Ele & Ela – Antes das 3 escrita por Ero Hime


Capítulo 1
Para ela: era pouco menos de três horas


Notas iniciais do capítulo

Achou mesmo que eu ia perder a chance de escrever um clichê NaruHina para o desafio de casal trocado? Eu vivo pra isso.
O desafio foi proposto no grupo e eu levei o mês todo enrolando, mas aqui estamos, com um capítulo maior que o planejado! É algo para descontrair e aquecer nossos coraçãozinhos, espero que gostem! Foi legal escrever imaginando o casal invertido. Queria dedicar especialmente para a Phoenix, que é maravilhosa aqui e no grupo, e sempre me motiva muito!
Aproveitem! ♥



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 Naruko gostava de observá-lo.

Não era como se ela fosse alguma perseguidora esquisitona. Ela apenas gostava de observá-lo. No treino, depois da aula. Todos os dias. Durante três anos.

Por essa perspectiva, parecia um tanto quanto deprimente, ignorando a primeira impressão completamente assustadora – mas não era nada daquilo! –. Quando o irritante alarma soava pelos corredores e invadia as salas, Naruko saía rapidamente, esgueirando-se pelos armários até as portas do fundo, em direção ao ginásio. Havia uma enorme academia, de estruturas elegantes e portões abertos, grandes janelas e batentes baixos. Vários alunos treinavam os mais variados tipos de esportes e exercícios no ginásio do colégio, mas Naruko gostava apenas de observá-lo. 

Ela não tinha a menor habilidade para quaisquer atividades que envolvessem complexidade maior da aceitável por metro quadrado – dois braços quebrados foram mais que suficiente para chegar a essa conclusão –. Dispensada da educação física depois de um incidente muito doloroso, Naruko utilizava seu tempo ocioso investindo em algo que sabia que era realmente boa, e as pastas e os estojos de aquarela nunca saíam de sua velha bolsa de pano de tiras largas. Contudo, quando acabavam as aulas, ela era a primeira a correr para o ginásio, e aqueles que não a conheciam até arriscariam dizer que era mais uma entusiasta dos esportes.

Claro que não.

Naruko gostava de observá-lo. Escondida entre as árvores que cresciam entrelaçadas à estrutura, contornando os telhados com seus ramos, ela olhava pelas frestas das janelas ou pelas portas escancaradas – dependia sempre de onde ele estava –. Nos aparelhos da academia, nas esteiras, nos circuitos, nos tatames. Para todo canto, havia um lugar de observação. E, de preferência, de maneira que Naruko pudesse vê-lo, mas ele não pudesse identificá-la. Uma, duas, três horas. As vezes, toda uma tarde. Imóvel, impassível, serena, ela observava seus movimentos, seus treinos, suas pausas do lado de fora – quando ele ficava tão perto que ela podia se enebriar com o cheiro de suor e amadeirado –, as conversas com seus amigos.

Ele era popular. Não como nos filmes – que Naruko assistia incansavelmente, noite após noite –, mas de maneira espontaneamente charmosa. Afinal, não havia uma só pessoa na Academia Konoha que não se rendesse àquela risada contagiante. Sempre bem-humorado, seu sorriso iluminava por onde passasse. Tornar-se seu amigo era natural, natural como respirar, natural como a maneira que ele bagunçava os fios negros e os jogava para trás dos ombros.

Naruko pensava se poderia ser sua amiga também – ela conhecia cada singularidade que ele lhe permitia saber, mas não era o suficiente. Ele tinha muitos amigos, e, bem, ela não tinha nenhum.

Era particularmente injusto que uma garota nascesse sem nenhuma habilidade para atividades físicas e com uma timidez descomunal. Tudo bem, ela gostava do cabelo loiro – mesmo que o usasse exclusivamente em marias-chiquinhas – e seus olhos azuis eram o.k., mas não conseguia manter uma conversa decente com alguém por mais de cinco minutos sem que seu rosto assumisse tons vergonhosos de vermelho, e que suas mãos começassem a tremer tanto que ela simplesmente parava de prestar atenção no indivíduo à sua frente e se concentrava unicamente em não desmaiar. Anos de tratamento psicológico serviram apenas para que ela conseguisse interagir na sala de aula, respondendo as perguntas de professores – infelizmente, estava longe de conseguir manter o interesse de alguém, que dirá dele.

