Oclusiva escrita por S Q, WSU


Capítulo 11
Don't Stop Believing


Notas iniciais do capítulo

Galera, chegou o momento. A luta mais aguardada, e com ela, o final da fic. Vou tentar não me alongar muito, até porque o capítulo já ficou bem grande, mas preciso dizer que esse capítulo em especial foi uma das melhores coisas que já escrevi, na minha perspectiva de autora. Espero que curtam tanto quanto eu.
Aproveitem, leiam no tempo que quiserem. Espero de verdade que gostem!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/768081/chapter/11

— Lamento informar, mas a teoria da evolução não tem haver com força. Ela é sobre adaptação. De nada adianta ser imensuravelmente forte se não souber controlar o dom que tem.

Isabela erguia-se devagar ao falar isso. O reflexo da garotinha de 9 anos assustada dava lugar à poderosa Oclusiva. Pedro percorria seu redor como um predador prestes a devorar a presa prestes à fugir:

— Verdade. Deve saber por experiência própria, não? E de nada por ter te dado toda essa inteligência.

Nisso, ele abriu a capa que vestia e emergiu a mente da moça em outra lembrança real que aparecia em seus pesadelos: o dia em que se trancou no banheiro feminino, chorando porque seria afastada do colégio após quase colocar fogo nas provas de sua classe, por passar próxima aos papéis. Ela tinha se apoiado desolada na pia, e para aumentar seu desespero, um raio saído de seus olhos lacrimejantes rachou não só a bancada com as torneiras para uso dos alunos como a parede quase inteira, que veio para cima de si.

Reviver aquela memória ali, desestabilizou-a como de todas as outras vezes em que acordava à noite aterrorizada com a lembrança. Começou a ficar difícil se manter de pé. Mello se aproveitou de sua fragilidade, aplicando-lhe cãimbras. Ele aprofundou mais a cena da memória no assombroso ambiente de pesadelos que podia acessar. Foi seu erro. Ela sentiu o que mais lhe aterrorizava de verdade: ser privada da sua inteligência, de quem era, do que mais gostava por ser fraca demais para se controlar. Não mais.

O que era para ter sido seu grito de entrega, agonizante após uma madrugada inteira de luta, foi ainda mais forte que a explosão provocada na prisão. As estruturas do limbo onde estavam se abalaram. Aquele era um lugar de enfraquecimento, não de força. Nem Mello entendeu o que tinha dado errado. Não podia ser derrotado ali. Podia?

Isabela avançou tal qual um deus-ex-machina para cima de Pedro explodindo todo seu poder. Foi como a energia liberada por um buraco negro: a força inversa à dela, prestes a aniquilá-la, acabou despertando algo muito maior. Ele gritou de dor e desabou igual uma barata no chão com a descarga de elétrica que levou. Observou a pele. Tinha se queimado. Tudo começou a arder para ele. Tentou rebater com uma rajada negra de energia negativa; mas não houve mais efeito algum sobre a figura.  Ainda assim, não cansava de provocar:

—  Quem quer se vingar aqui sou eu! Para de ficar atrás de mim o tempo todo! 

— Ir atrás de você?! Eu não tenho culpa se você era burro ou azarado o suficiente para fazer seus pactos com as trevas e invocar poderes perto de onde eu estava! Nunca quis isso! — Outra bomba, e ele caiu rolando. Estava ficando difícil para Pedro respirar. Começou a vislumbrar a dimensão infernal de onde seus poderes vinham. Havia um ser armado de um tridente extremamente irritado. As estruturas internas de Mello balançaram. Só tinha uma chance.

— Que se dane esse “abra-cadabra”! Vamos ver se sabe lutar de verdade, vagabunda!

Pedro jogou toda sua força se tacando de mãos abertas contra o corpo de Isabela. O ódio lhe dominava. Não importava se suas queimaduras de choque aumentariam ainda mais com isso. Sabia que algo pior lhe aguardava se perdesse. E não estava ganhando até então. Era a hora de usar todas as cartas que ainda tinha na manga. Mesmo tremendo e quase revirando os olhos, ele balbuciou:

— E assim, depois de deixar que várias pessoas morressem, está prestes a cometer seu assassinato! Quem é o herói e quem é o vilão aqui, Isabela?

