Rainha escrita por André Tornado


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

História originalmente escrita para a plataforma Spirit, para o projeto Doçuras ou Travessuras.



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O cheiro nauseabundo da pestilência inundava o grande Salão Real, mas ninguém ousava proferir um queixume ou uma censura. O Rei estava louco, contava-se e assim lhes parecia, quando se voltavam para o trono e o espiavam, temerosos e piedosos. Ali estava a majestade, de olhos congestionados, mãos enclavinhadas na nobre cadeira imponente, respiração pesada, dentes a ranger, suado e desgrenhado.

Obedeciam-lhe porque ele era o soberano e porque tinham, sobretudo, medo.

Um terror horrível que lhes arrepanhava a alma e em segredo, não fosse o monarca descobrir-lhes a fraqueza, benziam-se para afastar de si a ira de Deus que estava a ver aquilo desde os Altos Céus e se estaria a indignar. Castigos viriam em breve, todos acreditavam. Penas inomináveis que causariam grande mortandade.

Aquela cerimónia não era natural, não era cristã, não era digna.

O beija-mão prosseguia. Os cortesãos desfilavam pelo segundo trono e deixavam a sua bênção à Rainha imóvel. Seguravam-lhe na ponta dos dedos, com desvelo, chegavam os lábios ao anel que pendia frouxo entre as falanges, deixavam um ósculo tímido, um mero roçar da boca trémula na joia. Não se atreviam a fingir. Inclinavam-se e beijavam efetivamente a mão da Rainha. Porque o Rei, ao lado, os observava entre a fúria e a ânsia, rosnando em aprovação sempre que um nobre terminava a cortesia.

A carne já se desprendia putrefacta dos ossos, as larvas esgueiravam-se pelos buracos abertos. E o fedor… o fedor era insuportável. Mesmo enrolado num vestido do mais fino brocado, mesmo enfeitado com pedras preciosas e a ditosa fronte ornada com uma bela coroa, o cadáver de Dona Inês de Castro, desenterrada do seu túmulo, perturbada no seu sono eterno, restos mortais profanados, era motivo de piedade e de escárnio no seu papel de Rainha de Portugal.

Rainha depois de morta!

Mas quem ousava contrariar o grande amor do Rei Dom Pedro I? Um amor que o levara àquela insanidade de proclamar a sua amante como Rainha para legitimar os filhos bastardos que tivera com a dama galega? Um amor que a designara Rainha desde a sepultura?

Esse amor já tinha provado como podia ser tétrico, perigoso e mortífero. O que tinha feito o Rei com os assassinos de Dona Inês? Contava-se que apanhara dois deles e que os fizera provar da dor do seu coração partido. Mandara-os executar enquanto se banqueteava, oh!, supremo dos horrores. Ao primeiro, dissera ao carrasco que lhe arrancasse o coração pela frente. Ao segundo, dissera ao mesmo carrasco que o fizesse pelas costas.

Então, quem ousaria levantar voz contra aquele beija mão infernal?

Se o Rei investira a Rainha depois da sua morte, se o Rei ordenara que fossem prestar homenagem à Rainha cujo cadáver sentara no trono, os nobres obedeciam.

E faziam-no, um atrás do outro, vergados num cortejo mudo e impressionado.

Veneravam relutantes o corpo estragado pela decadência que fora belo em vida.

Aceitavam a mulher que Dom Pedro jurara amara por toda a eternidade – mesmo depois da morte! – mostrando ao Rei que também eles a amavam. Pois que de outra forma dispensavam beijos tão abnegados à morta?


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Notas finais do capítulo

Esta é uma lenda de Portugal - que Dona Inês de Castro foi feita Rainha de Portugal depois de morta pelo Rei Dom Pedro I.
O que é facto histórico é que os dois se amavam terrivelmente e que por causa dela, Dom Pedro I de Portugal batalhou contra o pai, o então Rei Dom Afonso IV.

Atualmente, Dom Pedro e Dona Inês estão sepultados no Mosteiro de Alcobaça, os respetivos túmulos com os pés voltados um para o outro - para que no Dia do Juízo Final, quando se erguerem das suas sepulturas, se possam voltar a ver e que sejam o primeiro rosto que vejam nesse dia glorioso.

Muito obrigado pela leitura!



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