Em seus sonhos mais sórdidos, Naruko puxava uma conversa qualquer, lhe dando um sorriso brilhante enquanto o acompanhava até em casa – era óbvio que eles tinham que morar em ruas próximas –. No dia seguinte, ele a cumprimentaria ao entrar no primeiro período, e ela retribuiria com um entusiasmo perceptivelmente maior que “educado”, e menor que “oferecido”. Porém, quando o despertador do celular tocava, ela acordava, frustrada, encarando o teto do quarto que ainda tinha estrelas coladas. Era patético.

Ela aceitava seu destino, e, então, continuava a observá-lo todos os dias, escondida – como estava naquele exato momento, agachada contra uma cerejeira, tracejando distraidamente em seu caderno de rascunhos, apenas para manter as mãos ocupadas.

Naruko gostava mesmo de observar Hideo Hyuuga treinando os bíceps.

Não havia uma só pessoa que não o tivesse notado no primeiro dia de aula. Naruko poderia facilmente enumerar três dos diversos motivos: 1. Ele era lindo; 2. Ele era um Hyuuga e; 3. Ele era o garoto mais escandaloso do primeiro ano. Quando entrou pela porta carregando uma pasta maleta que provavelmente custava mais que qualquer mochila dali, as pessoas evitaram encará-lo. Durou exatos trinta segundos. Foi o tempo necessário para que ele escolhesse um lugar na fileira da frente e gritasse – sim, gritasse – para todos o seu nome. Depois que o choque inicial se dissipou, as pessoas se aproximaram, fosse pela situação engraçada, fosse pela maneira que ele sorria.

Que sorriso.

Naruko viu tudo da terceira carteira, enquanto esperava, ansiosa, pela chegada do professor, que faria todos aqueles estudantes sentarem-se em seus próprios lugares, e ela pudesse, finalmente, respirar em paz. Duas garotas tentaram se aproximar, mas foram escancaradamente repelidas por frases desconexas e a recusa intermitente de fazer contato visual. Sozinha, ela ficou analisando, até que a cena toda degringolou, finalmente, deixando todo o ambiente amigavelmente leve.

Ela se lembrava – quase perfeitamente – do primeiro pensamento que a atingiu quando pousou seus olhos sobre Hideo. Não foi sobre as roupas sofisticadas, o cabelo incomumente grande ou os músculos existentes por baixo da camiseta branca. Não, a primeira coisa que Naruko pensou foi que ele tinha os olhos mais lindos que ela já vira.

Os Hyuuga eram reconhecidos em qualquer lugar, por qualquer pessoa. Um deleitante defeito genético fazia com que suas íris se assemelhassem à duas luas cheias, brancas, por quanto translúcidas, lilases, peroladas – Naruko já desenhara-as de todas as maneiras possíveis, e de algumas impossíveis também, reproduzindo aqueles dois círculos ardentes até que, inevitavelmente, começasse a sonhar com elas –. Além de serem conhecidos pelos olhos, a antiga família da cidade também produzia o que parecia ser uma linha de gênios. Os Hyuuga estavam em todos os lugares importantes – CEO de empresas, médicos, doutores, engenheiros robóticos –. O destino era claramente faccioso, porque não era suficiente serem ricos, famosos e estonteantes. Claro que tinham que ser inteligentes também.

De qualquer maneira, Naruko não pôde ver, mais tarde, uma maneira de não se apaixonar por Hideo. Momentos esporádicos em que estavam no mesmo ambiente e ela estava visível, renderam a si boas lembranças para serem guardadas.

Descobriu sua ávida fissura pelo ginásio logo na segunda semana de aula. Procurava por um lugar tranquilo para almoçar – logicamente o refeitório não era uma opção –, quando percebeu que o bosque dos fundos da propriedade eram bastante silenciosos. Acomodou-se, mas, tão logo, teve de rastejar desesperadamente para trás dos arbustos. Hideo vinha com outro garoto da sua sala, e ambos se inscreveram em tantos programas quanto possível. Depois de alguns dias de contemplação, não foi difícil para Naruko perceber que ele era viciado em exercícios. E não somente academia, mas treinava tudo que pudessem lhe oferecer dentro de um galpão adaptado – esportes coletivos, individuais, aeróbicos. Todo dia uma sessão diferente, e Naruko ficava mais e mais admirada.

