A difícil arte de ser eu, Harry escrita por Sangster


Capítulo 6
Nas profundezas do mar sem fim




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Abro os olhos e de pronto me deparo com a luz do sol, ainda que um tanto pálida, começando a se espalhar sobre o teto do meu quarto. Como se estivesse me preparando para ajudar Atlas a carregar o peso do mundo, me espreguiço em cima do colchão, transformando lençol e edredom num verdadeiro ninho de gato enquanto inclino a cabeça para o lado, na direção do criado mudo e em seguida para a escrivaninha, que não fica muito distante da cama e depois de volta para o criado mudo até que, por fim, encontro meus óculos descansando, jogado em meio aos meus fones de ouvido, a uma caixa de lenço de papel quase vazia e a um pequeno relógio de mesa, azul, em formato de TV antiga, bem retrô, presente do meu pai quando completei dezesseis anos.

Não sei em quem o doutor Severus estava pensando quando decidiu comprar esse “mimo”, porém, com certeza, não foi na minha pessoa, o que não me surpreendeu no final das contas. Nós, Hermione, Gina e eu, somos filhos de um pai apático, que sempre pareceu não se importar se morava ou não no mesmo apartamento; um ser humano para quem tudo tanto faz, nunca participando de nada, não se envolvendo, inexpressivo, impossibilitando de todas as formas a criação de um vínculo de intimidade e afeto: um homem extremamente dedicado à sua profissão, e isso é louvável, mas ao mesmo tempo uma figura decorativa a quem aprendemos a chamar de pai.

Para mim, ser pai não tem nada a ver com trazer dinheiro para casa, ao menos não deveria ser considerada a prioridade número um, e se for, a família vai acabar ficando para trás, pois o ser humano vai deixar de conhecer os próprios filhos, de passar momentos importantes com cada um deles, afinal de contas não deve ser impossível equilibrar a dedicação profissional com a dedicação à própria vida dentro do lar. Eu faria isso com um pé nas costas se tivesse filhos. Assumiria minha responsabilidade sobre a nova geração que estaria aos meus cuidados, até porque me preocuparia e muito com o legado que gostaria de deixar...

Será que o doutor Severus vive, de fato, uma realidade que gostaria, ou as circunstâncias o condenaram a uma existência que não é a sua, e agora não consegue mais se liberar da rede de obrigações na qual está envolvido? No livro “A morte de Ivan Ilitch”, um exemplar dentre tantos outros clássicos da literatura mundial apresentado por meu ex-professor, Sirius, de Língua Portuguesa e Literatura, Tolstoi narra a trajetória de um individuo que enquanto jovem nunca se preocupou em examinar a própria vida até que uma doença surge e o leva inesperadamente à morte, com apenas 45 anos, e durante o seu martírio, vendo a aproximação do cessar de sua existência sobre a face da Terra, o que lhe dói mais não é o sofrimento físico, mas sim a conclusão que desconhecia a própria vida por tê-la condicionado às engrenagens conservadoras das regras sociais. 

“Talvez eu não tenha vivido como deveria. Mas como se eu sempre fiz o que devia fazer?”. É o questionamento que Ivan, todavia, se impõe, após o diagnóstico fatal, ao passo que a angústia para a solução do enigma da vida e da morte o vai consumindo até se tornar insuportável.

Mas por que mesmo estou divagando sobre a lacuna deixada pelo doutor Severus, gastando massa encefálica tentando entender os motivos que o levaram a criar um abismo entre nós, de ter desistido deliberadamente de acompanhar a evolução e o desenvolvimento da sua prole? Se eu descer por essa estrada vou acabar mergulhando nas profundezas de um mar sem fim e esbarrar também em dona Joanne e na sua misteriosa postura de cumplicidade ou omissão em relação a tudo isso... Pensando bem, em essência, os dois não são tão incompatíveis assim.

Tiro os olhos de cima do pequeno relógio de mesa, não sem antes conferir as horas, 06h10min, e apoio o corpo sobre o braço direito, me esticando apenas o necessário para alcançar os óculos, conseguindo, por fim, retirá-los do criado mudo, deixando incólumes, por incrível que pareça, todos os objetos ao seu redor e em seguida, ao mesmo tempo que o encaixo sobre o rosto, volto a deitar a cabeça no travesseiro e a fitar o teto como se estivesse tentando descobrir o sentido da minha existência. Não estou com um pingo de disposição e tão pouco coragem de enfrentar a tela do meu celular para constatar que o Draco visualizou minha mensagem (idiota) e não retornou.

