Contos de cem anos escrita por Noemi R Almeida


Capítulo 2
Mais ninguém, o monstro da mata




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Em algum lugar do que seria São Paulo, o asfalto e o cinza ainda não dominavam tudo e grandes parques, praças e avenidas ainda eram dominados por mato. Não existia faróis pois raramente passava carro nas ruas de terra da Francisquinha, lugar que em alguns anos seria devorado pela metrópole crescente.

As crianças de Francisquinha brincavam serelepes pelas ruas e pelos matos, pulavam por grandes moitas e caçavam preás em suas tocas mal arquitetadas. Quando sentiam sede pulavam no rio que havia ali perto e se refrescavam, empanturravam as barrigas com a água e com laranjas que pegavam escondidos nas árvores de casas ladeira acima. Eram crianças que não frequentavam a escola, eram moleques vadios que frequentariam apenas uma faculdade durante toda a vida: a infância.

Um desses moleques vadios era Fabrício de Apreensão, um menino de nove anos de cabelos rasos e escuros e pernas finas demais para aguentar ventos fortes. Vestia um conjunto de roupa a semana inteira e usava mais pregos que chinelos, mas era um menino feliz e sorridente, e assim como seus amigos, um moleque. 

Sua casa não era um lar de criança, aliás, lar de gente nenhuma. Era uma casa pequena com paredes de barro e teto de tábuas de madeira, três cômodos pouco mobiliados que abrigavam uma geladeira velha, um fogão preto de olhos vermelhos e dois armários e camas nos quartos. O problema não era a precariedade da casa ou a falta de luz, mas sim dos pais. Eram adultos com cabeça de vento, Margarida vivia com um enorme bico no lugar do sorriso e Frederico Joares chegava muito irritado em casa, a casa se tornava então um ringue de briga.

Fabrício nascera com os ouvidos sensíveis e aquela barulheira apenas piora o seu quadro, ficava então até tarde nas ruas de terra caçando preás, voltava apenas quando sentia fome ou quando os mosquitos noturnos encontravam sua pele de criança. Mas um dia, talvez uma quarta sem nuvens no céu, Fabrício voltou mais cedo para casa.

Sua mãe havia feito sua comida preferida: macarrão ao molho de sei-lá-o-que. Ambos colocaram as louças na mesa de madeira e se serviram, Frederico esmurrou a porta e ao notar a comida começou sua lista de reclamação. Aquele macarrão era muito caro, aquela louça era só para dias especiais, e etc.

Margarida se levantou e discursou a favor do macarrão ao molho de sei-lá-o-que, e assim os adultos mostraram suas garras e começou a barulheira. Era uma noite bonita e os ouvidos do menino doíam muito.

Frederico pegou sua melhor roupa e decidiu em sua cabeça acampar perto de uma toca de preá, as casas vizinhas fingiam que não ouviam e nem viam, e assim a fuga de Frederico e os motivos dela foram escondidos. O moleque caminhou e caminhou, sempre batendo no braço espantando os mosquitos. A Lua era sua única amiga naquela noite e um zumbido em seu ouvido permanecia como trilha sonora.

Encontrou a grande toca do preá e hesitou ao entrá-la, mas o que poderia acontecer? Um preá gigante poderia lhe devorar? De peito estufado, Frederico de Apreensão entrou na toca indo cada vez mais fundo e se perdendo no escuro.

De quatro explorava a toca comprida, aos poucos fora achando coisas um pouco esquisitas. Quadros com fotografias penduradas nas paredes de barro, cheiro de chá e uma música estrangeira ecoando lhe chamavam cada vez mais para o fundo. Até que bateu a cabeça em algo macio e rabugento. 

Não tinha lanterna e nem um isqueiro, então tateou com a mão o objeto. Era peludo, tinha um nariz molhado e chifres, um veado! Não, espera, tinha garras e olhos muito grandes, A cuca?! Tinha os dentes muito, mais muito afiados. O Diabo!

A estranha criatura, que estava dormindo, acordou e com um bocejo irritado abriu a enorme boca. 

—Espere, não me coma -Clamou Frederico -Tenho problemas nos ouvidos.

A criatura parou, pensou e riu.

—E por que eu comeria um humano? Ainda mais um filhote humano? 

Frederico sentiu o fedor da boca da criatura e tampou o nariz.

—Ora, não é o Diabo? 

—Ah ah ah! Só porque tenho chifres sou chamado pelos homens de Diabo -A criatura se espreguiçou e tentou se levantar -Ande saia daqui! Tenho que ver o luar.

Do lado de fora Frederico viu o estranho amigo, um ser de dois metros com o pelo branco, ficava de pé como os homens até fazia cambalhotas. Apesar dos dentes afiados tinha um sorriso tranquilizante, suas garras eram decoradas com pedras indianas e seus cifres foram pintados de cores alegres. O monstro se chamava Mais Ninguém, vivia nas tocas de preás gigantes e acompanhava de perto os moleques de Francisquinha.

—Você tem um problema, homenzinho -Disse Mais Ninguém.

—Eu?

—Sim, seus ouvidos estão muito doloridos e seus pais não param de gritar -O monstro chegou mais perto do menino e se ajoelhou -Sua casa não é casa de criança, aliás, de gente nenhuma. Conheço uma casa em uma rua onde poderás morar e nunca mais terá dor de ouvido.

—Mais e meus pais? -Perguntou Frederico olhando para sua casa -Sentirão minha falda, sou filho único.

Mais Ninguém, o monstro, respirou fundo e olhou com compaixão para o menino. Mal sabia Frederico que seu corpo de criança viajava junto com o rio naquela manhã fria, e seus chinelos com pregos foram seus traiçoeiros acompanhantes. Mais Ninguém, o monstro, acompanhou o menino até a sua nova casa em um paraíso eterno.

—Não terás mais dor de ouvido e nem pais gritalhões, a partir de agora terá uma casa de criança, aliás, de qualquer gente -Mais Ninguém ia explicando enquanto caminhavam para a Lua -Terás todas as estrelas do céu e verá todos os seus heróis, será também uma estrela e poderá ver Francisquinha e todos os seus amigos do céu.

Frederico de Apreensão sorriu e brilhou, até hoje está lá.

Francisquinha foi abandonada e virou avenida, sem moleques e sem preás. Margarida morreu de tristeza e Fabrício virou bicicleteiro. Os moleques vadios que lá brincavam serelepes foram esquecidos e seus túmulos não possuem mais as descrições: Moleques cuja única faculdade que frequentaram foi a infância.

Mais Ninguém continuou por aí, levando crianças para a Lua e deixando o céu mais brilhante.

 


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