Prometeu a si mesma que faria aquilo somente por um mês – seria o suficiente para saciar sua curiosidade, obrigado –. Mas um virou dois, e dois viraram quatro, e um semestre virou três, e, finalmente, estava começando o terceiro ano.

Novamente, patético.

Mas Naruko somente gostava de observá-lo. O que tinha de mal nisso? De que importava que não conseguira dizer uma só palavra em todo esse tempo, mas que sentia que o amava tão dolorosamente? Exato. Não importava. E continuaria assim até a formatura, quando finalmente se livraria do ensino médio e partiria para estudar na melhor universidade de artes da costa leste.

Ah, lá vinha ele. Tão lindo e suado...

Andando entre os aparelhos de musculação planejadamente organizados no canto esquerdo. Olhou para baixo, percebendo que seus dedos haviam rabiscado um esboço confuso das costas largas contraindo e descontraindo conforme ele trazia os braços para trás. Suspirou – eram belas costas. Claro. Anos de aprimoramento de um corpo que já era definido por natureza só poderiam resultar em uma verdadeira obra-prima. Naruko não era pervertida, nem nada do tipo – ela só gostava de apreciar coisas bonitas.

Depois de tanto tempo, aperfeiçoou um relógio interno pontualíssimo. Atenta, conferiu as horas e viu que era pouco menos de três horas. Organizou rapidamente suas coisas, jogando-as na mochila surrada e dando a volta, meio agachada, por trás da árvore florida. Era um ritual sacrossanto e rigidamente seguido – Hideo acabava sua série de treinos por volta das três da tarde, e, como faziam o mesmo caminho para casa, Naruko não queria que ele a visse voltando tão coincidentemente tarde, uma vez que não fazia nenhuma das atividades extracurriculares. Por isso, sempre saía fielmente poucos minutos antes, o que lhe dava uma boa dianteira.

Saiu da área de visão do ginásio e atravessou o corredor principal, agradavelmente silencioso naquela hora do dia. Segurando a bolsa com as duas mãos enganchadas nas alças, andou em passos rápidos, escutando o toque dos pequenos saltos quadrados ecoar pelas paredes cheias de armários. Alcançou o lado oposto da escola, onde ficava o portão principal. Era terça-feira, e Naruko avistou os cabelos rosados de seu melhor amigo.

— Nem mesmo as galinhas são tão pontuais como você. – foi recebida.

— Fico feliz que esteja aprimorando suas frases de efeito, Sakumo. Agora já pode praticar o nível dois. – devolveu, com um sorriso que caminhava entre a zombetearia e a diversão. Recebeu uma clássica revirada de olhos e, juntos, começaram a caminhada pela ladeira quente da primavera.

Fora seus pais e algumas outras raríssimas pessoas, Sakumo provavelmente era um dos únicos que já recebera frases firmes e irônicas de Naruko – aquelas eram suas especialidades –. Sem gaguejar, sem tremer, sem corar. Foi preciso anos de construção de uma sólida amizade até que chegassem ao ponto de trocar farpas e brincadeiras que não rendessem a ela uma série de acontecimentos em espiral rumo à vergonha. Conheceu o garoto ainda no maternal – ou seja, não era preciso falar. Não que ela fosse. Ele apenas se aproximou, e pronto. Amigos.

Cursaram o fundamental juntos, e, depois, ele se matriculou no mesmo colégio que ela. Naruko não entendia, talvez fosse algum instinto primitivo de proteção, mas ela não reclamava. Era bom ter alguém conhecido para lhe ajudar – Sakumo tinha os cabelos exoticamente cor-de-rosa, então ele teve de tomar algumas aulas de defesa pessoal. No fim, sempre defendia Naruko das garotas perversas, e estava lá quando ela precisava desabafar. Era seu melhor amigo.

