A difícil arte de ser eu, Harry escrita por Sangster


Capítulo 9
Tudo que amamos profundamente




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Demi Lovato, Gwen Stefani, Mile Cyrus, Selena Gomes, Sia, Peter Bjorn, Sufjan Stevens, Sam Smith, Lana Del Rey e tantos outros que fazem parte da minha playlist e ainda assim não consigo escolher qual deles escutar para me ajudar a passar o tempo até que uma viva alma apareça por aqui... Será que o Hogwarts hoje não vai funcionar? Não me lembro de ter recebido qualquer aviso prévio. Fito a tela do celular ao passo que os títulos das canções da trilha sonora do filme “Me chame pelo seu nome” desfilam diante de mim. Draco pediu para que eu o encontrasse na frente do colégio faltando meia hora antes do início das aulas e agora restam vinte e cinco minutos para que o portão (provavelmente) seja aberto e nada dele aparecer.

Toco a ponte do nariz com o indicador e empurro a armação dos óculos para cima até que ela se encaixe confortavelmente sobre ele, o meu nariz, enquanto volto à árdua peregrinação de escolher uma música que sintetize o meu estado de espírito. Ainda não sei como minha mãe e a Belatriz Lestrange alcançaram um denominador comum para montar a playlist do casamento da Hermione. Nada menos que uma batalha épica foi travada, tenho certeza. O confronto do tradicionalismo de dona Joanne batendo de frente com o contemporâneo, a visão periférica e profissional da wedding planner, inflamado pelas sucessivas discussões para decidir se os clássicos ou os sucessos atuais ocuparão mais espaço na festa. Espero que entre mortos e feridos tenha sido considerado o estilo do casal, apesar de ser um tanto difícil encontrar um estilo que personifique a relação da Hermione e do Rony. Não há outro adjetivo que possa ser usado senão o peculiar para definir esses dois...

Deixo escapar um longo bocejo preguiçoso ao tempo que esfrego os olhos buscando afastar o resquício de sono que a outra metade do meu ser ainda está carregando. Segundo alguns pesquisadores, quanto mais longo um bocejo, maior o cérebro. Não sei como chegaram a essa conclusão, mas se for verdade, o meu encéfalo, a partir deste momento, assumiu as proporções da maior mansão do mundo, que fica em Bombaim, com seus 27 andares, 37 mil metros quadrados e nove elevadores.

Pronto. “Mistery of love”, do Sufjan Stevens é a canção que eu escolho para ilustrar, na verdade para me preparar para a grande revelação que o Draco irá fazer, decido depois de derramar outra vez os olhos sobre a tela do telefone. Com certeza não será ouvindo esse barulho de carros, motos, ônibus e buzinas que vou encontrar o ponto de equilíbrio necessário para o que está por vir. Como o amor que sentimos por alguém pode nos dar tanta força para aguentar o que vier dessa pessoa? Eu não deveria estar aqui. Eu não deveria ter atendido ao pedido de Draco depois do tratamento que venho recebendo dele. Estou sendo injusto e egoísta por estar pensando dessa maneira? Talvez, concluo, dando de ombros, afinal como exigir que ele tenha uma postura diferente se eu não tenho forças para me declarar, entretanto analisando-o sobre o prisma da amizade, a situação não é menos dolorosa. Draco me ignora nas horas em que acha mais conveniente, e não se sente desconfortável com isso... Afogado em águas vivas, amaldiçoado pelo amor que recebi, bendito seja o mistério do amor, simples assim, como canta Sufjan Stevens.

Fecho os olhos e respiro fundo e com isso busco colocar o meu estresse e a minha ansiedade de lado enquanto tento me acalmar. Preciso encontrar ou pensar em algo positivo que tenha me acontecido nesses últimos tempos, mas não há nada que se encaixe nesse padrão e daí meneio a cabeça, bem devagar, para então abrir os olhos, também sem pressa, e ir à procura dos meus fones de ouvido num dos bolsos laterais da mochila.

Uma alternativa para reencontrar a paz interior é ouvir a música que mais gostamos, então, nesse caso, acho melhor trocar “Mistery of love” por “Young Folks”, pondero ao passo que sigo revistando o pequeno bolso e partindo para o outro e depois para o terceiro, à frente da mochila, sem achar o que estou procurando ao mesmo tempo que sou tomado pela inevitável convicção de que esqueci os fones em algum lugar no meu quarto. 