Bocejo enquanto a sensação nefasta das poucas horas de sono desaba sobre mim. Já estou me vendo pagando mico no ônibus do condomínio, apesar do curto trajeto até a escola: vou transformar o meu casaco em travesseiro, a poltrona em cama, bater com a cabeça no vidro da janela ou no encosto e me assustar, e como se não bastasse tudo isso, eu ainda vou precisar lidar com os risinhos dos outros, e por culpa de quem? Do “senhor desaparecido”. Aliás, espero que mude seu status para “estou de volta com o rabinho entre as pernas” e tenha o bom senso de me poupar de qualquer detalhe sórdido que possa ter vivido com a sua nova namoradinha...

Outro bocejo. Não quero imaginar como vou me sair na prova de História que vou encarar logo no primeiro tempo. Você estava certo Carlos Drummond de Andrade quando afirmou que nossos ombros suportam o mundo a despeito de não pesarem mais que a mão de uma criança.

Sem o mínimo sinal de pressa, viro o corpo para o lado, dobro as pernas e impulsiono, com a ajuda das mãos, meus 639 músculos e 206 ossos até conseguir ficar sentado, à beira da cama, olhando para o chão, ao tempo que respiro bem fundo, enchendo os pulmões de ar e deixando os ombros caírem enquanto meus pensamentos (e não poderia ser diferente) me remetem de volta a Draco, porém desta vez mensurando a energia que venho gastando com ele nas madrugadas insones nesse quase um ano de amor não correspondido.

Preciso reconhecer, de vez, que estou utilizando mecanismos de defesa para gerenciar os conflitos da minha paixão platônica pelo meu melhor amigo. Não é a privação do sono nos dias seguintes a essas vigílias descabidas que está me deixando irritado, quase sempre com dores de cabeça e enxaquecas, interferindo na minha habilidade de processar novas informações. Minhas noites mal dormidas são, na verdade, consequências, não a origem do problema. Devo admitir que eu venho me sentindo exausto e aborrecido por estar me esforçando em tentar encontrar alguma coisa, qualquer coisa que não me faça desistir de Draco, do que sinto por ele, pois tenho medo, pavor, verdadeiro desespero de “abrir os olhos” e enxergar o quão vazio eu estarei por dentro ao constatar que amei em vão, que meus sorrisos bobos, frouxos, o frio na barriga e os olhares discretos, se tornaram lugar comum dentro dessa minha jornada.

Olhando em perspectiva, acredito que minha vida amorosa (se por acaso existir) não será muito diferente quando encontrar outros caras, ainda que tenha a sorte de ser correspondido. O amor até pode ser incompreensível, um tanto louco e sacana, mas não é opressivo, pois assim como desistir de tudo e sair pela porta da frente, ficar é uma grande escolha e nesse momento, para o bem ou para o mal, optei investir nesse sonho impossível. Tem pessoas que são felizes amando o intangível...

Nossa! Eu não tô bem. Não tô dizendo coisa com coisa...

Apoio os cotovelos sobre os joelhos, e em seguida inclino a cabeça para baixo, até conseguir encostar as palmas das mãos nos extremos da minha testa e daí fecho os olhos e sem qualquer indício de vergonha, assumo a inveja que tenho das garotas que conseguiram se aproximar do Draco e com ele compartilharam algum tipo de sentimento e experiência depois que ultrapassaram a leve sensação de que algo forte os ligava. Concluo o quão prático seria o início do nosso namoro, pois não precisaríamos, nem eu e nem o Draco, atravessar o exaustivo campo minado para conquistar o crush de vez, pois saltaríamos o velho ponto de partida, o de ir para uma baladinha para tentar conhecer alguém, depois o primeiro encontro em alguma praça de alimentação de algum shopping, a primeira ida ao cinema, depois outro encontro, e todo esse malabarismo cercado de grandes expectativas, de uma tensão desesperadora em tentar mostrar ao outro apenas nossas qualidades.

Numa sucessão de movimentos ininterruptos, abro os olhos, afasto a cabeça de entre as mãos e me atiro para trás, por cima do colchão, enquanto deixo os braços levantados para o alto e respiro fundo ao tempo que tento controlar meus batimentos cardíacos, observando as dimensões do meu quarto tomando forma sob a luz do sol que atravessa a janela.

Não há nada, ou melhor, quase nada que o Draco não conheça a meu respeito e eu a respeito dele, então deixaríamos de lado o disse me disse e relaxaríamos, sendo nós mesmos, sem afetação, evitando o estresse desnecessário, pois já saberíamos o tipo de pessoa que teríamos à nossa frente, as reações de cada um, tornando tudo muito mais aprazível e confortável...

Chega! É isso mesmo? A manhã da ponderação?

