um anúncio não tão legal pra fazer pra vocês, seguinte: como estamos no final do ano, no período de festas e tudo mais, a fic vai dar uma pequena pausa por causa disso e porque eu quero ficar mais sossegada pra adiantar um pouco os próximos capítulos também (coro de aaaaaaa). Mas calma que no primeiro domingo de janeiro a Memento Mori tá de volta, viu? Dependendo do quanto eu conseguir escrever agora no final do ano, talvez volte um pouco antes xD
Boas festas pra vocês, um bom final de ano e até 2019 o/