Oclusiva escrita por S Q, WSU


Capítulo 3
Crawling




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Estrada Interestadual de Corsário - Meio da Madrugada

 

 

No limite de velocidade da principal rodovia do estado da Bahia, um camburão saído da Quarta DP de Corsário seguia rumo ao presídio federal feminino. A remoção da filha do dono da rede de varejo Glam's precisava ser feita o mais rápido possível antes que atraísse jornalistas. Ao menos, fora isso que o advogado de Kátia Souza alegara e pedira, em liminar de urgência. E agora estava certamente sendo atendido.

Dentro do compartimento metálico do carro de força, Isabela balançava com os solavancos da estrada, recostada na parede de metal, as mãos algemadas. O reflexo dos raios que saíam de seus olhos junto às faíscas de seus cabelos, faziam um jogo de luzes na superfície reflexiva que ficava bastante interessante com a iluminação da rua que entravam pelas frestas. Ali, onde não havia mais ninguém, se permitia brincar um pouco com seus poderes para se distrair. Precisava admitir que apesar de perigosos, eram lindos. Enquanto observava com cuidado alguns espectros boreais que se formavam sem nenhuma utilidade aparente, as cenas anteriores à remoção dançavam em sua mente.

Voltara escoltada para a cela. Esbarrou em Guilherme no corredor, solto, com um habeas corpus na mão.

— Vamos ser libertos! Enquanto você conversava com o advogado, eu recebi esse papel falando que o juiz resolveu suspender minha preventiva. Vou voltar para a vida!

— Se eu tivesse alguma, poderia comemorar, mas como acabei de ter certeza de que vou continuar aqui... acho que tanto faz. Mas parabéns, aproveita. Quer dizer, é ridículo você ter tido que ficar por aqui por uma briga de torcida, enquanto quem é rico, é liberado mesmo com crimes muito maiores... Mas em meio ao ridículo da vida é melhor rirmos e sobrevivermos, não é mesmo?!

O torcedor se sentiu mal por Isabela, mais do que com a ironia por sua liberdade. A garota percebeu isso, contudo preferiu só olhar de lado enquanto já era empurrada de volta para sua cela provisória. De qualquer maneira, o rapaz ficou desconfortável para falar qualquer outra coisa, o que para a garota era um alívio tremendo.

Depois de um tempo incerto deitada no chão, virada para a parede, ela acabou adormecendo. Só foi acordar perto da madrugada com um oficial diferente do dia anterior batendo na grade da cela.

— Ô, Bela Adormecida! Vem aqui que vão começar as suas "voltinhas" penitenciárias!

Bocejando e resmungando, nossa heroína seguiu o guarda. Percebeu enquanto se levantava, que na cela do lado masculino da precária delegacia de Corsário, onde Guilherme tinha ficado, já haviam chegado um novo detento, dessa vez, um homem de provavelmente 40 anos. Agradeceu mentalmente enquanto caminhava para fora, o fato de não ter tido problemas maiores com aquela condição absurda de homens e mulheres presos na mesma DP.

Ninguém explicou o que estava acontecendo a ela, apenas colocaram as algemas e mandaram, ou melhor, berraram para que entrasse no camburão, com as sirenes já ligadas. Se não fosse seu super-raciocínio provavelmente teria ficado perdida, sem saber o que estava acontecendo; contudo, ela seguiu de cara fechada, compreendendo perfeitamente que após a conversa tida com o advogado, a remoção para um presídio definitivo sairia rápido, ainda mais por ser de interesse de Romário Souza.

Agora, sozinha no compartimento blindado, se permitia sentir um pouco a dor pela negligência paterna. Desde a infância, não podia realmente expor seus sentimentos sem provocar uma tragédia. Ali, ironicamente, era o lugar que lhe restava para manter sua humanidade sem machucar ninguém. Em meio a minutos de gritos de raiva e choros soluçados ela fez uma promessa:

— Mutagenic, Mutagenic... tirou toda minha dignidade humana, arruinou minha vida e agora quer pagar de boazinha. Tá certo que o MÍNIMO era fazer alguma coisa para tentar "compensar" minha desgraça mas eu . não. preciso. da. CARIDADE. DE. QUEM. ME. DETESTA!! — A eletricidade que soltou pelos olhos cegos de raiva foi tão forte que o motor da viatura falhou. Entretanto ela não se conteve e deu um murro com toda sua ira, queimando a carcaça blindada do caminhão. — VOCÊS ME PAGAAAM!!

E desandou a chorar mais forte que nunca.

 

 

 

Corsário - 03:00 da manhã - Beco da delegacia

 

 Pedro Mello acabava de chegar de novo ao lugar onde lhe mandaram fazer um ritual. Ainda olhava para os lados nervoso, mas a lembrança do poder que sentira na última vez que estivera ali, faziam-no correr para conseguir entrar em contato com as habilidades concedidas, mais uma vez.