A moça tentou revidar com arranhões e choques, mas mesmo lascando a pele do outro, agora não conseguia muita coisa. Os polos se invertiam. Sua força de vontade começou a falhar. Pedro percebeu e numa última tentativa desesperada para revidar, apertou as mãos contra o pescoço dela, impedindo a passagem de ar. A pele pouco visível ele furou com as unhas, causando sangramentos na região.

O lugar onde estavam era um limiar, um tecido interdimensional entre a realidade e onde habitavam os pesadelos. Pedro conseguiu acessar usando o último recurso macabro que lhe restava. Aquilo também era conhecido como horizonte de eventos. Ali, qualquer vacilo de ambas as partes virava um turbilhão contra o que estivesse mais vulnerável. A presunção do moreno que lhe fez não perceber que isso poderia se virar contra ele. Mas não importava mais.

Isabela não tinha resposta para a pergunta feita por seu adversário e nem conseguia pensar em mais nada. De qualquer forma, mesmo alguém alterado radioativamente teria dificuldades em raciocinar bem com pouco sangue chegando ao cérebro. Ele reclamou:

— Que foi, não consegue mais pensar?! Eu achava que você era digna de um bom estudo e eu não. Mas pelo o que eu tô vendo — deu-lhe joelhadas violentas no tórax — No fim, ao menos eu mantenho minha inteligência! — Ele mesmo começou a lacrimejar enquanto falava — Ainda saio das cinzas para me levantar contra quem quer me derrubar! — Focado no que parecia ser o ponto fraco de Isabela, chegava a torcer os nervos base do pescoço dela de tanta força com que apertava sua garganta, mesmo com as mãos sujas de sangue.

Ela lutou o máximo possível para se manter de pé, mas seus sentidos foram vacilando aos poucos: se sentiu primeiro numa nuvem, depois flashes e formigamentos tomaram conta de si. O corpo não parou de se debater, assim como as rachaduras no tecido do limbo cresciam ainda vertiginosamente. Os antigos choques foram ficando mais mansos até a forma Oclusiva de Isabela falhar, como uma TV mal sintonizada, conforme ela perdia as forças. Os negros olhos da garota, sem expressão, encararam arregalados os de Pedro. Aquilo lhe fez vacilar.

 Por um instante seus dedos se afrouxaram no pescoço da garota, o suficiente para que ela desabasse com o peso, e voltasse a respirar. Nisso, ele começou a sentir algo sugar por dentro. Observou o corpo, agora total e fracamente humano. Via-se ali apenas uma moça de 20 anos mais destruída do que ele mesmo se sentia. Se apertasse mais um segundo podia ter tirado a vida dela. O que foi que eu fiz?

  As entranhas de Pedro começaram a se colidir tal qual fazia com suas vítimas. No início... - Imagens da infância de Pedro começaram a passar ao redor dele mesmo. O limiar não atacava apenas Isabela e Pedro não previu isso - Eu só queria...parar de sofrer. O homem começou a ver no espelho a sua figura adolescente, suja, largada, mas não no estado que deixara o corpo da menina. Ela estava derrotada. Por sua vez, ele lembrou-se de ter dito que tinha força para se reerguer.

Labaredas de fogo começaram a brotar sob seus pés, lhe puxando para baixo. Não conseguia mais subir. Por enquanto. Encarou mais arrasado ainda os olhos negros, que voltavam a piscar, fracamente.

Quem era o herói?

Isabela assistiu o sucumbir do outro sem tentar ajudar.

Quem era o vilão?

Pedro foi completamente engolfado pelo incêndio. Só restou Isabela, caída. O limbo se estilhaçou completamente, como vidro quebrado.





Vala Subterrânea - Momentos Depois

 

— Seu imbecil!

Pequenos seres, antes subjugados, até as criaturas mais poderosas das profundezas se reuniam ao redor do que seria um corpo humano.

— É nisso que dá desrespeitar as regras do contrato. — O que tinha se pronunciado olhou de soslaio para colega ao lado — E fazer um com muito mais poder do que deveria ter sem consultar Mefisto.

