A difícil arte de ser eu, Harry escrita por Sangster


Capítulo 7
Irmãos e irmãs




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/769970/chapter/7

De banho tomado, cheirosinho, com o humor um pouco renovado e já devidamente vestido para ir ao colégio, eu vou até a cozinha e saio trazendo comigo um copo com leite e chocolate nas mãos. Molly ainda não chegou e o desjejum que ela prepara é o único que consigo digerir a essa hora da manhã, não que eu tenha tantas alternativas ao meu dispor, até porque, e graças a todos os anjos do céu, não consigo imaginar dona Joanne ou a Gina debruçadas sobre o balcão preparando o meu sagrado leite com chocolate, cereais ou iogurte com frutas, um bom pãozinho bem quente acompanhado de margarina, frios ou requeijão, suco de laranja com pedras de gelo transbordando... Seria, no mínimo, um prenúncio da terceira guerra mundial, isso se uma das duas conseguisse manter o equilíbrio após ser atingida com respingos de leite ou outra bebida qualquer.

Já Hermione provou ter toda boa vontade do mundo, mas lhe falta destreza ou o dom ou sabe-se lá o quê. Minha amada irmã reconhece que ela e a cozinha, e tudo o que tem lá dentro, possuem uma relação nem um pouco amistosa. Uma vez Hermione decidiu fazer um bolo especial para comemorar o meu aniversário de 13 ou 14 anos, não lembro exatamente, e seguiu toda a receita até chegar à fase final, despejando a massa dentro do liquidificador, orgulhosa pelo fato de que até aquele momento conseguira manter distante qualquer indício de que o Armageddon entraria pela janela da nossa cozinha, mas depois que fechou o aparelho, não demorou a perceber que aquela tampinha que fica acima da tampa maior (que veda o liquidificador em definitivo), havia desaparecido, e mesmo ouvindo um barulho super estranho enquanto a massa do bolo ia e vinha, não se ligou que a pobre coitada estava sendo triturada... Bom, quando foi colocar a massa na forma, percebeu vários pedaços de acrílico e se deu conta de que a tal tampinha (a grande vilã) tinha sido guardada, ou esquecida, dentro do liquidificador.

PS.: ela e o Rony já contrataram uma moça que a Molly indicou para trabalhar no apartamento deles, depois do casamento, no sábado.

Ao passo que caminho sem pressa pelo corredor em direção à sala de estar, uma curiosidade sem tamanho vai se firmando dentro de mim. Desde que sai do quarto para o banheiro e depois fiz o caminho de volta, apercebi o relativo silêncio que está pairando no ar, sem ninguém reclamando, gritando, nenhum showbiz acontecendo. Será que a paz universal alcançou este apartamento ou será que fui transportado para algum lugar no tempo e no espaço aonde o silêncio dos inocentes é a língua universal? Dou de ombros e sigo meu trajeto e então, antes mesmo de atravessar a entrada da sala de estar, me deparo com Hermione acabando de se servir no minibar sobre o balcão de travertino integrado à lareira reformada.

Ainda que de perfil, é impossível não reconhecer a semelhança física que a aproxima de nossa mãe, e que a Gina, pelos céus, não me ouça. Se Hermione tivesse a mesma obsessão que a dela em querer ser a versão jovem de dona Joanne, teria a seu favor esse bônus, e com o rosto escondido atrás de quilos de maquiagem alcançaria esse objetivo sem muito esforço, entretanto com um grande e significativo diferencial: a impressão forte estampada nas linhas do seu semblante não traduz uma severidade extrema, um sinal de determinação de alguém que está inclinado em manter sua cabeça erguida, ao contrário, seu rosto quadrado, os olhos castanhos um pouco apertados, sobrepostos por sobrancelhas cujas partes internas acentuam-se ligeiramente para baixo, além de um nariz levemente arrebitado, um pescoço alongado e um queixo proeminente, não escondem a honestidade simples e a grandeza espiritual que carrega sem grandes alardes.