Era um processo doloroso e seus grunhidos de dor precisaram mais uma vez ser abafados, enfiando o rosto nas sacolas de lixo que lá haviam. Estava no momento tenso em que a alma se deslocava do corpo para receber as influências exteriores quando passou um bêbado por ali.

— Ô, amigo, dá licença p-para eu vomitar! A lixeira é-é púbica, vivemos numa demo-cacilda!!

Com os olhos cheio de ódio, Pedro sibilou solenemente:

— Quem ousa me interromper?

E eis que os olhos dos dois se cruzaram. O bebum era um dos agiotas para quem Mello devia dinheiro.

 

Manhã seguinte - Residência de Josefina

 

"Foi encontrado ao lado da Terceira delegacia policial de Corsário o corpo do agiota Francisco Medeiros, mais conhecido como Xicão. As causas da morte ainda estão sendo investigadas, e a única pista deixada foi o lixo espalhado pelo chão no local do acidente. Não há machucados ou queimaduras no corpo. A polícia investiga o caso, porém o delegado responsável pela trigésima DP sofreu uma notificação a respeito de nenhum funcionário ter notado qualquer atividade suspeita no local. A delegacia ainda sofre acusações..."

Josefina ouvia o noticiário com o coração na mão. Sabia que a filha poderia estar ainda ali na hora em que aconteceu a confusão. Daria tudo para conseguir visitá-la no presídio, mas quando os advogados, doutores da lei, tanto da Mutagenic, quanto da Glam's entraram em contato com a dona de casa aconselharam a não fazer isso por causa da posição irredutível de Isabela quanto a assumir a culpa. Havia uma certa falta de profissionalismo no meio, mas Josefina não sabia disso e portanto não tinha como questionar. Do contrário, se preocupava com a saúde mental da filha  já que quem mais se dispôs a ajudá-la, João, chegou a comunicar a dona de casa que talvez só um laudo médico de loucura fizesse o juiz se compadecer para tirar a moça daquela situação. Por isso, se agarrava ainda mais às suas contas do rosário e chorava. Porém, nesse choro havia também culpa. Ela sabia que havia ajudado a tornar os últimos anos de liberdade da menina insuportáveis, dando ouvidos ao marido. Após terminar seu terço, ainda injuriada, tomou talvez a maior dose de coragem da sua vida, pegou seu caderninho antigo de notas e ligou para o telefone oferecido por um agente da Mutagenic anos atrás.

— Alô? Preciso entrar em contato com a coordenação geral, se puder ser diretamente com o Ling, agradeço. Diga que aqui é Josefina da Silva e que o assunto é urgente.

 

 

 

Presídio Feminino de Guararé 

 

Os policiais não sabiam se encaravam uns aos outros, ou se ficavam assustados com o estado do Camburão. Era IMPOSSÍVEL que uma pessoal normal desarmada, queimasse, furasse e amassasse a carcaça traseira do automóvel penitenciário daquela forma. Um mais corajoso, foi tentar abrir a porta. Mal ele encostou, ela caiu, destroçada no chão. Isabela estava lá dentro, e fora o modo mortal com que olhava para frente, parecia inteiramente intacta em meio ao interior chamuscado do carro. Aquilo, com certeza, assustou mais os quarentões de farda. Houve um silêncio regado de incerteza:  ajudavam a garota ou fugiam dela? Até que ela, sem deixar de encarar o que sobrava da lateral do compartimento onde fora transportada, mandou:

     — Vão me acompanhar até minha cela ou está difícil?

E se levantou caminhando na direção deles sem dizer mais nada. Eles foram ao seu lado, mas os mesmos valentões que lhe empurraram como um saco de batatas para fora da delegacia, agora não se atreviam nem a tentar pôr as algemas nela. Apenas foram acompanhando e indicando a direção de uma das celas presidiárias para quem não tinha ensino superior.

Isabela entrou sem dizer nada; olhando para baixo estava, olhando para baixo continuou. Se sentou no canto mais vazio do espaço cercado, com as pernas cruzadas, e ficou aguardando o tempo passar. As outras condenadas ficaram cochichando entre si, zoando a maneira da garota, mas logo voltaram a atenção umas para as outras, já que acompanhar um dia de Isabela, ainda mais naquele estado mental, extremamente frustrada e obstinada a continuar no limbo, era algo irritantemente monótono. Que ela ficasse com as obscuridades dela e não se metesse com ninguém do bando, foi o que disseram a princípio. Ou melhor, ameaçaram em alto e bom som, mas como se não fosse com ela.

Por volta de 3 da tarde era a hora do banho de Sol. Sem dirigir um olhar a ninguém, ela simplesmente se levantava e ia para outro canto, o do pátio agora. Apesar de toda a dor interna pelo o que sua vida tinha se tornado, estava contente por não ter machucado ninguém lá dentro.