— Mimimi… arranjei uma alma no melhor estado para a gente se divertir. Ele nunca ia conseguir. Pode vir a frente doida que quiser, as criaturas mortais são FRACAS! Sempre tropeçam quando vão lidar com poder. Seria nosso churrasco mais cedo ou mais tarde.

— Foi um bela duma cagada, isso sim! Todos nós sabemos que eles têm aliados que não são tão tolerantes assim com nossas brincadeiras… Sejamos realistas, o universo nunca está do nosso lado. Até o Mefisto se enrola com os casos.

Um mais forte entre eles não queria mais ouvir aquela conversa:

— Chega de fricotagem! Vamos nos divertir com o que temos agora.

Assim, seguidos tridentes começaram a espetar todas as partes imagináveis do que restava do ex-pactuante. Ele resmungou com o que restava de sua voz:

 

— Eu vou me reerguer.

 

 

São Paulo - Manhã Seguinte

Não se falava de outra coisa que não fosse o caso da destruição do prédio da Mutagenic. Os jornais destacavam o baixo número de mortos ante o que teria sido uma batalha interestadual de horas. Milhares de vídeos circulavam pela internet. Além do novo meme “maluco do vídeo” e dos já conhecidos vigilantes, Oclusiva foi o nome mais procurado na internet brasileira naquele dia que se seguiu. Além de sua aparência peculiar, havia sido ela quem ajudara os cidadãos de São Paulo a saírem do caminho sem se ferir e até alguns policiais a capturarem enfermeiros criminosos.

Porém, o mais impressionante foi a tempestade de raios simultâneos que cobriram São Paulo nos minutos finais do episódio. Simultâneamente ao seu término tudo que estava afetado por alguma coisa conjurada por Pedro Mello se recuperou de repente. A mesma figura que causara pavor alguns dias atrás, de cima de um prédio, era considerada agora a heroína do dia. Repórteres procuraram a agente Trap sobre o caso, mas ela só pronunciou:

— Com todo o respeito, tive uma noite horrível! Preciso beber.

Já o jovem Jonas disse:

— Mal aí, mas por enquanto o assunto fica só entre pessoas importantes. Quando for seguro, eu juro que conto. Só que agora… também não foi dos meus melhores dias, sabem?

Nas redes sociais, entre fandoms que já eram criados, posts em agradecimento e muitas curtidas nos vídeos em que aparecia, pairava a pergunta: quem era e onde estava a mulher que se intitulou numa gravação como Oclusiva?

 

 

 

Corsário - Hospital Casa Dr. Maia - 15:00

 

Dor. Era só isso que sentia. Abriu os olhos devagar. Demorou um pouco até perceber que estava em um hospital, aparentemente mais caro que qualquer outro onde já esteve na vida. Esse tinha ar split, um quarto privado, televisão, almofadas fofas, maca reclinável, porta-copo e eletrodos de última geração.

Estava viva. Ele lhe deixou viver.

Passara por muitas coisas estranhas e pesadas no último mês, mas aquela, ao certo, ganhava de todas. Ninguém era o mesmo após quase morrer e ver quem pretendia lhe assassinar ir embora no seu lugar.

Aliás, falando em tantas coisas, parecia que agora sentia o peso de tudo que fez de uma vez. Não tinha forças nem para observar melhor o quarto. Ao menos, não parecia ser um laboratório maníaco. Em sua mente rodopiavam imagens das últimas semanas, com uma pergunta não respondida ao fundo: Afinal, porque se importava tanto com as pessoa se nunca quis ser uma heroína? Tudo girava em seu cérebro.

Depois de algum tempo, a porta do quarto se abriu devagar. Um adolescente alguns anos mais novo, entrou hesitante.

— Er... Olá! Vim ver se já estava acordada e… que bom que está!

Isabela continuou o encarando sem muita reação. Notava seus olhos cansados e o rosto um pouco inchado. Ele limpou a garganta de novo:

— Acho que já nos conhecemos, mas não fomos devidamente apresentados. — ajeitou o cabelo e ergueu a mão arranhada na direção da dela, espetada por um soro. — Me chamo Jonas. Sou o herói bonitão que lutou com você ontem. — disse com uma piscadinha breve. Ela revirou os olhos. Respondeu devagar, com a voz rouca:

— Isabela. Foram vocês da Frente Unida que arranjaram esse hospital, certo?