Hermione é daquelas pessoas que sempre busca sorrir, sem forçar a boca, interiorizando um sentimento de felicidade estampado com simplicidade em seu olhar, com o qual estabelece um contato visual que nos permite, em fração de segundos, identificar se a sua aproximação é uma ameaça ou se é útil para nossa sobrevivência. Apesar dos 16 anos que separam nossas datas de nascimento, sempre tivemos uma conexão muito, muito legal, possivelmente pelo fato de ela ter ajudado Molly na minha criação. As duas compartilham, dentro do meu coração, o lugar de “segundas mães”, e tenho orgulho de ser e me sentir protegido por cada uma delas... Talvez um dia tome coragem e lhes revele que sou gay, ainda que corra o risco de desapontá-las. Ainda que corra o risco de criar um abismo interligado por pontes extremamente fragilizadas.

— É isso mesmo? Ainda faltam quatro dias para o grande evento e a noiva já está enchendo a cara? Meu Deus do céu, onde iremos parar? - brinco, ao mesmo tempo que me aproximo de minha irmã para lhe dar um beijo no rosto, porém sou obrigado a esperar que ela vire num só gole o que está em seu copo.

— Estou me abastecendo desde já... - por fim Hermione se volta na minha direção e me encara, firme, com os olhos tão fixos que não há como não me sentir petrificado a ponto de esquecer o beijo que deveria lhe dar - Até porque não quero ser eu, meu irmão, a estragar a gloriosa manhã de sábado meticulosamente planejada por nossa mãe - ela completa, arqueando uma das sobrancelhas enquanto um ricto nervoso de desdém surge no canto dos seus lábios.

Após alguns segundos de completo silêncio, soltamos os dois uma longa gargalhada. Uma pena Gina nunca ter feito a mínima questão de participar desse ciclo maravilhoso da fraternidade consanguínea, da cumplicidade que une os irmãos, afinal, são eles, na prática, que nos ensinam a dinâmica complexa de viver em sociedade, dividindo, quase sempre na força, objetos e afetos, e quando os pais se vão, são os que nos mantém vinculado ao passado, ao nosso histórico, à essência de nossas vidas, e no caso dela e de Hermione, cuja diferença de idade é de tão somente sete anos, nada substituirá a experiência de praticamente terem crescidos juntas.

Acredito, de verdade, que Gina deveria repensar seus valores, essa sua necessidade descabida de querer sempre se destacar, ser notada a todo tempo por dona Joanne e pelo doutor Severus. Eu e Hermione jamais nos “divorciaremos” dela, mesmo diante da irritação contínua que provoca, não “criaremos novas famílias”, e aos 26 anos de idade Gina já deveria ter percebido isso, não? Só quero ver como será nosso convívio depois de sábado, do casamento da Hermione...

— O pai? Vai chegar a tempo para o casamento, não é? Está em Nova York, é isso? Não é tão longe assim... - pergunto simulando certo descaso e sem me preocupar em disfarçar o ar provocativo desse meu questionamento ao passo que termino o meu leite com chocolate e deposito o copo sobre a mesinha de apoio que fica ao lado do sofá não muito distante do minibar.

— Ele ligou agora de manhã. Vai pegar o voo de sexta à noite assim que terminar a última palestra do Congresso de Cardiologia, e a passagem, garantiu, já está comprada. Nosso pai, como sempre, se esforçando, não é mesmo? - o tom de voz usado por Hermione sugere conciliação e também uma senhora reprimenda. 

— Que assim seja... - disparo estampando um sorriso cínico na face - É impressão minha ou o apartamento está um silêncio... - emendo buscando urgentemente mudar de assunto.

— A Gina saiu com a mamãe - Hermione, apontando o copo vazio na minha direção, não me deixa terminar - Foi ajudá-la a supervisionar os últimos preparativos para o sábado, lá no navio... É óbvio que não fiz qualquer objeção.

Sim. Nossa mãe decidiu deliberadamente que uma cerimônia para 300 convidados no MSC Divina, um dos transatlânticos mais caros do Brasil, seria o projeto mais que perfeito e à altura para recepcionar a cerimônia da filha de uma das socialites mais reconhecidas e badalas do mitie carioca...

— Como assim? - indago genuinamente surpreso, mas também um tanto irônico - Está falando da nossa irmãzinha egoísta e que está morrendo de inveja por que você está se casando e não ela? Se a Gina não saiu daqui acorrentada, em que circunstâncias dona Joanne a convenceu em acompanhá-la justamente na supervisão dos preparativos finais desse casamento?

