A difícil arte de ser eu, Harry escrita por Sangster


Capítulo 8
Sobre meninos e lobos




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Consigo chegar à frente do Hogwarts quarenta minutos antes do início das aulas. Morar nas vizinhanças da escola em que estudamos tem lá suas vantagens e uma delas, no meu caso, é ficar o menor tempo possível dentro do ônibus do condomínio, afinal, do Mare e Laguna até aqui não se gasta mais que dez minutos, e se não fosse pelo fato de tudo nessa Barra da Tijuca depender de um transporte, pois nada nesse bairro planejado, do ponto de vista logístico, é relativamente próximo, eu faria o trajeto a pé, amarradão e sem qualquer problema.

Num gesto muito, muito rápido, após um longo bocejo, direciono o dedão da mão direita para o meio da testa e empurro os óculos em uma deliberada tentativa de não deixá-lo escapar, apesar de ter certeza de que ele sequer se moveu, mas essa é uma das minhas reações incontroláveis enquanto me embriago com o coquetel molotov promovido por minha curiosidade e impaciência ao passo que vou especulando o que de tão grave e tão urgente Draco teria para falar comigo, e que, apesar de ser tão grave e tão urgente, não pôde ser dito ao telefone.

Se ao menos ele não pegasse carona com o irmão todas as manhãs, já poderíamos ter iniciado essa conversa lá mesmo no condomínio, a caminho do colégio, e eu não estaria aqui, agora, mergulhado nesse mar de aflição apostando todas as minhas fichas em mil e uma suposições a fim de tentar, ao menos, chegar próximo de um consenso que esclareça e justifique sua ausência, o seu isolamento que teve início no domingo à noite e chegou ao ápice ontem, quando não compareceu às aulas, e acabou por se tornar insuportável nessas últimas 36 horas, quer dizer, nem sei se esse será o assunto em questão, já que previsibilidade não é uma das características do meu amigo, mas se por acaso todo esse reboliço for para anunciar aquilo que eu já desconfio, de que ele está com uma nova namorada, não faz sentido algum. Draco jamais promoveu qualquer tipo de solenidade para isso, a não ser que essa suposta new girl friend não possa ser trazida à luz do dia. Quem será essa poderosa, e agora também enigmática pessoa?

Pelos Céus! Será que o Draco está se envolvendo com alguma professora ou alguma mulher mais velha? Algo parecido com o filme “Houve Uma Vez Um Verão”, onde um adolescente se apaixona por uma mulher casada, cujo marido está fora, lutando em alguma guerra, e encontra sua passagem para a fase adulta em meio a situações sentimentais, engraçadas, recheadas de sexo, amor e amizade? Ou então algo tipo uma versão hétero de “Me chame pelo seu nome”?

Não, não pode ser...

Balanço a cabeça com muita força determinado a expulsar essas hipóteses medonhas para fora da minha mente, pois em definitivo não conseguiria lidar com essa situação. Não teria forças para ouvir o desabafo do Draco enumerando todas as qualidades dessa senhora em detrimento às garotas com quem ele já ficou, enaltecendo, apaixonado, o abismo imenso que existe entre namorar uma menina e uma mulher, destacando as birras que as adolescentes fazem enquanto as “tias” conversam, enquanto uma usa o corpo, a outra a inteligência, enquanto uma quer atenção e a outra quer respeito... Simplesmente não vou aguentar.

Uma coisa é ficar na sofrência assistindo Draco trocando de namoradinhas como se troca de roupa, sempre alegando não ter a mínima paciência com a imaturidade emocional dessas meninas que cruzam o seu caminho, afirmando, depois de uma semana, se sentir desmotivado por não conseguir subverter o clichê de que as coitadas amadurecem mais cedo, apesar de ele mesmo não enxergar, creio eu, ser tão prematuro quanto elas; outra coisa será vê-lo absorto em meio à intensidade de uma paixão secreta que vai se espalhar como fogo pelas mãos de uma mulher bem resolvida, sem tanta frescura e ciúmes, cheia de luz, mas também de sombra e magnetismo; uma paixão estética, orgânica, sedutora, erótica, afinal de contas o meu amigo é um adolescente como tantos outros, como eu sou e infelizmente também será como eu fui quando me encantei pelo Lockhart, ansioso pela descoberta e pela vivência de um grande amor, faminto por algo que ainda não conhecia...

Entretanto a questão maior de tudo isso será quando a tal mulher o abandonar, sim, porque esse dia irá chegar e como eu, Draco não estará preparado para ser confrontado com o prazo de validade que o amor e a paixão possuem dentro de uma relação de poder desequilibrada. Aos 15 anos, e sem sombra de dúvidas também aos 16, 17, não temos ideia do que seja um amor saudável e tampouco bagagem emocional suficiente para saber quando não pisar nos campos minados desse sentimento. O desespero ao perceber, enfim, que a pessoa perfeita a qual venerávamos não se importava conosco tanto quanto supúnhamos, é inimaginável, e de verdade não sei se o meu amigo terá forças para emergir do abismo proporcionado pelo complexo de inferioridade, das brutais emoções do abandono, do vazio no estômago... Mas o meu maior receio é não ter energia suficiente para ajudá-lo a superar essa fase que parece não ter fim, ajudá-lo a escalar o caminho de volta desse precipício para onde foi arremessado...