E eis que surge uma voz estranhamente conhecida:

      — Ah, aquela ali é melhor deixar de lado mesmo, oclusiva demais.

Com uma sobrancelha arqueada, Isabela levantou a cabeça procurando a voz que dissera isso. Começou a gargalhar na mesma hora. A filha do renomado traficante, que tinha certeza que seria liberta havia parado lá também. Isabela sabia que Oirichiro tinha escutado o ataque que teve quando chegou na delegacia, então apenas se concentrou em fazer os olhos brilharem encarando os cabelos da patricinha. Oirichiro começou a sentir um calor na cabeça na mesma hora, então assustada, mudou de assunto e saiu correndo para o outro lado.

   Até que ser um monstro pode servir de alguma coisa.— Pensou consigo, tentando segurar o riso, sem sucesso.

Os próximos dias seguiram esse padrão, se isolar, ouvir provocações, ameaçar com os olhos. A prática que pegou de usar o olhar inclusive lhe ajudou a não soltar os poderes sem querer: eles  eram liberados de alguma forma e sossegavam dentro dela. Tinha antes alguma ideia de que isso pudesse funcionar, mas sempre se sentira insegura demais para usá-los, mesmo que só um pouco. Não era mais tanto o caso. Já não havia muito o que perder se lhe achassem louca, ou machucasse alguém ali.

Estava em um dia igual aos outros, caminhando para o refeitório e pensando que em breve ficava louca igual ao lutador famoso, Marcos Fonseca, quando as dores começaram novamente. Cãimbras se espalharam pelo corpo todo. Aquele mesmo enjoo forte e diferente de tudo; não demorou a cair no chão, se contorcendo e suando, com todo mundo lhe olhando. Mas antes que perdesse o controle, um estrondo arrebentou as paredes do presídio. A gritaria ensurdecedora e a correria só serviram para afetar mais ainda o estado de Isabela, ao mesmo tempo, ela via seres terríveis se aproximando. As piores formas de seus pesadelos materializadas. Porém, ela estava ainda ali, caída no chão, soltando raios como quem solta espasmos. Em meio a todo atordoamento fez um esforço para tentar enxergar alguma coisa: percebeu que tudo ao seu redor começava a fogo. E ouviu o pior som: os gritos de pessoas queimando. Mesmo contra toda a gravidade que parecia grudar seu corpo ao solo naquele momento, ela se esforçou para se levantar e fazer alguma coisa, QUALQUER COISA, aquele som só precisava parar; apenas piorava sua sensação.  Mas antes que conseguisse, alguém lhe deu um pisão nas costas.

— Ora, ora, veja só quem encontramos aqui! A ex-menina prodígio! Há! Pensei que eu ia precisar bolar um plano para me vingar de você também, mas pelo visto… Pode continuar se debatendo como uma barata virada, depois eu cuido de você.

O homem virou a cara seguiu o olhar desfigurado em direção ao interior do presídio, com um manto preto fantasmagórico protegendo-o do incêndio que atiçava com as mãos. Isabela ficou ainda mais assombrada porque soube na hora de quem se tratava: Pedro Mello, o pivete da sua última e fatídica escola. O cara que lhe deu poderes.

— Mas que... que ele tá fazendo aqui?! 

Isabela percebeu que aquele homem estava em busca de matar duas mulheres ali de dentro, pois estavam perto demais; conseguia acessar o ódio, o sentimento de vingança, as ideias intensas de destruir tudo e provar sua superioridade, que fazia as vísceras da garota revirarem. Claro, essa era a causa, tão torta que até mesmo ela demorou segundos para descobrir. Demônios, fogo, desespero, dor, enjoo, tudo isso absorvido ao mesmo tempo, a moça sentia como se fosse morrer a qualquer momento. E ouviu o grito agonizante: Pedro acabara de enforcar alguém. Conjurava seres assombrosos para demolirem tudo aquilo ali. Ria sadicamente, enquanto brincava com seus asseclas, como se comandasse uma orquestra.

Mello não queria saber de outra coisa. Nunca sentira tanto poder na vida. E quanto mais dor causava mais seu poder aumentava. Isabela não parou um segundo sequer de tortuosamente compreender cada detalhe macabro enquanto já sentia sua pele como se estivesse sangrando. E foi então que aconteceu: a mente superaqueceu, enquanto o corpo acelerou na velocidade da luz, e seus olhos soltaram uma bomba de raios. A orquestra sinistra do vilão, que já seguia a Marcha Fúnebre, congelou na mesma hora.  Só se ouviu o berro agonizante de Isabela.

Ela tinha noção do que havia acontecido, sempre tinha. Mas estava assustada demais para olhar. Contudo, conforme as cenas de terror foram deixando sua mente, se permitiu observar um pouco o que tinha abaixo de si. Estava invisível.


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Notas finais do capítulo

Marcos Fonseca "o famoso lutador louco", é protagonista de O Temerário, história também do WSU.



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