Jonas sorriu com a esperteza da menina, mesmo tendo acabado de acordar de um longo desmaio:

— Sim, fomos. A Carol... a agente Trap, já deve ter ouvido falar dela! Então, depois de um certo… tempinho… ela conseguiu entrar em contato com o Temerário, que é tipo o líder da nossa equipe. Basicamente depois que tudo já tinha terminado e... bem, eles se xingaram bastante pelo telefone, maaas o que importa é que ele tinha uns “contatos” aqui dentro e assim que te achamos inconsciente, conseguiu arranjar uma vaga de graça para você.

Isabela conhecia o mundo dos negócios de perto por causa do pai, e sabia que uma estadia de graça num hospital daqueles não era para qualquer um.

— Tá, quantas pessoas ele teve que ameaçar?

— Só o dire... Ah, relaxa! Isso não é o mais importante agora. Vim falar contigo porque como a Carol trabalha na polícia, ela já tinha notado há um tempinho suas habilidades especiais. Ela não quer te prender de novo nem nada, está se disponibilizando para ajudar, na verdade e até movendo uns pauzinhos lá para que você e sua mãe sejam inocentadas.

Agora sim o adolescente tinha capturado a atenção da acamada. Contudo, ele tinha que passar logo um recado antes de poder finalmente se jogar em seu próprio e confortável sofá...

— Nossa maior preocupação é a seguinte: além de você, e dos outros jovens que vimos ontem na MutaGenic, quantos outros poderosos existem e estão perdidos por aí, sendo caçados ou escondidos por suas habilidades? Queremos ajudar nossos semelhantes, sabe? A Trap poderia te explicar melhor a ideia, mas ela recebeu uma ligação muito preocupada da esposa; eu sou bom em lidar com garotas… enfim, é isso, queria dizer que a partir de hoje, quando precisar de apoio pode ter o nosso. E se algum dia se interessar em entrar na Frente Unida… — pegou um papelzinho entregando-o a ela. — Esse é o celular do Marcos, administrador do grupo no whatsapp. Somos todos um pouco birutas, mas garanto que será bem-vinda. — deu, por fim um suspiro resignado, pensando alto. —  Bolas, o Tales era bem melhor com esse negócio de “recrutar”.

Ela ficou encarando o cartãozinho sobre o lençol do hospital. As últimas palavras de Pedro Mello ainda ecoavam em sua mente. A sensação de tentar salvar alguém também.

— Eu vou pensar. Posso ter um tempinho?

— A moça com o pensamento mais veloz do mundo realmente precisa? Tudo bem, pense o quanto quiser!

Ela deu um sorriso fraco, olhando o céu de Corsário pela janela.

— Tem alguém aí fora?

— Um tal de Verme Correia. — Jonas comentou, sem dar muita importância. Isabela girou os olhos, corrigindo sem paciência:

— Guilherme.

— Ah, sim. Engraçado, eu acho que já ouvi esse nome… — Pôs a mão no queixo pensativo. — Se bem que posso estar Guilherme Meneses, ou Briggs... Talvez Dias, sei lá, tem tantos no Brasil — Deu de ombros. — Tanto faz, nenhum é protagonista da história. — Pausa — Acredito que depois dessa é melhor eu sair, pro verme entrar, né? Sabe, também tenho uns amigos que devem estar muito preocupados. Espero te encontrar de novo.

Isabela teve de concordar de leve com a cabeça. Jonas podia ser meio irritante, mas bem ou mal estava tentando ajudá-la. Enquanto saía e vinha um enfermeiro da casa, ela decidiu que não iria mais deixar que a vida ao seu redor passasse em vão. Deram-lhe a chance de recomeçar. Ela iria agarrar isso com unhas e dentes.

