O Bêbado e o Equilibrista escrita por Izabell Hiddlesworth


Capítulo 1
Uma dor assim pungente


Notas iniciais do capítulo

Olá!

A história se passa no período da ditadura militar brasileira.

Boa leitura~



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A Coca-Cola aliviou a secura na boca de Olívio. Era a segunda lata em menos de meia hora, e já havia uma terceira ao alcance de sua mão. Com o medo parecendo apertar os dedos ao redor de seu pescoço e o fazendo checar a rua de dois em dois minutos, sentia que nada mais conseguiria passar por sua garganta.

Não deveria ter vindo, martirizou-se pela enésima vez. Estava mergulhando-se em arrependimento e angústia desde que pisara naquele bar. Não era bem o tipo de estabelecimento que estava esperando quando, mais cedo no quartel, Pedro o convidara para uma noitada. Porém, se tivesse sido mais cuidadoso, teria adivinhado.

— Está se divertindo?

Olívio sobressaltou-se, fazendo o refrigerante respingar no chão.

— Calma. — Pedro riu, apertando seu braço. — Está todo ressabiado assim por quê?

— Você não me disse que seria esse tipo de bar. — Ele fechou o sobrecenho, cruzando os braços. Com a cabeça, indicou a Rua Augusta além da pequena janela. — A ronda carimba esse pedaço. E se pegarem a gente aqui?

A hipótese dava calafrios em Olívio. Não podia sequer suportar imaginar-se sendo pego em um bar gay – um lugar sujo, subversivo para seus companheiros de batalhão. Seria uma humilhação terrível para a família, e era claro que receberia uma punição física na base.

— Ninguém vai pegar a gente. Você pode se divertir um pouco? — Pedro gesticulou para a pista de dança cheia além das mesas de alumínio.

Olívio suspirou, encarando seus olhos na luz parca. Amaldiçoava-se por não ter resistido a eles. Estivera tentando fitá-los mais de perto desde que os vira na fila de alistamento da base. Os exercícios em dupla e o sorteio dos beliches no alojamento lhe deram desculpas para criar uma amizade com Pedro, e isso deveria ter sido o suficiente. Os toques sob a mesa do refeitório e os olhares furtivos durante as duchas também. Mas quando aquele convite surgiu, e o coração de Olívio deu uma cambalhota, ele não pôde evitar lançar-se à corda bamba.

— Não tem lugar seguro hoje em dia. — Pedro suspirou, tomando o refrigerante de sua mão e sorvendo um gole. — Escolhi esse lugar porque pensei que fosse ser mais confortável para a gente.

— Como assim?

De repente, Pedro deslizou a mão ligeira por sua nuca, puxando-o para um beijo sôfrego. Foi como um choque de teaser, surpreendente o bastante para fazê-lo se afastar depressa. A Coca-Cola borbulhou em seu estômago.

— Foi… mal... — Pedro o encarava com um misto de urgência e nervosismo. — Pensei que…

Olívio o calou ao pôr as mãos em seu peito. Também estivera pensando, mas pensar demais ameaçava a realização de seus anseios luxuriosos. E se olhasse para a rua mais uma vez, talvez perdesse Pedro de vista. O martírio, percebia, teria de ficar para depois.

No momento, precisava agarrar-se àquela coragem fortuita e dançar com Pedro na corda bamba. Precisava abrir a boca e fechar os olhos.

 

Semanas depois, Olívio estava equilibrando-se entre as tarefas como soldado e seu romance proibido com Pedro. Tinham marcado um ao outro com roxos por todo canto. Os beijos dele eram como uma Coca-Cola gelada numa tarde quente, e seus toques faziam a pressão militar ser suportável. Estava embriagando-se, noite após noite.

Entretanto, isso fez com que fosse arremessado para fora da corda, direto para o chão.

Numa tarde, o tio, o segundo tenente do quartel, o chamou ao prédio da intendência. Alguém o tinha visto com Pedro na Rua Augusta e dera com a língua nos dentes. Olívio sentiu o ar ser sugado para fora de seus pulmões, enquanto tentava permanecer firme diante do interrogatório do tio.

— Não sei até que ponto essa história é verdade ou não, o que raios você estava fazendo lá… — Tio Osvaldo remexeu o bigode hirsuto. — Mas vou lhe dar um corretivo por precaução.

Olívio anuiu, assustado demais para dizer qualquer coisa. Pelo nome da família, tio Osvaldo não arriscaria castigá-lo aos olhos dos outros soldados. Porém, antes o tivesse feito.

À uma da manhã, Olívio foi arrastado até o barracão nos fundos da base para receber sua punição. E o que seus olhos encontraram foi muito pior do que a surra que estivera esperando.

Pedro estava de joelhos no chão de terra batida, amordaçado ao pau de arara. Um cadete lhe deu uma cusparada, ao que outro o chutou na barriga. Seu corpo nu tinha feridas abertas e estava molhado de sangue e suor.

Olívio fez menção de sair correndo, mas o tio meteu um bastão de madeira em suas mãos.

— Mostre que é homem de verdade — ele sussurrou. Então voltou-se berrado para Pedro: — Não aceitamos bicholas neste quartel!

O jantar ameaçou subir pela garganta de Olívio. Suas mãos já estavam pegajosas quando tio Osvaldo derrubou Pedro com um soco no olho inchado.

— É isso o que acontece com maricas, rapazes.

Olívio estremeceu por dentro, encolhendo-se a cada guincho de dor do amante.

As noites na Rua Augusta, as cobertas partilhadas, as carícias que acalentavam seu coração… Tudo estava girando num turbilhão em seu âmago, arrebentando suas artérias. Por um instante, ele saiu e voltou ao corpo, desejando que aquilo fosse um pesadelo.

— Vamos, Olívio.

O tio estava sacrificando Pedro para preservar a honra e o nome da família. Se não fizesse nada, o amante morreria; e se fizesse, ele morreria junto.

Olívio deu um passo hesitante em direção ao pau de arara. Seus braços colocaram o bastão em riste.

Do chão, Pedro lançou-lhe um olhar lamurioso com o único olho que permanecia aberto. Estava desfigurado, despido do garbo de outrora.

— O… lí… — Ele tentou erguer uma mão ensanguentada em súplica.

Oh, não. Olívio engoliu em seco. Seu nariz ardia com o choro reprimido. Sinto muito, sinto muito. Covardemente, chegou mais e mais perto.

Os roxos que Pedro lhe deixara no corpo eram marcas de amor. Mas os roxos que estava para dar em troca assinariam sua morte tortuosa.

Sinto muito. Fechou os olhos, descendo o bastão com força. O grito de Pedro em resposta foi pungente.

Olívio também se matava por dentro.


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Notas finais do capítulo

Na época da ditadura, a polícia fazia rondas de "higienização". À noite, os camburões paravam em estabelecimentos frequentados por LGBTs (a sigla não existia nesse tempo), e os policiais prendiam o pessoal por causa da sexualidade (que era considerada uma afronta à ordem e aos bons costumes). Por isso o Olívio não parava de olhar pela janela.
Ser homossexual era um agravante no tipo de tortura que seria imposto à pessoa. Em muitos casos, podia significar a morte.

Caso você goste de histórias sobre esse assunto, tenho uma outra: https://fanfiction.com.br/historia/741218/Pra_Nao_Dizer_Que_Nao_Falei_Das_Flores/.

Obrigada pela leitura!! ^^

Lollallyn.