Contos de cem anos escrita por Noemi R Almeida


Capítulo 7
Tudo que não devíamos ver


Notas iniciais do capítulo

Esta história foi baseada em uma tarde que passei com a minha família. Os diálogos são quase os mesmos e as lendas realmente existem naquela fazenda, quanto as criaturas...talvez eu não as veja, mas elas devem me ver.



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São Lourenço (SP), Fazenda Vitória. 2018

A fazendo Vitória era um amontoado de chácaras que vinha crescendo a medida que as pessoas se cansavam de apartamentos nos centros, continha asfalto apenas na rua de entrada, em frente ao bar do Senhor Carlindo. Algumas chácaras se escondiam nos corações das matas fechadas, outras eram apenas casas modernas gradeadas, algumas chácaras possuíam casas douradas protegidas por cachorros de lança, outras eram apenas barracas feitas por família nômades de quatro ou seis filhos  de pele picada. 

Aquela Fazenda era de clima bipolar, logo de manhã o Sol nascia queimando aqueles que esperavam no único ponto de ônibus, durante o almoço ventos fortes urravam pelas matas e espalhavam o fogo proibido, o frio chegava pela tarde, e a névoa nascia das profundezas das matas anunciando o reinado sedutor da noite. As ruas de terra ora se encontravam secas e poeirentas, ora se encontravam úmidas satisfazendo as bananeiras, cães vadios andavam por entre as chácaras procurando emprego de caseiro e crianças procuravam suas lanternas para andar na noite.

A Fazendo Vitória era linda e possuía uma calma invejável, mas também colecionava seus segredos e mistérios no fundo de seu coração fechado. 

Em um sábado de garoa um EcoSport preto se despedia de sua chácara e dirigia pelas ruas com poças, as bananeiras exibiam seus frutos pelo caminho causando inveja no motorista cuja chácara não dera uma única pacoba, a cão-piloto (como era chamada a carona) procurava por algum gato vagabundo solto na estrada para acariciar, a figura materna que andava no banco de trás se contentava com biscoitos enquanto o mais novo de todos fazia mil e uma perguntas, tornando o trajeto perturbado.

Ao descer uma ladeira de neblina os passageiros notaram a reunião de cachorros de diversas chácaras e sítios, entre eles havia pastores alemães e cães vira-latas, pareciam conversar sussurrando. Quando o Eco passou perto, os cachorros cessaram a conversa e olharam para os humanos que os chamavam com assobios e carinhos. Estavam sérios e preocupados demais para abanarem o rabo.

—Ah, que chatos! -Disse Samuel, o mais novo.

O Eco continuou o caminho.

—Eu queria ver uns animais diferentes -Reclamou novamente.

—Dona Gilza diz que vê um monte de animais, tipo macaco e veado -Disse a cão-piloto -Até preá de pêlo vermelho.

—Lembra dos macacos que saíram roubando todo mundo ? -Relembrou a mãe.

—Eu queria ver e não ouvir que os outros viram! -Samuel parecia irritado -Eu queria ver uns bicho diferente.

—Cuidado com o que você diz! -Disse o motorista -Você vai acabar vendo o que não quer.

—É verdade! -Concordou o mais novo.

—Aí depois fica parecendo um louco -Cão-piloto riu.

 

No coração da Fazenda Vitória as criaturas acordavam, a noite ainda estava longe mas a neblina serviria como uma cortina e, assim, poderiam vagar por entre as pessoas. Causando e sendo motivos da reunião dos cães vigiantes.

O Infinito parecia se isolar de todo o mundo e universo para focar sua visão em São Lourenço, se divertia com aquele lugar tão pequeno e misterioso, era a sua obra-prima. Ouviu o desejo de Samuel e o atendeu com um sorriso malicioso.

 

O EcoSport já alcançava o bar do JP quando a cão-piloto começou a cantarolar Domingo no Parque, os adultos pareciam ocupados com medidas do chalé que estava sendo construído no seus terrenos, Samuel estava com o rosto enfiado no tablet jogando algo colorido e barulhento. De repente algo de pêlo negro e de quatro passou correndo na frente do carro, a cão-piloto foi a primeira a gritar. 

—Um gatinho! -Ela abaixou o vidro e estalou os dedos -Psiu, psiu!

—Aquilo não era um gato, ô doida! -Disse o motorista -Que tipo de gato tem aquele tamanho?

—Não era um cachorrinho? -Perguntou a mãe.

—Cachorro não corre daquele jeito -A cão-piloto procurava com o vidro aberto.

—Gente o que era aquilo? -Samuel havia esquecido o tablet em suas mãos -Deu medo!

—Deve ter sido um gato -Todos concordaram e seguiram caminho.

Samuel porém estava com medo, de repente a estrada parecia isolada e mais escura com a névoa crescente. Os adultos continuaram a conversa e a cão cantava, mas Samuel olhava a cada dois minutos para as janelas procurando por monstros de sua imaginação infantil.

Alguns minutos depois os mais velhos contavam algumas histórias em que o menino não presenciara por ser novo, riam e se irritavam com lembranças de nove anos atrás. O menininho parecia ter esquecido de seus monstros da mata e novamente jogava em seu aparelho, estava com a janela aberta e deixava uma leve brisa entrar.

Em um trajeto da estrada lotado de buracos o Eco passava com dificuldade e lentidão, estavam todos ocupados conversando quando uma vozinha leve e assustadora chamou Samuel do lado de fora.

—Oi menininho -Disse a voz.

—Vocês ouviram? -Perguntou Samuel aos seus familiares.

Eles estavam ocupados demais conversando e apenas balançaram a cabeça.

—Ei menininho, olhe para nós! -Chamou novamente a voz de dentro do mato.

Samuel, sendo uma criança curiosa, virou o rosto para a direção da fala. Não havia nada além de matos úmidos e passarinhos em seus ninhos, até que algo se mexeu de dentro da parte mais fechada.

—Ei menininho, você não queria nos ver? -Disse uma voz do outro lado da rua -Olhe mais para dentro. Olhe para a parte mais escura.

Samuel fechou os olhos com medo, fingiu que estava com sono e se escondeu no colo da mãe. As vozes ainda o convidavam toda vez que passava perto de uma parte mais fechada do mato. 

—Ei, venha brincar. 

—Ei, menininho.

—Olhe para nós.

—Somos legais.

—Não somos como os cães chatos.

—Olhe para cá!

Samuel já estava chorando em silêncio quando ouviu os barulhos de carro, haviam alcançado a avenida que ia em direção a metrópole.

O medo sumiu e a curiosidade voltou mais forte, Samuel ficou de joelhos no banco do carro e olhou para trás, para a entrada da Fazenda Vitória.

Parado no meio da rua, em meio a névoa e a escuridão causada pela falta de energia, havia uma criatura grande e forte, de chifres vermelhos e cara de bode, estava em pé como um homem e sorria mostrando seus dentes pontiagudos. Ao seu lado criaturas distorcidas apareceram das profundezas da Fazenda, todas acenavam e sorriam para Samuel.

—Ei menininho -Chamou o homem de chifres -Agora você nós vê, mas nós sempre vimos você.

 

 


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