Primeiro especulo a índole paterna do doutor Severus, depois faço um check list dos itens necessários, ou não, de um improvável namoro com o Draco... Alguém pode me dizer por que estou aqui, refletindo sobre essa merda toda, como se não tivesse mais com o que me preocupar? Preciso tomar um banho antes de ir para a escola, principalmente depois da minha aventura da madrugada, aliás, provavelmente terei de fazer essa samba canção que estou usando desaparecer do universo.

Baixo os braços e sem urgência termino de percorrer o teto com um olhar investigativo ao passo que começo a arquitetar um plano mirabolante para quando der de cara com o meu celular conseguir ignorar as mensagens no Whatsapp, nem que eu tenha que chegar ao extremo de desinstalar o aplicativo do telefone.

Enquanto sigo ouvindo o som do silêncio abismal perfazendo todo o ambiente, experimento uma sensação de vazio trespassando o meu coração, dores musculares irradiando pela região cervical e um medo irracional de estar perdendo alguma coisa inflamando o meu cérebro, ao mesmo tempo que inseguranças e crenças negativas que teço sobre mim tomam proporções titânicas, para logo em seguida engolir em seco e sentir meu corpo inteiro estremecer enquanto luto com a vontade recorrente de fugir, sair correndo sem destino, só parando quando estiver cansado e, se possível, distante de tudo o que eu conheço, distante até mesmo de você, Draco...

É isso, já dizia Caio Fernando Abreu, o problema é a espera. Esperamos (demais) das pessoas, das coisas, dos fatos, de nós mesmos.

Salto da cama como se estivesse me preparando para levantar voo, e sem conseguir ficar parado inicio uma trajetória de passos largos, indo de um lado para outro do quarto, transpirando inquietação e angústia intensas até me sentir sufocado com o desespero que arranha minha garganta, quase me obrigando a gritar bem alto, como um lobo solitário, nas montanhas enegrecidas, debaixo da lua cheia.

Dizem que eles, os lobos, uivam para espantar as dores e as aflições aprisionadas dentro do peito, vociferando carregados de cólera e revolta contra as agruras do mundo, as asperezas da realidade...

Merda.

Imediatamente volto-me e corro os olhos sobre a cama buscando o celular, rezando para que minha mensagem não tenha sido lida (o que acho pouco provável), enquanto torço lá no fundo, bem lá no fundo, para que Draco a tenha visualizado, sim, e me respondido. Em um canto, sob o travesseiro, encontro o aparelho e tomado pela avidez o arranco do seu local de descanso e o trago até a frente do rosto numa sucessão de movimentos arrebatados, quase o deixando cair e infelizmente não me surpreendo com o que vejo: MENSAGEM VISUALIZADA E NÃO RESPONDIDA.

Veado! Praguejo sobre a tela do aparelho como se o pobre coitado tivesse culpa de alguma coisa e sem demora o atiro de volta sobre o lençol, sobre o edredom, e daí eu continuo disparando trocentos palavrões até que minha ira se dispersa ao ouvir o toque do telefone, mas essa trégua zen não dura nada mais que milésimos de segundos, pois a música que está berrando anuncia ninguém menos que a insuportável da Fleur me aguardando do outro lado da linha, e é óbvio que não quero falar com ela.

Atender uma ligação do diabo veste Prada é a última coisa que poderia me acontecer, ainda mais com o dia mal tendo começado, porém o meu anjo da guarda, que deve estar de saco cheio e doido para não “se” meter em mais uma confusão, me faz ponderar, pesar os prós e os contras, convencendo-me a dar o braço a torcer, porque a insana, como sempre, não vai desistir até ouvir o som da minha voz.

Resignado, mas não muito, respiro fundo, já me preparando psicologicamente para o que está por vir, enquanto inclino-me sobre a cama a fim de resgatar o famigerado telefone, trazendo-o para perto do ouvido tão logo termino de prometer que nunca mais comprarei qualquer outro livro até concluir a leitura de todos que tenho, desde que essa Barbie fake, claro, esqueça que eu existo. Não será uma meta fácil de alcançar, mas tudo nessa vida, devidamente motivado, se conquista.

— Oi - meu cumprimento é tão frio quanto um bloco de gelo indolente no meio do Alaska.

— Você está acordado, Harry?

— Não, Fleur. Isso é uma gravação - respondo entre os dentes - O quê você acha?

— Precisava falar com você sobre o plano que consegui bolar para reconquistar o Draco definitivamente - o entusiasmo na sua voz me deixa ainda mais irritado.

— Fleur, você me mandou um Whatsapp ontem no finalzinho da tarde sobre isso, não sei se consegue se lembrar, mas deve ser por causa da hora, né, ainda não são nem seis e meia da manhã... - arremesso sem me preocupar em estar sendo rude ao passo que visualizo os ponteiros do pequeno relógio de mesa sobre o criado mudo. 