Ajeito as alças da mochila sobre os ombros e usando-a como proteção para as costas, eu me apoio sobre a letra “A” do nome Hogwarts, que em letras garrafais vermelhas ocupa, de um lado ao outro, quase todo o espaço da tinta branca que atravessa o muro do colégio, enquanto observo o zigue-zague dos carros na avenida, desfilando à minha frente, velozes como foguetes, ao mesmo tempo que meus olhos correm tentando acompanhar a velocidade de cada um deles, mas é impossível e então respiro fundo e meneio a cabeça com intensidade ao passo que miro o chão, a calçada sob os meus pés, e fecho os olhos, apertando-os desesperadamente, acreditando que quanto maior for a pressão que fizer sobre eles, mais eficaz será a mensagem enviada ao meu cérebro para expurgar toda e qualquer referência sobre o Lockhart.

Nesses últimos dias, especificadamente de ontem para hoje, já me lembrei desse infeliz por pelo menos três vezes, o que já não fazia há tempos. Isso é um reflexo, sem sombra de dúvidas, da ansiedade, do receio de reencontrá-lo, sábado, no casamento da Hermione, mas ainda assim, depois de quase dois anos, depois de tudo o que passei, depois de quase querer morrer por dentro, de desistir de mim mesmo, a minha mente deveria estar, nesse momento, nessa semana carregada de adrenalina, ao menos resignada e não regredindo, escolhendo voltar ao passado e se alimentar dos restos de uma relação que acabou... Na verdade não sei bem como denominar aquilo que tive com o Lockhart...

Depois de expandir a barriga, soltando o ar lentamente, repetindo esse pequeno exercício por cinco vezes seguidas, e todas em vão, pois não consigo acalmar o meu sistema nervoso, abro os olhos, ergo a cabeça e fito novamente a avenida à minha frente, porém desta vez não consigo identificar o que de fato, de real, está acontecendo diante dos meus olhos, pois o caleidoscópio com as imagens dos seis meses que convivi com Lockhart, costuradas artisticamente, mostrando ao mesmo tempo o sublime e o belamente trágico, faz-me transbordar de desespero e aflição, levando-me a concluir o óbvio: o vilão dessa história não fui eu.

Coloco uma, duas, três vezes o dedão da mão direita no meio da testa para, de novo e de novo, empurrar os meus óculos enquanto impulsiono todo o peso do corpo para trás, decerto massacrando minha mochila contra o muro, contra a letra “A” de Hogwarts, ao passo que cruzo os braços, acarinhando-os para em seguida começar a mexer as pernas e a bater com o meu pé esquerdo no chão, lutando com extrema bravura a fim de evitar que a imagem de Lockhart se forme em minha mente com aquela sua barbinha por fazer, sua postura confiante, seu olhar, aquele olhar que me deixou completamente desorientado quando ele, sua esposa e seus dois filhos foram apresentados à nossa família pelo Rony...

Inspiro e expiro mais uma vez e uma violenta descarga de adrenalina sobe até minha cabeça e meus braços tremem de raiva e eu deixo de acarinhá-los para apertá-los com extrema força até descruzá-los e baixar as mãos, mantendo-as penduradas ao lado do meu corpo para então cerrar os punhos, veemente, chegando quase a ferir com as unhas a pele pressionada entre os dedos e o pulso...

Sobre meninos e lobos e homens que vivem suas vidas duplas, o futuro cunhado da minha irmã é um exemplar dessa espécie que infelizmente eu conheci de perto! Lockhart passou um ano inteiro sendo um cavalheiro, me abordando de maneira dúbia, nunca comprovando, de fato, sua intenção, mas sempre deixando no ar um quê de sedução e provocações que só alimentava cada vez mais minha curiosidade, rejeitando e atraindo-me na mesma medida. Quando enfim fomos para cama (será que o Draco e essa “tia” já transaram?) pude entender o mecanismo do seu jogo: ele precisava se resguardar, ele precisava estar seguro do terreno em que estava pisando, inclusive pelos motivos óbvios. Imagina ser responsável por um escândalo que poderia acabar com o namoro promissor do irmão?