 

 

 

Periferia de Corsário - Uma Semana Depois

 

Josefina olhava orgulhosa alguns relatos que ainda passavam na televisão sobre a Oclusiva. Se sentia preocupada, mas orgulhosa. O que intrigava agora os jornalistas era se de fato a figura era real ou não. A nova heroína nacional sumira da mesma maneira que aparecera. Mas dona Josefina sabia o quão humana ela era. Já tinha visto a forma algumas poucas vezes quando a filha tinha algum pico de descontrole. Sua guerreira.

Arrumava a casa humilde com todo o seu esforço. Havia acabado de receber um telefonema avisando da alta de Isabela. Aguardava um dos motoristas do marido trazê-la para casa.

É o mínimo. Traste! Pensou consigo.

Ela visitou a filha ao longo da semana, mas só conseguia vê-la rápido, fora do horário de visitas. É que conseguira emprego por indiciação como faxineira na principal academia de MMA da cidade e na residência de Mateus, um policial amigo de Carol. Mesmo assim, durante as vezes em que se viram, ainda que ambas estivessem exaustas, nos poucos toques e palavras havia uma mistura de alívio, saudade, culpa, orgulho, carinho, atenção e mais tantas outros sentimentos que só uma palavra poderia resumir: amor.

E hoje seria diferente. Finalmente poderia ter a filha nos braços de novo, como deveria ser.

 Seu coração deu um pulo quando a campainha tocou. Ela abriu a porta quase tremendo de ansiedade. Duas voltas na fechadura e lá estava aquele rostinho fino conhecido há 20 anos. Os olhos grandes únicos, o sorriso tímido e a postura que sempre mandava ajeitar.  Céus, como conseguira passar um mês tão longe daquela pessoa?

Apertou-a com tudo contra si.

— Me desculpa, me desculpa, me desculpa.  — dizia entre beijos repetidos em sua testa. Como podia ter aceito a ideia de segurar a menina quando mais nova, no kitnet por tanto tempo? Conhecia cada jeitinho dela, até o que achava estranho, como Isabela preferir ser beijada nos cabelos do que na bochecha. Devia ter mostrado mais a ela o quão especial era. Que independente de qualquer incidente, sempre seria seu maior orgulho.

Antes de afrouxar o abraço, olhou- a afetuosamente, tirando um fiapo de cabelo caído do rosto. Dificilmente admiraria alguma coisa mais que a visão que tinha agora: a criança que tinha criado, depois de sair para lhe salvar finalmente voltava para seus braços.

— Minha heroína! Minha menina...

Isabela arregalou os olhos com as palavras. Aumentou um pouco o sorriso e retribuiu emocionada o abraço antes de entrar. Foi estranho voltar ao ponto de partida depois de tantas coisas. E de qualquer forma, foi como se nada tivesse mudado. Sua mãe estava ali bem, intacta, a única que ficou do seu lado apesar de tudo, por anos. Naquele momento a jovem anotou na memória que por mais bizarra que a vida possa ficar sempre existe algo que faz valer a pena erguer a cabeça e continuar em meio ao caos. Muitas vezes algo simples como o sorriso orgulhoso de uma dona de casa.

Elas ficaram sem saber exatamente o que fazer depois que a porta se fechou. Eram muitos sentimentos ao mesmo tempo. Riram, tentaram se ajudar, falaram atrapalhadamente que sentiram a falta uma da outra. Aquilo valia mais que mil palavras prontas de uma declaração de amor bem - elaborada. Foi uma tarde bastante agradável, Isabela precisava disso para recarregar suas baterias.

Até que a campainha tocou mais uma vez.

— Ué, tá aguardando alguém mãe?

— Não… pode abrir se quiser.

Relutantemente, Isabela pegou a chave e girou o trinco. Normalmente quando alguma visita aparecia ela ia automaticamente para o quarto para não assustar ou queimar ninguém. Aquele gesto exigia talvez mais coragem do que perseguir e lutar com monstros. Suspirou e girou a chave.

Agora sim precisaria ter estômago: era Romário.

— O que você quer?  — perguntou, procurando voluntariamente ficar na defensiva.

— É uma visita rápida. Só gostaria de conversar com você, Isabela. Posso entrar?

A mãe saiu correndo para dentro. A cena de submissão deu uma raiva súbita na jovem.