Às terças, Sakumo ficava para as aulas de inglês, e eles voltavam juntos. O garoto morava algumas quadras para o sul, mas não era como se não passassem todo o tempo juntos no quarto sofisticado de Naruko, com varanda e no segundo andar. Os anos renderam a eles o benefício de gostos parecidos, e não tinha briga na hora de escolher qual série assistir ou qual CD de grupos coreanos eles ouviriam – não tinha briga em momento nenhum, para falar a verdade.

— Eu não entendo por que você ainda não desistiu de ficar espionando o Hyuuga. Deve ter um capítulo no livro de definições de doenças mentais que descreva isso. – o garoto comentou, já quando subiu a ruela pacata que desbocava na avenida da casa dela. Naruko, por sua vez, limitou-se a franzir a testa, voltando-se para ele com sua melhor expressão entediada.

— Primeiro, eu não estou espionando ele. Isso é ultrajante. – o garoto bufou, hilário – Segundo, sim, eu continuo fazendo isso, porque ele me dá inspiração.

Era verdade. Naruko costumava desenhar suas melhores criações embaixo da sombra vistosa daquelas árvores, enquanto analisava e memorizava cada linha de perfeição muscular exaltada em camisetas cavadas ou – quando tinha sorte – nenhuma camiseta. Ela apenas considerava que todas as medidas de Hideo atingiam excelência divina, distribuídas harmoniosamente em um metro de oitenta de pura virtuosidade.

— Ficar babando no abdômen dele não é inspiração. Você é tarada. – Sakumo revirou os olhos, e Naruko o olhou ofendida, empurrando-o com os ombros e fazendo-o tropeçar. Ele riu, alta e escandalosamente.

— Nenhum garoto normal fica falando do tanquinho de outros garotos. Admita logo, você é gay. – ergueu as sobrancelhas, apenas para irritá-lo. Já sabia da resposta que viria.

— Eu não sou gay, mas também não sou cego. – ele lhe deu a língua – Além disso, você sabe que eu sou amarrado na Sasuko.

— O que me inconforma tanto quanto você se inconforma com minha queda pelo Hideo. – rebateu, fitando-o arqueada, e o rosado quase corou.

— Você não tem uma queda, tem um desabamento. – resmungou – E ninguém sabe se eles namoram mesmo.

Hideo e Sasuko andavam juntos quase tanto quanto Naruko e Sakumo. Claro que, diferente dos dois últimos, o primeiro casal era absolutamente perfeito em tudo que faziam – boas notas, populares e lindos. Sasuko era a garota mais bonita da escola – o que certamente não fazia bem para a autoestima já inexistente de Naruko. A competição não era justa. A competição nem existia. Ela não tinha chance contra o cabelo moreno e os olhos ônix sempre vigorosos, sem falar no corpo de arrasar. Sakumo fazia parte da estatística de oitenta por cento dos garotos do terceiro ano que eram apaixonados por ela.

— Nós somos dois derrotados. – Naruko pontificou, enquanto abriu o portão pelo lado de dentro. Deixaram os sapatos e as mochilas no corredor, entrando direto para a escadaria no final – Mãe! Cheguei! – a garota gritou, informando, e, da cozinha, ouviu-se a resposta:

— Oi, filha! Oi, Sakumo!

Riram. Kushina já sabia que o rosado estava onde Naruko estivesse. Os amigos caminharam até o quarto da garota, na última porta da direita de um corredor vergonhosamente decorado com fotografias que narravam toda uma vida da única filha do casal. A em questão estava encostada, com as janelas abertas, e eles entraram, fechando-a completamente em seguida. Jogou-se na cama, enquanto o garoto se atirava na almofada jogada sobre o tapete felpudo. Foram inundados por um tranquilizante tom de rosa pastel, mesclado com painéis amarelos e roxos, desenhos de todas as cores distribuídos pelas paredes e pela mesa de desenho profissional que ocupava a maior parte do espaço. A cama de dossel, de aparência rústica e nova, estava bagunçada da mesma maneira que Naruko deixara pela manhã, quando saiu apressada para a aula.

— Olha, encontrei mais uma estrela. – Sakumo mostrou um adesivo entre os dedos polegar e indicador. A garota suspirou, pegando-a e jogando no baú de bagunças.

