Contos de cem anos escrita por Noemi R Almeida


Capítulo 5
Pegadas arco-íris




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Juquitiba, 1995.

 Em uma chácara do século 18 em uma casa grande mas velha demais, em um dos quartos com mobília europeia sobre um lençol de origem chinesa, uma mulher de trinta e um anos chorava e fazia força. Com as pernas abertas e enfermeiras contratadas ao seu lado, Natália trazia ao mundo Florence, que aos gritos anunciou sua chegada.

Era uma menininha digna de ser modelo mirim, com os cabelos em cachinhos dourados e os olhos em verde-esmeralda. Usava vestidos cheios dados por seus avós ou tios, e sapatos caros presenteados de suas primas ou das amigas de sua mãe. Seu pai, Roberto o contador, separava já o dinheiro que utilizaria na faculdade e intercâmbios da querida filha, enquanto Natália tentava ensinar o mais cedo possível pintura e inglês a pequenina.

Fora lhe dado um quarto com mobília de primeira, uma penteadeira com um espelho enorme para estimular a vaidade da pequena, uma cama de princesa e um guarda-roupa imenso, nas paredes bonecas russas ou japonesas observavam a pequena dormir enquanto quadros e pinturas da falecida bisavó deixavam sua herança. Pinturas de galãs e príncipes, de parentes falecidos e de coisas abstratas e medonhas como sapos amarelos e um palhaço dominavam a parede secular. Claro, a parede era cor-de-rosa.

Quando o século virou e atingimos 2000, a querida Florence esbanjava os seus cinco anos de idade. Todos os vizinhos com chácaras grandes e carros caros lhe compravam doces ou deixavam seus cavalos levá-la para passear, encantavam-se com o sorriso da menininha e sentiam o espírito cheio toda vez que lhe viam. 

Porém tudo mudou quando seu aniversário foi se aproximando. 

Florence uma noite se levantou e caminhou pelo escuro até o quarto dos pais.

—Mamãe, Papai! -Chamou delicadamente.

—O que foi, Flor?! -Os dois perguntavam, sempre sonolentos.

—Alguém estava me chamando na janela, dizia para ir com ele brincar.

Natália e Roberto cansados demais apenas pediam para que a menina dormisse com eles, e prometiam um amanhã melhor. Mas não foi bem assim.

—Mãe, Pai! -Chamou a menina na noite seguinte, após caminhar pelo corredor escuro até o quarto -Estão me chamando de novo.

—Durma com a gente -Natália estendeu o cobertor e abriu um espaço entre os dois.

—Amanhã vai ficar tudo bem -Roberto falou e pegou no sono.

Mas os chamados continuaram.Florence tentou ignorar e com sua inteligência infantil concluiu que deveria ser um anjo ou uma fada. Mas a voz era muito estranha, era doce e ao mesmo tempo ameaçadora, já ouvira ela em festas e em filmes de terror. Não era um anjo e nem uma fada.

—Mãe, Pai! -Ela começou a chamá-los, nas noites conseguintes, aos prantos pelo corredor -Ele esta lá de novo.

—Ele quem? -Natália perguntava puxando a menina para si, enxugando seus olhinhos verdes.

—O homem da janela -Explicava ela aos prantos.

—Seu quarto é no segundo andar, querida -Seu pai se levantava e passava as mãos pelo seu cabelo -Não tem como alguém te olhar da janela.

—Mas ele esta lá -Insistia ela.

Então os adultos passaram a concordar, eram muito ocupados com estabilidade financeira para se preocuparem com problemas de crianças, mesmo que isto fosse visitas estranhas pela noite. Florence passou a temer o próprio quarto, alegava não estar com sono quando atingia a madrugada e tentava o máximo para não dormir para que assim seus pais não a levasse para sua cama. Todas as noites, sem exceção, recebia a visita. A medida que a menina tentava ignorar a voz, seu visitante passou a tocá-la, puxando com delicadeza pelo braço em direção a janela. 

Florence então corria de olhos fechados para o quarto dos pais, que lhe diziam que não havia visitante algum.

A pequenina percebeu que teria que resolver sozinha. Passou a se esconder assim que seus pais iam dormir, mas o visitante continuava perseguindo-a pelo quarto chamando com sua voz perturbadora seu nome.

—Florence, Florence! -Chamava -Venha comigo para uma grande festa.

Aos poucos o limite da visita fora aumentando, a menininha de cachinhos dourados começara a se esconder nos armários da cozinha ou da sala, mas a figura lhe perseguia. Numa certa noite, talvez quinta, a menina espiou pela fresta do armário em que estava escondida e enxergou a silhueta de seu maldito amigo. Possuía pés enormes e mãos grande e finas demais, parecia ter a feição triste e andava sempre encurvado.

—Florence, Florence! -A voz chamava -Eu adoro brincar de esconde-esconde.

Cansada, a menina desistiu. Na noite seguinte não fugiu ou se escondeu, permaneceu deitada em sua cama e assim que a voz chamou, se sentou. Não abriu os olhos pois ainda tinha medo, mas com maturidade conversou.

Isto durou uma noite inteira.

Na noite seguinte, se sentou e com os olhos ainda fechados, conversou. Conversou na noite de sábado e na de domingo também, e em todas as noites que se passaram.

Natália e Roberto estranharam o fato de olheiras nascerem nos olhos de Florence, mas pensaram que deixaram ela na televisão tempo demais. Em uma noite quente de fevereiro, Natália e Roberto estavam namorando, conversavam em sussurros quando se deram conta que ouviam a voz da filha no quarto distante.

—Sim, eu também gosto de pinhatas -Ela falava com sua distante -Mas não gosto de alguns doces, geralmente de balas verdes.

Natália e Roberto riram. Como era bobinha a filha deles!

Continuaram sua paixão, mas pararam quando ouviram espantados uma voz rebater.

—As balas verdes são as minhas preferidas, que pena!

Os dois adultos congelaram, balançaram a cabeça e esfregaram os olhos. Grudaram o ouvido na parede do quarto para ouvir a filha e  aquela voz.

—Mas acho que nós dois concordamos que as balas amarelas são as melhores -Disse a voz, com um rouco assustador.

Natália se levantou as pressas levando o cobertor consigo, de alguma maneira a porta do quarto estava trancada. A mãe preocupada com a filha puxou com toda força que tinha a maçaneta, mas esta não se abriu.

—Deixe comigo! -Exclamou Roberto que abriu a porta com um chute.

O corredor nunca estivera tão escuro, apenas uma luz saía da fresta da porta do quarto cor-de-rosa. Os dois adultos correram mas logo tropeçaram em uma mesa posicionada no meio do caminho.

Ao ouvir o estrondo, Florence e o visitante olharam para a porta.

—Escute, garotinha! -A visita lhe chamou a atenção -Seus pais estão com ciúmes da festa que irei dar em breve, não foram convidados e estão muito magoados. Mas você pode vir comigo e me ajudar a montar todos os preparativos!

A visita lhe estendeu a mão, Florence excitou ao ouvir os pais baterem desesperados em sua porta. 

—Poderá fazer uma enorme pinhata e escolher as balas. Sem balas verdes, apenas as amarelas! 

Então a menina não deve mais dúvida, estendeu a mão e foi em busca da festa.

Natália e Roberto quebraram a porta, mas o quarto já estava vazio, sem Florence e sem aquela visita. A única coisa que restava como prova de alguma maldita coisa eram pegadas.

Pegadas coloridas que, de alguma forma, subiam pelos quadros e pinturas. Então os pais olharam assustados para a parede: a pintura do palhaço estava vazia.

 


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