— Entra e diz.  — falou secamente.

— É, entendo que eu não mereça mais atenção do que isso. Primeiramente, saiba que estou feliz com a sua recuperação e o habeas - corpus. Em segundo lugar, temos assuntos a tratar.

Isabela se enfezou:

— Olha, eu não acei…

— Desculpa. — Ele lhe interrompeu para mandar de uma vez — Desculpa, eu deveria ter sido um pai melhor. Eu sei que te fiz sofrer, não nego. Mas foi por um bem maior. Filha, possuo um segredo que descobri um pouco antes de você nascer. Com um médico obscuro em que fui por pura curiosidade. Eu… tenho gene corrompido.  — sussurrou. — Depois que seus poderes se manifestaram anos atrás achei que fosse melhor te manter escondida. Eu tive a sorte de nunca ter desenvolvido minhas habilidades, mas sei que só o fato de carregar esse gene já faz de mim um alvo.  — Olhou paranoicamente ao redor — Por favor, prometa que isso vai ficar entre nós. E por mais que estejam te aclamando agora… você já deve ter entendido o ódio irracional que nós humanos temos por quem é diferente. Proteja sua identidade. O máximo que puder.

Ela olhou um pouco para cima. Achou que o mais difícil tinha passado, mas parecia que estava só começando, ela já percebera isso. Mas não seriam meia dúzia de palavras bonitas que iriam consertar um estrago de anos. Se recompôs e lhe encarou como um cão raivoso:

      — Como eu disse a outra pessoa, é só me deixar quieta que eu fico quieta.

O olhar de Isabela era perturbador. Até mesmo para o grande administrador Romário:

— Eu sei que isso não muda o quanto eu errei contigo, eu sei. — Pelo tom de voz, ele estava se desculpando e chamando ela de falha, ao mesmo tempo. Mas foi voltando ao modo autoritário de normalmente  — Tenho minha consciência limpa que cumpri o papel de alertar;ao menos agora.

— É...  — Ela disse com um tom de voz menos defensivo — somos todos um pouco certos e um pouco errados, afinal.

 

 

 

Quarto Cartório de São Paulo - Meio de Abril

 

— Só falta assinar aqui e… pronto! Porque essa cara? Deveria me agradecer. Metade do laboratório ainda ficará sob seu comando, Ling. Nenhum outro comerciante aceitaria esse acordo depois do escândalo que tivemos aqui.

— Então, eu fico com a Muta e você com a Genic. — O asiático disse sério, lendo os termos.  — Só pode ser piada!

João, o advogado de Ling, suspirou:

— É a melhor alternativa que temos. A patente com os nomes já está criada e registrada, não seria preciso recomeçar do zero. Sem falar que assim dá uma cara de “nova gestão” para ambos os lados. Nenhum leigo vai saber quem era o administrador antigo.

Isso não era nem de longe o que o cientista planejava quando assumiu a empresa. Contudo, naquele momento, a venda seria a opção mais perto de conseguir uma reaproximação com a filha. Não conseguira nem tirar a limpo a história de atiradora desde o ataque no laboratório, pois ela simplesmente parou de atender o celular e não apareceu mais em casa. Suspirou e aceitou os termos.

Romário assistiu a transação do fundo da sala. Fora obrigado por Pierre Calbuch a virar patrocinador de um suposto projeto de fachada para abrigo e apoio aos adolescentes modificados. Resumindo, ele dava uma porcentagem grande de seus lucros ao que continuava sendo a MutaGenic, agora sob o comando de Calbuch, em troca de não somente proteção no mercado financeiro, como também a continuidade dos estudos no seu corpo para seus poderes não se manifestarem. Kátia reclamou à beça pela perda de dinheiro, mas ainda era melhor do que ser taxado como “corrompido”.

— É, Ling… o poder pode mexer com a cabeça até de um cientista íntegro e sonhador. Mas não se preocupe. Já trabalhei até com a Column. Sua empresa não poderia estar em melhores mãos. Você ainda tem poder sobre algumas unidades. As mais estragadas.  — E terminou dando uma risada sarcástica.