— Elas estão caindo muito. Vou ter que colar novas. – ela apenas não dormia sem a luz neon reconfortante – O que vamos assistir hoje?

— Se eu ter que ver mais um episódio de dorama, vou vomitar meu estômago. – opinou, e Naruko jogou-lhe uma almofada na cara, porque ela estava seriamente viciada em histórias românticas e o amigo não entendia porquê sempre acabava chorando no final.

— Tudo bem, então, senhor-masculinidade-intacta. – revirou os olhos – Vamos ver uma de comédia.

Acomodaram-se no velho divã que ficava próximo ao encosto da cama, convenientemente defronte à televisão de tela plana instalada na parede. Os videogames, cuidadosamente arrumados com seus controles na prateleira de jogos, tinham suas próprias funções – um para os jogos de dança, um para conectar à internet. Ser filha única tinha, realmente, suas vantagens – a solidão de nunca ter tido um irmão era satisfatoriamente compensada pela presença de Sakumo –. Acessou o site dos favoritos, digitando o nome da última série engraçada que estavam acompanhando. O garoto jogava no celular enquanto esperava, com os pés jogados casualmente sobre o colo da garota.

— Eu adoro essa personagem. – ele comentou quando a abertura começou a tocar, deixando o aparelho de lado para deitar sobre as almofadas. Referia-se a uma das principais, de uma trama colegial qualquer.

— Não gosto dela. – Naruko retrucou, queixando-se, enquanto puxava os lacinhos e deixava o cabelo cair, longo, por seus ombros, penteando-o com os dedos – Ficar envergonhada e balançar aqueles pezinhos não faz dela uma garota tímida. É repugnante. – esbravejou, e o rosado limitou-se a olhá-la de ponta cabeça.

— Você só está sendo uma velha rancorosa porque não consegue trocar duas palavras inteligíveis com alguém. – ergueu as sobrancelhas e Naruko grunhiu, cruzando os braços.

— Essa é sua palavra do dia? Inteligível? – a competição entre eles por quem detinha o vocabulário mais amplo não era exatamente saudável, mas, pelo menos, ela tinha a melhor nota de gramática.

— Sabe, você realmente deveria deixar o cabelo solto. – ele ignorou seu último comentário – Ignorando as medidas desproporcionais e toda essa raiva, você é muito bonita. – zombou na última parte, tomando um tapa no braço direito – Ai!

— Não tenho medidas desproporcionais. – revidou, orgulhosa. Gostava muito de suas maçãs e da boca, embora o lábio inferior fosse ligeiramente maior. Até mesmo as marcas de nascimento eram agradáveis – Meu cabelo é grande, ele embaraça demais. Gosto das marias-chiquinhas.

— Você tem toda essa aparência californiana legal, poderia ser popular se quisesse.

— Se eu conseguisse conversar como uma pessoa normal, você quis dizer. – amolou.

Em algum momento de sua linha ancestral, a família de seu pai migrou da América do Norte para a Ásia, mas os traços marcantes da terra do sol já haviam se solidificado. De fato, Naruko imaginava que o patriarca tinha feito sucesso na juventude – motivo que fez sua mãe se apaixonar tão rápido quanto ela própria caiu de amores por Hideo –. O cabelo loiro e a pele amorenada eram características chamativas, passadas para a única filha, que se sentia um tanto desajustada em uma sala de pessoas de pele alva e resplandecente, mas, com o tempo, aprendeu a gostar da melanina. Os olhos, incomumente azuis, detinham a impetuosidade da mãe, assim como seus próprios traços faciais.

A garota já se imaginara – milhares e milhares de vezes – interagindo com seus outros colegas de quarto e os alunos primeiranistas, seguindo a tradição de adotar um novato. Naruko não era narcisistas, mas sabia reconhecer que tinha uma personalidade expansiva e saberia falar basicamente sobre qualquer elemento da cultura pop. Todavia, seu corpo e sua mente pareciam duas entidades elementares de uma mesma composição humana – enquanto ela pensava, agia de forma totalmente diferente, resultando no que já estava cansada de saber. Uma garganta trancada e suor frio não eram exatamente prazerosos.