Mas que merda, reclamo enquanto reviro os olhos e logo depois ergo a cabeça no intuito de refazer os meus passos desde o instante que saí catando tudo que vi pela frente e atirei para dentro da mochila, após a ligação de Draco, porém mal tenho tempo de começar meu exercício mental, pois percebo algumas pessoas se aproximando, à minha esquerda; levo algum tempo para identificá-las: são três professores, dois funcionários da administração e o seu Clint, da limpeza. Todos acabam passando por mim e me cumprimentando com um categórico “bom dia”, mas apenas Sirius, meu ex-professor de Língua Portuguesa e Literatura, é quem ensaia uma rápida parada ao meu lado, pousando de leve uma das mãos sobre o meu ombro direito ao passo que o restante do pequeno grupo se afasta.

— Tudo bem com você, Harry? - ele busca me encarar enquanto lança sua pergunta carregada de genuíno interesse e paciência - Perdeu a hora, rapaz?

Dou-me ao trabalho de respondê-lo apenas com um aceno positivo feito com a cabeça e um sorriso forçado no canto dos lábios, pois não quero deixar Draco esperando caso ele chegue de um instante para o outro. Por fim vejo a mão de Sirius abandonando o meu ombro e ele se afastando, em linha reta, sem acelerar os passos. De soslaio percebo que se volta rapidamente na minha direção antes de cruzar o portão de entrada do colégio.

É estranho, ou engraçado, lembrar que já fui apaixonado por ele assim que me tornei seu aluno. Devo ter sucumbido ao velho clichê, pois aquela paixonite desapareceu tão logo como começou e hoje em dia, em retrospectiva, percebo que nada em sua pessoa me atrai, a não ser sua inteligência e excepcional dedicação que tem para com os “seus aprendizes”.

Desde que assumiu a coordenadoria do turno da manhã que o professor Sirius não leciona mais. Um ganho real e motivador para quase todos nós, alunos, que passamos a receber sua dedicação de maneira integral, afinal de contas ele sempre se mostrou ser uma excelente pessoa e um exímio profissional que vai além das funções que lhe cabem. Tive o privilégio de ser um de seus alunos por quase dois anos consecutivos e em sala de aula Sirius já nos desafiava, incentivando-nos a sermos proativos, a pensar “fora da caixa”, ousando até mesmo a “fugir” um pouco da programação escolar ao sugerir que também lêssemos títulos que fazem parte do panteão da literatura mundial. Decerto precisamos conhecer a obra de Jorge Amado, Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, Érico Veríssimo e tantos outros, mas qual o problema em também valorizar Tolstói, Gabriel Garcia Márquez, Miguel de Cervantes?

Jamais vi Sirius perder a paciência ou negligenciar sua preocupação com o bem estar e felicidade de cada um dos seres humanos que lhe são confiados, principalmente àqueles que possuem algum tipo de fragilidade e especialmente as vítimas de alguma violência escolar que sofram ou venham a sofrer qualquer tipo de bullying.

“Se soubéssemos quantas e quantas vezes as nossas palavras são mal interpretadas, haveria muito mais silêncio no mundo”, Sirius finalizou seu discurso com essa frase de Oscar Wilde na festa de encerramento do ano letivo passado. Na verdade uma resposta cortês e na medida exata para as más línguas que começaram a questionar sua sexualidade após vê-lo se dedicar com uma invejável ênfase em um caso de bullying homofóbico contra Duda, um aluno de 14 anos, e que graças a sua rápida percepção e intervenção, e também de uma psicóloga, se evitou o pior... Quanto aos agressores, “as tais crianças que apenas estavam brincando”, seus pais foram educadamente convidados a levá-las para outras escolas.

Mas e se o professor Sirius fosse gay, qual seria o problema? Por acaso a sua iniciativa como ser humano, como educador, teria menos valor? Volto ao meu “velho” questionamento: até onde vale à pena ser honesto consigo mesmo e se permitir viver uma vida sem embuste, com a cabeça erguida, sem a preocupação ou temor de que estará incomodando o seu próximo simplesmente por ele achá-lo diferente? E ainda mais em um mundo aonde o progresso e a evolução social do homem esbarram em algumas reações retrógradas e absurdas da mais pura intolerância?

Nos idos do século 19, Oscar Wilde, citado pelo professor Sirius, já definia o sentimento entre pessoas do mesmo sexo como “o amor que não ousa dizer o nome”, e pagou um preço alto por viver esse amor corajosamente, enfrentando a hipócrita e sexista sociedade da qual era contemporâneo. Após ter sido denunciado por causa da relação íntima que tinha com Lord Alfred Douglas, foi incriminado, julgado e sentenciado a dois anos de trabalho forçado pelo “crime” de ser homossexual, e com isso toda sua fama e sucesso financeiro desmoronaram. Seus livros foram recolhidos das livrarias, assim como suas comédias retiradas de cartaz e depois de liberto foi banido de sua terra, a Grã Bretanha, indo para França onde conheceu a pobreza e tudo que de pior ela podia trazer, morrendo de meningite, sozinho, num hotel barato...