Lockhart, depois que começamos a ficar, revelou, para minha surpresa, que já sabia que eu era gay e por isso investiu, mesmo correndo todos os riscos. Senti-me péssimo e lhe pedi conselhos de como me comportar, como melhorar minha postura, como não deixar rastros e ele, decerto, não perdeu a oportunidade de nutrir minhas expectativas, agindo como um mestre preparando cuidadosamente seu pupilo, esclarecendo que seria possível e fácil atravessar a adolescência sem a necessidade de expor minha orientação sexual, mas que com o passar dos anos a cobrança sobre essa parte da minha vida seria constante, quase insuportável, e caso eu desejasse não sofrer qualquer represália da sociedade hipócrita em que vivemos o preço a pagar pelo “alvará de paz e liberdade” seria trilhar um único caminho: o casamento de fachada.

“Tudo nessa vida tem um preço, Harry”, ainda me lembro das suas palavras secas, sinceras, acompanhadas de um sorriso cínico no canto dos lábios, o mesmo sorriso descarado que manteve durante os seis meses em que fomos amantes, onde reforçava que tudo aquilo não passaria de sexo e amizade, nada mais que “suficiente” para um garoto de quinze anos, em plena puberdade e com os hormônios saltando de maneira desenfreada por todos os poros.

Um covarde, sim, em gênero, número e grau. Por mais que a sociedade pressione os homens que sentem atração pelo mesmo sexo a reprimir sua natureza, nada justifica que esses mesmos homens usem esse atenuante como escudo, e foi o que o Lockhart fez, e quem sabe ainda deva fazer... Eu jamais conseguirei apagar essa nódoa da minha alma. Ele foi minha primeira paixão, e platônica, por incrível que pareça, pois nunca tive coragem de revelar que tudo aquilo que estava acontecendo com a gente não era só sexo e amizade, ao menos para mim.

Inclino o corpo um pouco para frente, aliviando “a subexistência” da minha mochila, e então paro de bater o pé esquerdo nervosamente no chão e descerro os punhos para logo em seguida descer as mãos até a altura das pernas e começar a passá-las por sobre o jeans, empurrando-as num movimento quase aleatório de ir e vir, ao passo que me coloco de pé, completamente erguido, ao ponto de conseguir, enfim, discernir o mundo diante de mim, tratando de convencer-me da plena certeza de que não posso continuar assumindo esse papel pedante de vitima das circunstâncias enquanto tento me agarrar a uma postura pseudomadura.

Foi uma perturbada história de amor a que eu vivi com o Lockhart, da qual não quis aceitar, durante muito tempo, o caráter abusivo que a envolveu, mas a vida segue e vou continuar escalando o caminho de volta desse precipício, custe o que custar.

Ao tempo que busco equilibrar minha respiração rápida e curta, completamente focada acima do meu corpo, volto a cerrar os punhos entre desesperado, esperançoso e confuso.

Onde está Draco que não chega logo para me resgatar desse pesadelo?

Enfim, deixo os ombros caírem enquanto permito que o ar entre no meu corpo, segurando-o nos pulmões e depois o libertando na mesma velocidade, sem pressa, até que de súbito sou invadido por uma sensação calorosa, sugerindo que eu dê início a uma oração. Fecho os olhos imediatamente, mas as palavras me fogem. Há quanto tempo não vou a uma igreja? Sou tomado por um medo abismal, mas insisto... Pai nosso que estás no céu, santificado seja o vosso nome...

Após terminar minha prece, olho para o alto, vislumbrando o límpido céu com poucas nuvens e um azul sereno enquanto sou tomado aos poucos por uma firmeza que vai se expandindo por todo o meu peito, sublimando e acalentando, em parte, a minha aflição. Águas passadas não podem mover moinhos, não podem e talvez por isso, até hoje, eu tenha decidido viver dessa forma, trancafiando a experiência que tive ao lado do Lockhart como um segredo sepultado dentro de mim numa cova rasa, mas muito bem guardada, pois não suportaria ver Hermione desapontada, magoada, precisando escolher entre o Rony e a dignidade do valor do sangue que corre em nossas veias, e é por isso, ainda por ela, mesmo a contragosto, que vou enfrentar os meus demônios neste sábado.

Baixo o olhar ao passo que retiro o celular do bolso da calça jeans e o trago até quase próximo ao rosto a fim de conferir as horas: já se passaram dez minutos desde que cheguei, e nossa, parece que estou há uma eternidade, em pé, aqui, encostado neste muro... Que seja. Dou de ombros e daí eu devolvo o telefone para o bolso e depois encaro o meu entorno e não vejo ninguém, nem sequer um funcionário do colégio, tão somente os carros e ônibus atravessando a Avenida das Américas.

Se Draco realmente estiver envolvido com uma mulher mais velha, ele não vai suportar nem um décimo do que eu aguentei, até porque já recebeu da vida sua parcela de angústias, traumas, carências e neuras: não é fácil ter de conviver com o abandono de uma mãe que sequer conheceu e o desprezo flagrante do próprio pai e ainda morar de favor no apartamento dos padrinhos.

Saco. Enfio a mão no bolso da calça e retiro o celular. Vou tentar escutar algumas musicas para espairecer.

 


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