Rimos mais uma vez e outro instante de silêncio recai sobre nós dois.

— Você está bem, Hermione? Parece triste - pergunto, sentando-me no sofá.

— E por que não deveria estar? - ela devolve ao mesmo tempo que ensaia um sorriso.

— Eu já sei da resposta, mas não custa perguntar: não era você quem deveria estar ao lado da dona Joanne nesses momentos finais? Dando saltos de alegria e compartilhando toda a euforia e o estresse? Compensando, quem sabe, a distância que decidiu manter de tudo isso...

Hermione dá de ombros e se vira para preparar mais uma bebida.

— Não me importo em ficar aqui, quietinha, e você bem sabe disso. Satisfaço-me em chegar no sábado, dizer sim pro padre, pro Rony, pros convidados, e todos ficarem felizes para sempre... Não é assim que deve ser? Não é assim que está planejado?

Depois que termina de encher o seu copo, ela se volta e me oferece um pouco do que está lá dentro, o que recuso prontamente, apesar de me sentir bastante tentado.

— Quem não te conhece e ouve você falando assim, do seu casamento, vai pensar que não faz a mínima questão de que ele aconteça...

Hermione entorna a bebida goela abaixo, de uma só vez, e em seguida coloca o copo pausadamente sobre o balcão de travertino e me fita com um meio sorriso no canto dos lábios, esforçando-se, de certo, em ocultar o incômodo que a minha observação lhe provocou.

— Harry, meu irmão, não aja como a nossa mãe, insistindo no óbvio e ignorando os fatos. Você sabe que por mim toda essa história de comemoração de casamento nunca teria sequer começado, entretanto, já que chegamos até aqui e eu não tive forças ou coragem para decidir o contrário, vou seguir essa maré tentando não desapontar as pessoas que estão envolvidas... Pelo menos não muito... E antes que essa sua cabecinha trabalhe mais do que o necessário, não tem nada a ver com o Rony.

Ela mal termina de dizer suas palavras, diga-se de passagem, sem muita convicção, e caminha até a janela, onde estaca, fixando o olhar à sua frente, me dando a impressão de que seus pensamentos estão vagando de modo aleatório diante do céu claro desta manhã de terça-feira.

— Aprenda que na vida fazemos ou abrimos mão de certas coisas pela felicidade da outra pessoa...

Novamente o silêncio domina a sala por um momento, muito rápido, já que Hermione dessa vez não demora a se virar, dando as costas para a janela e em seguida se dirigindo até o sofá onde estou sentado, deixando-se cair ao meu lado; seu olhar, depositado sobre mim, mescla firmeza e ternura.

— Pelo jeito a tristeza não teria tomado conta só da minha pessoa, não é mesmo? Você está bem meu irmão? Como está o Draco? Já faz uns dias que não os vejo juntos andando pelo condomínio... - seu questionamento soa um tanto ambíguo e cauteloso...

“Como está o Draco?”. O que ela exatamente quer saber com essa pergunta? Eu me retraio. Em que instante, desde que entrei nesta sala, deixei transparecer o tsunami de emoções que está acontecendo dentro de mim? Não é a primeira vez que tenho a impressão de que Hermione desconfia de alguma coisa, de que está prestes a questionar o que não vou querer responder. 

Tento desconversar, mas ela insiste, repetindo a pergunta feita. Desvio, então, meu olhar para as garrafas no minibar e para apaziguar sua sensibilidade, ou seu sexto sentido, que sempre parecem estar aguçadíssimos quando o assunto é o meu estado de espírito, volto a fitá-la enquanto esboço uma explicação que, de certa forma, possuí uma meia verdade: estou um pouco confuso com a minha vida, com a escola, com os meus dias e a minha A-MI-ZA-DE com o Draco está indo muito bem, obrigado! Em seguida arremato alegando estar atravessando uma fase naturalmente conturbada, como é de praxe na adolescência, a ansiedade pela vida adulta que está apontando na minha frente, blá-blá-blá...

— Meu irmão... - Hermione segura o meu queixo com extrema delicadeza forçando o encontro de nossos olhos - Ser feliz é algo muito fácil de realizar, desde que consiga acertar com as suas setas no alvo e saiba quais são as suas prioridades para que isso possa acontecer. Pare e pense no que realmente está te fazendo infeliz. Para obtermos aquilo que queremos, temos que fazer por onde, ultrapassar as dificuldades, mesmo que os obstáculos deixados pra trás incomodem as pessoas... Não se culpe por nada e nem tente carregar um fardo que não é seu.