Um provável consolo para essa injustiça? A Inglaterra nunca mais seria a mesma após julgar um de seus escritores e poetas mais famosos somente por gostar do mesmo sexo.

Pois é! Reforço: o tempo passou e agora estamos em pleno século 21 e ainda há muita gente com teias de aranha no cérebro e tão radicais quanto àqueles que condenaram Oscar Wilde. Relações entre pessoas do mesmo sexo são consideradas crimes em 73 países, e pasmem: 13 deles preveem pena de morte. Graças aos céus não nasci em nenhum desses locais, mas o Brasil, segundo estudos realizados, é uma das nações mais homofóbicas que existe... Até onde esse trem desgovernado vai chegar, eu não sei, mas torço para que um bom maquinista logo tome as rédeas da situação.

Um Onix Active acaba de estacionar em frente à calçada. Não demoro a reconhecer que é o carro do irmão de criação de Draco, que por uma incrível coincidência cabalística ou mera casualidade, é também o noivo (vítima) da desajustada da minha irmã Gina. Pela rapidez que vejo o meu melhor amigo saltar do carro, batendo a porta atrás de si, sem olhar para trás e caminhar a passos largos na minha direção, percebo que vem tempestade por aí, quiçá um tsunami.

— Bom dia! Tudo bem? 

Ouso cumprimentar, mas Draco sequer me olha. Ele passa diante de mim e com um aceno de mão faz sinal para que o acompanhe, o que acato, em total silêncio, até alcançarmos o gramado que fica no lado direito do colégio, e que geralmente é usado para jogos de futebol e ensaios de peças de teatro. A essa altura o carro do meu futuro (?) cunhado já vai longe…

— Já podemos falar alguma coisa?

Decido lançar minha pergunta quando constato que estamos a uma distância considerável do muro da escola ao passo que me preparo para assimilar o nome da nova megera com quem vou precisar conviver e de pronto me vem à mente o filme “Notas sobre um escândalo”, onde Cate Blanchet interpreta uma professora que se apaixona por um de seus alunos e os dois acabam por viver um romance secreto, mas Cate se ferra no final, pois Judi Dench, uma velha professora, lésbica, à beira da aposentadoria, e que é apaixonada por ela, descobre tudo e a entrega, não sem antes chantageá-la.

Não. Por mais despeitado que eu possa ficar não irei agir como a Judi Dench.

Draco se vira bruscamente na minha direção. Seus olhos estão vermelhos, secos, mas vermelhos e sua expressão é de uma raiva absurda, prestes a explodir, porém milagrosamente contida, o que é de estranhar, pois ele não é de engolir sapo e seguir para o abate como um cordeirinho, sem reclamar, pelo contrário, Draco se estoura e se rebela, e geralmente sem medir as palavras e muito menos as consequências, disparando desaforos para quem quiser ouvir.

— Puta que pariu cara! - ele se expressa, finalmente enquanto suas mãos se soltam no ar num gesto arrebatador e sua mochila acaba caindo no chão - Você acredita que os meus padrinhos vão para o Japão?

Oi?

Sinto-me entorpecido com o que acabo de ouvir. Qualquer resquício de sono, de irritação ou o diabo a quatro que ainda me assombrava acaba por desaparecer ao passo que uma leve tontura começa a invadir minha cabeça, mas busco me manter estável antes que ela se torne maior e eu perca o equilíbrio, porém minha mente é rápida demais e trabalha contra mim e meu corpo parece, agora, pesar toneladas...

Eu ouvi certo? NUNCA MAIS VOU VER O DRACO. ELE VAI EMBORA PARA O OUTRO LADO DO MUNDO? Não. É claro que não. Ele só está brincando, preparando o terreno para me contar sobre sua mais nova namoradinha... Mas e se for verdade? Meu Deus, não, não, não. Nossas almas estão ligadas Draco. Já vivemos várias vidas antes dessa e falta pouco para que nos “encontremos” novamente...

— Você está me ouvindo, Harry? - Draco pergunta com um tom de voz já começando a ficar alterado.

—Do que você... - meneio a cabeça e respiro fundo - Do que está falando Draco?

—Tá surdo, cara? Acabei de dizer que o meu padrinho recebeu uma porra de uma promoção…

— Ok, mas o que quero saber é se vocês vão morar lá no Japão. Vocês vão se mudar para o Japão? - questiono com as pernas bambas, engolindo em seco, temeroso pela resposta que vou receber ao passo que ouço um som brusco, áspero, de algo se partindo dentro de mim.

 


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