 

 

 

CISC - Centro Integrado Superior de Corsário - Aquela Tarde

 

 Os alunos do primeiro período de Engenharia Elétrica acabavam de sair de mais um dia exaustivo de aulas. Vários jovens de etnias e classes diferentes caminhando cansados em direção ao portão de saída, após a revisão de limites, derivadas e integrais para a prova na semana seguinte. Uns ranhetavam, outros quase choravam; havia também aqueles que já estavam fazendo piada com a recuperação.

Do outro lado da calçada, um rapaz alto usando uma touca do Bahia aguardava uma das estudantes, abraçado em sua bike. Esperou o tumulto passar. Alguns minutos depois do portão esvaziar, saiu uma garota de casaco preto e largo, óculos grossos e quadrados chutando as pedrinhas da calçada. Ali estava ela.

— Quase não te reconheci com esse óculos, sabia?  — sussurrou no seu ouvido de supetão. Ela não se assustou, já tinha lhe visto ali, através das paredes da sala de aula.

— Que bom, a intenção é essa. — respondeu como se não se importasse.

Guilherme riu. Parecia que algumas coisas não iriam mudar. E isso lhe agradava. Mas também imaginava porque ela estava assim.

— Então, como foi voltar?  — perguntou delicadamente.

— Não foi uma volta. — falou seca.  — Eu estudava no fundamental aí, na época, eles nem tinham faculdade. E de qualquer forma, a bolsa não foi para mim, foi para a Oclusiva. Nem faziam ideia de quem era a pessoa por trás quando informaram a proposta na prefeitura.

O menino deu uma risada alta.

— Eu queria ter visto a cara do diretor quando viu que a heroína era a aluna acidentada na excursão deles.

Isabela cedeu a uma risadinha com o comentário. Foi uma cena mais do que satisfatória. Mas ela não culpava a escola. Na verdade, não culpava mais ninguém. Era uma oportunidade única de entrar na graduação mesmo sem ter um certificado de conclusão do fundamental, num curso onde poderia aprender mais sobre seus poderes; e teria material disponível para desenvolver por si só equipamentos melhores que o traje para otimizar sua ação. Inclusive a mochila já estava repleta de novas versões da roupa, afinal a primeira já estava dando coceira de tantas vezes que foi usada.

Ela e Guilherme caminhavam lado a lado na calçada. Ele guiava a bicicleta devagar, observando algumas nuvens que passavam.

— E sua mãe? Espero que as coisas estejam… melhores.

Ele deu de ombros, ficando mais sério. A irmã, médica conceituada, pediu para trabalhar na doutor Maia a fim acompanhar a mãe mais de perto, e automaticamente conseguiu um emprego para ele lá; na organizada, foi aplaudido quando apareceu de volta e viu seu agressor ser expulso; conseguiu se inscrever na academia de MMA da cidade; namorava uma das garotas mais incríveis que já tinha conhecido; porém, quanto à sua mãe, nada podia ser feito. A doença era irreversível.

— Hey, vocês vão conseguir dar um jeito! De alguma forma. Eu sei que vão.  — parou de andar e segurou as mãos dele; gentil, mas séria.  — VOCÊS são heróis. E...

Não conseguiu terminar de falar. Um barulho de vidros quebrando interrompeu a conversa. Ambos olharam para cima, na direção do som. Tinha começado um incêndio num prédio próximo. Ouviram-se vários gritos desesperados.

— Uou, como isso…

— Ar condicionado numa tomada velha.  — Isabela falou, analisando a situação com a visão de raio x, ampliação mental da imagem e seu raciocínio, claro.  — Não é um caso tão complicado assim.

Guilherme aproveitou a proximidade e lhe lançou um olhar de lado, já voltando a sorrir.

— É, porém, acho que os bombeiros não podem chegar a tempo.

Ela se aproximou mais, entregando-lhe os óculos. Havia uma tensão implícita ali. Isabela ainda não tinha aceitado tão bem sua posição nova, contudo, depois de tanta coisa, não tinha como voltar atrás.

 

Os olhos já brilhavam mais que o normal, enquanto a pele começava a mudar de aspecto.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Calma, ainda não acabou.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Oclusiva" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.