Contos de cem anos escrita por Noemi R Almeida


Capítulo 4
O tubarina




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Foi em 1960, o entardecer deixava um dia abafado para trazer as brisas noturnas a rostos avermelhados e corpos bronzeados, o céu vivia de uma aquarela confusa: os horizontes queimavam com um vermelho vivo enquanto os centros onde estrelas surgiam e brilhavam se tingiam de roxo e azul. A Lua que demorava a aparecer, depois das oito, exibiu seu sorriso de gato. Fora dias de intenso calor em Ilha Comprida, peles fracas se escondiam atrás de protetores solares de fator setenta enquanto melaninas mostravam seu orgulho nas praias.

Aquela noite em especial, um sábado do mês de janeiro, era perfeita para se usar canga e se embebedar. Um jovem bad boy de cidade grande havia chamado todos os maiores de quinze para uma festa em sua casa em frente a Praia Deserta, jipes velhos e novos carregados de garotos de tênis caros e garotas de cabelos compridos iam de encontro a tal casa, parando uma hora ou outra para dar carona a amigos ou se informar da direção.

Paulão e Yamashi também sabiam da tal festança caminhavam tranquilamente. Paulão havia pintado seu black power de azul florescente e trazia luvas neon, se orgulhava das cores que usava em festas. Yamashi, o único vindo de família japonesa da cidade, trazia uma mochila inteira de tubarina e bebericava goles enquanto conversava.

—Por que trouxe tanto refrigerante? -Paulão perguntou arrumando o cabelo com um pente garfo.

—Acha que festa de jovenzinho da cidade tem o melhor refrigerante do mundo? Que nada! Preferem as bebidas de álcool fraco.

Quindim, uma menina de cabelo crespo e amarelo e lábios carnudos, caminhava em direção a mesma festa com sua amiga Paloma, uma jovem de cabelos lisos compridos que recusava ficar em segundo lugar. Quindim contava os últimos segundos que teve de briga com sua querida namorada, um arranhão em sua testa lhe lembrava do prato jogado.

—Ela acha que não acredito nela -Quindim prendeu sua jaqueta amarela na cintura -Sempre soube que ela era fascinada por mistérios, mas não sabia que era louca!

—É sobre aqueles sumiços de pessoas nas praias das cidades ao lado? -Paloma perguntou, tentava se lembrar da resposta do exercício da prova.

—Sim, alegou que a polícia estava abafando tudo e que a festa iria atrair o assassino. Eu amo tanto ela, mas esta impossível.

—Talvez ela esteja preocupada com alguém -Paloma ainda pensava  na prova de matemática -Ela deixou que você viesse a festa?

—Não, mas não ouvi o que ela falou depois que jogou um prato na minha direção -Quindim fechou a cara e apertou o passo.

Paloma ajeitou a pesada câmera que trazia em uma bolsa e tirou a foto da amiga que seguia na sua frente, triste e tempestuosa. Esperavam poder tirar todos os números e brigas de namoradas da cabeça com as bebidas.

Conforme iam se aproximando da festa, conseguiam ver os flashes de luz colorida saindo pelas janelas, jipes paravam e se amontoavam pelas calçadas e jovens despreocupados abriam garrafas e se tornavam as dores de cabeça da cidade. Paulão e Yamashi chegaram primeiro e notaram os baldes de gelo com diversas garrafas de nomes estrangeiros, Yamashi disparou a procurar pelo bar sua garrafa preferida e provar que aquela festa renderia alguma coisa.

Paulão procurou por alguém, encostou em um canto e observou todos. Com remorso concluiu que a pessoa que procurava não estaria ali, não naquela festa e talvez nem naquela cidade mais. Paulão temia o pior.

Quindim guiou Paloma até o meio da festa aonde dançaram e dançaram, exibindo com liberdade os atributos de seus corpos. As jovens recusaram diversos copos e bebidas provavelmente adulteradas e decidiram, por segurança própria, irem buscar suas respectivas bebidas.

Yamashi já batia boca com um playboyzinho que julgava o tubarina como o pior refrigerante do mundo e bebida de criança, Paulão tentava arrastar o amigo para longe de encrenca.

—Não podemos nos encrencar -Tentou argumentar -Você esta bêbado, Yama!

O japonês jogou o jovem que lhe irritara atrás do balcão com um empurrão, Paulão tentando evitar o pior  jogou o amigo para trás atingindo duas jovens, uma de cabelo amarelo e outra de cabelo comprido. 

O som estava muito alto e os xingamentos de Quindim foram abafados quando recebeu o corpo do jovem asiático em sua direção, Paloma riu e tirou foto com sua câmera, todos já estavam bêbados. Alguma coisa nas duas garotas chamou a atenção de Paulão, algo no cabelo amarelo ou na câmera de Paloma. Algo dizia que deveria andar naquela noite com aquelas duas jovens.

Yamashi roubou um beijo de Quindim e recebeu um soco de volta. Paloma registrou tudo, o beijo e o soco, registrou a ressaca de gente alheia e as luzes coloridas da festa, registrou Paulão que parecia curtir e deixar sua tristeza de lado naquela noite. A câmera registrou todos os momentos daquela agitada noite.

Paulão, Quindim, Yamashi e Paloma se tornaram grandes amigos naquela noite. Em uma mistura de bebidas coloridas e tubarina, combinaram de pregar trotes em casais que namoravam na Praia Deserta, roubaram cobertores de jipes hipster e se divertiram nas águas escuras da praia. Poucas pessoas notaram que o grupo ia se afastando, estavam perdidos demais naquelas luzes multicoloridas e músicas sem pé nem cabeça.

No dia seguinte, as garrafas de tubarina de Yamashi foram encontradas boiando, soltas por um raso rio, em fila pareciam organizar uma marcha funerária para os jovens que foram encontrados logo depois. Os corpos foram encontrados em diferentes pontos de praias distantes, Paloma tivera o rosto arranhado e a água envolta de Quindim estava amarela por conta de seu cabelo, Yamashi aparentava ter lutado, morreu como um samurai. Já Paulão fora encontrado, enterrado em um terreno abandonado.

A câmera de Paloma era tão inocente como aqueles jovens, continha apenas os últimos momentos bêbados e sóbrios dos amigos. 

Quindim não havia feito as pazes com sua namorada, assim como Paloma nunca soubera o resultado da prova de matemática, Paulão nunca descobriu o paradeiro de sua irmã.

Morreram jovens e sem rumo, com seus próprios conflitos internos. Deixaram seus problemas para trás, perdidos nas luzes coloridas da festa e no gosto açucarado da tubarina.

 

 


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