— Sim, eu sei, mas é que eu não consegui pregar os olhos de tanta ansiedade. Quase liguei pra você no meio da madrugada...

Reviro os olhos, impaciente. Deus precisa me dar forças e para o meu anjo da guarda um ansiolítico bem forte.

— Fleur, seguindo as suas orientações - meu tom de voz beira o inflexível - Eu irei encontrá-la no intervalo do segundo para o terceiro tempo, na saída do corredor para a sala de música, a fim de falarmos a respeito desse mais novo e mirabolante projeto para você ter o Draco de volta, não é isso? Se considerarmos de antemão o perfil falível dos outros planos arquitetados nessas duas últimas semanas, é óbvio que este, que ainda não sei qual é, também irá por água abaixo, afinal, contra fatos não há argumentos, então que tal esquecermos tudo isso e voltarmos com as nossas vidas, nos ignorando pelos corredores do Hogwarts como... 

— Dessa vez não tem como dar errado Harry... - ela me interrompe sem qualquer hesitação.

— Sei...

— É sério. Não tenho dúvidas de que o Draco vai se roer de ciúmes ao nos ver juntos, depois de anunciarmos aos quatro ventos o nosso namoro...

— Depois do quê?

— Eu e você seremos o mais novo casal do Hogwarts, Harry. Uma jogada de mestre, fala a verdade. Nada menos que a Miley Cyrus e Liam Hemsworth...

— Eu compreendi direito, Fleur? - meneio a cabeça enquanto tento assimilar o que acabei de ouvir - Nosso namoro? Como assim “nosso namoro”?

— Que parte você não entendeu, lindo? Vamos fingir que somos namorados, ora essa - ela informa como se fosse a coisa mais natural do mundo.

— Do que você está falando, garota? É claro que eu não vou participar disso. Sem falar que o Draco não vai acreditar nesse teatrinho e muito menos se importar...

— Isso é o que veremos!

Não tenho tempo de responder ou contra-atacar, a descontrolada desliga o telefone sem me dar essa chance. Munido da incontestável estabilidade que define as três leis de Newton, decido que não vou ligar de volta e muito menos vou me permitir tomar parte dessa loucura. Era só o que me faltava. Até poucas semanas atrás essa arrogante, antipática, metida e intragável nem me olhava na cara e agora de uma hora para outra vamos ser namorados? Não consigo conter um ricto nervoso de completa incredulidade que se forma no canto dos meus lábios...

Sem sombra de dúvidas Fleur está consumindo algum tipo de droga pesada e ilícita, como aquele Chapeleiro, nos país das Maravilhas, e está perdendo o que resta do pouco da sua sanidade mental, mas se ela está pensando que vou ficar batendo palma pra maluco dançar, está redondamente enganada. Como já havia decidido, ontem, enquanto congelava dentro do ônibus do condomínio, alguém precisa retomar o centro da razão e do amor próprio nessa história toda. Esse encontro, lá, na saída do corredor para a sala de músicas, vai feder.

Respiro fundo e buscando controlar o que resta das minhas emoções, saio do quarto, pé ante pé, pois não quero me aborrecer ainda mais se por acaso vier a me deparar com a estressada da dona Joanne ou então com a histérica da Gina. Não sei, e nem quero saber, como terminou aquela ensandecida crise de ciúme de ontem à noite que minha irmãzinha decidiu ter, ou se minha mãe se deu por satisfeita com os argumentos da Belatriz Lestrange nesta reta final para o casamento da Hermione. Como se já não bastasse minhas poucas horas de sono mal dormidas, o desprezo do Draco e o desatino da Fleur, eu ainda vou precisar lidar com os gritos e os chiliques destas duas primas donnas que perderam o controle de suas vidas e optaram por desabar suas frustrações pela busca da perfeição em cima das pessoas que, a priori, deveriam amar e respeitar acima de todas as coisas? Never. Nie. Siempre. Jamais.

Durante o curto trajeto pelo corredor, onde o banheiro me aguarda na outra extremidade, aliás, sempre que atravesso essa parte do apartamento não tenho como não me sentir num espaço onde está ocorrendo alguma exposição para qual não fui convidado, pois é incompreensível que um mero lugar de passagem para outros cômodos precise de tanta atenção a ponto de receber uma decoração com prateleiras, apoiadores, tapetes persas, murais com fotografias da família (aham) e uma iluminação diferenciada, volto a me questionar sobre um dos mistérios do universo que nunca serão revelados: um apartamento de “apenas” 700 metros quadrados e só eu não tenho um quarto com suíte.

 


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