Por alguns segundos tenho a impressão de ter parado de respirar e Hermione percebe o meu incômodo e então solta o meu queixo e se levanta, indo novamente para o bar ao mesmo tempo que sorrio um sorriso sem graça. Posso estar sendo paranoico, mas acho que minha irmã, sem sombra de dúvidas, está querendo me dizer alguma coisa e está faltando muito pouco para que isso aconteça. Será que ela está desconfiada de que sou gay? Pior! Será que ela sabe sobre o que sinto pelo Draco e está esperando o momento certo para me perguntar? Eu não posso ter deixado brecha, tenho certeza de que não deixei... Hermione está estressada, exaurida com a aproximação do seu casamento, é isso, pronto. Não restam dúvidas: o estresse causado pela aproximação do seu casamento.

O celular de Hermione começa a tocar e de pronto ela o atende. Aproveito para deixar o ar retesado em meu peito escapar pela boca, aliviando-me enquanto não demoro a descobrir que é o seu noivo do outro lado da linha informando que está na portaria lhe esperando. Ela, evidentemente, sugere que ele suba, mas pela cara que faz após ouvir sua resposta, deduzo que Rony deva ter deixado claro de que não irá sair de onde está em hipótese alguma.

—Está tudo bem, Rony? - Hermione pergunta ao passo que se afasta do bar.

Faço sinal para tentar saber o que está acontecendo enquanto aponto para o pulso, sugerindo que é um tanto cedo demais para alguém (mesmo um noivo, quase marido) chegar na casa de outra pessoa, mas Hermione dá de ombros, como se não estivesse também entendendo nada. Por fim ela troca mais meia dúzia de palavras com Rony e então desliga o telefone. Seu semblante está tomado de ansiedade.

— Quem sabe ele não quer te fazer uma surpresa? - tento amenizar.

— Conheço o Rony muito bem... - ela afirma ao tempo que caminha até o hall de entrada - Surpresa realmente não é o seu forte, mas vou lá, não adianta ficar aqui especulando...

Hermione desaparece do meu raio de visão e em seguida ouço a porta do apartamento bater e mal tenho tempo para refletir o quão somos extremamente semelhantes em relação à coragem para encarar nossas vidas, pois acabo por prestar atenção em uma música que está tocando ao longe e que em questão de segundos acabo por reconhecer: é “Young Folks, a canção que define o toque das ligações de Draco.

Não posso acreditar!

Alço voo do sofá e corro na direção do meu quarto e de tão afobado que estou acabo escorregando num dos tapetes persas que fica no corredor e caio com os dois joelhos no chão e por pouco meus óculos não chegam antes de mim.

Merda! Não vou desistir.

Com uma dor filha da puta, sustento todo o peso do meu corpo sobre um dos apoiadores e consigo me levantar, feliz porque o celular ainda está tocando, graças a Deus. Ainda que precisasse me arrastar, não deixaria Draco pensar que eu não quero falar com ele.

Praticamente na velocidade da luz, cruzo a ombreira da porta e estaciono alguns passos adiante enquanto vasculho com um olhar investigativo todo o quarto e graças ao Pai não demoro a encontrar o meu telefone, jogado num canto da cama. Moto contínuo, pouco importando se me vou estabacar outra vez no chão, mergulho sobre o edredom e por sorte eu consigo cair sobre o colchão, sem risco de vida, atendendo, por fim, e naturalmente ofegante, o celular.

— Tava correndo, Harry?

— Eu? Imagina - como é bom começar o dia ouvindo a voz da razão do meu afeto, penso comigo, inebriado - Estava indo para o banho quando você ligou.

— Escuta, Harry - Draco dispara seco - Me encontra na frente do colégio meia hora antes da entrada, ok?

— Tá tudo bem?

— Não - ele responde taxativo.

— O que houve?...

Nem tenho tempo de terminar a pergunta, pois Draco já desligou o telefone. Não importa. Ele deu sinal de vida...

YES!

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A difícil arte de ser eu, Harry" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.