— Você não tem culpa da sua fobia social. – Sakumo respondeu, gentilmente, envolvendo sua mão, e Naruko suspirou, resignada.

— Odeio esse termo, parece que eu sou doente. – escorregou para dentro do sofá, suspendendo as pernas, a série, há muito, já esquecida, preenchendo o ambiente com falas e sonoras técnicas de risadas – Prefiro timidez extrema. Eu não tenho medo de multidões, ou de entrevistas de emprego. É só que... – parou, pensando nas palavras certas – Interagir com pessoas desconhecidas me assusta. Eu começo a gaguejar, e minha cabeça para de pensar racionalmente. E é só até eu me sentir confortável. – frisou – Lembra daquela garota da sétima série, do laboratório? Eu conseguia falar com ela. – orgulhou-se do feito.

— É, depois de três meses, e ela era sua dupla. – o garoto retrucou, jocoso, e Naruko não conseguiu ficar brava, limitando-se a vincar a testa – Você não fica gaguejando com seus amigos, o problema é que não consegue deixar ninguém ser seu amigo porque não consegue conversar com eles! – ali estava o paradoxo da sua vida.

— Vou fazer amigos na faculdade. – decretou, como um ponto final na conversa.

— É, a costa leste vai receber a garota mais conversadeira do interior. – brincou, cutucando sua barriga e fazendo-a rir.

Pararam de discutir, finalmente prestando atenção no episódio, que já passava da metade. Era uma trama fraca, mas tinham várias piadas, e a garota falsamente tímida que irritava Naruko tinha recebido um convite para o baile da escola, e ficou três minutos monologando sobre aceitar sair com o garoto mais bonito do seu ano sem conseguir parar de ter as bochechas rosadas de maneira estupidamente fofa. Aquilo nunca aconteceria na vida real. Naruko suspirou mentalmente, pensando na própria condição dramática. Tudo que ela queria era sair do ensino médio – deixar para trás a vergonha, a timidez e a incapacidade de falar com o cara por quem era apaixonada desde o primeiro colegial.

Sakumo foi embora depois do jantar – ele e Naruko comeram rámen no quarto enquanto ouviam a discografia falida, porém genial, de algum cantor dos anos 90 –. Sozinha, tomou um banho relaxante na água quente, brincando com seus cremes perfumados e com os hidratantes importados que ganhava dos avós. Ficou um pouco com seus pais na sala de estar, mas resolveu que era hora de subir novamente quando eles começaram a trocar carícias indiscretas demais. Gostava da intimidade dos pais, mas quando começavam a agir como adolescentes eram um pouco desconfortável.

Naruko ficou deitada sobre os edredons, devaneando. Um novo dia, uma nova tarde observando Hideo. Ele era lindo, mas também era mais que isso. Ele nunca deixava de ajudar alguém com dificuldade nas matérias, e era aquele que consolava alguém, mesmo que não fosse exatamente íntimo desta pessoa. Suspirou, virando de bruços e deixando o celular de lado, onde desenhava com uma caneta. Tinha que parar de pensar naquele garoto, mas era impossível. Alguém tão lindo e imponente nunca daria bola para ela, ainda mais quando podia ter Sasuko Uchiha. Antes de dormir, lembrou-se de ter visualizado os olhos perolados que, as vezes – somente as vezes – parecia olhar diretamente para ela, através da janela e do arvoredo.

Não foi surpresa quando Naruko acordou atrasada, se trocando ao mesmo tempo que comia uma maçã e reunia seu material de desenho. Sem tempo, deixou o cabelo solto, caindo pelas costas e alguns fios voando sobre seus olhos. Se despediu da mãe com um beijo estalado e saiu rua abaixo. Alguns estudantes também corriam para o colégio, apinhando as calçadas e desviando dos carros. Agradeceu por morar perto da escola, e chegou com uma folga considerável, sentando-se atrás de Sakumo e abrindo seu caderno, focando unicamente em suas anotações desastrosas, evitando olhar para os lados.

No almoço, seis longas aulas depois, sentia-se particularmente exausta. Sua cabeça estava avoada, e ela percebeu que pegou salada fria em vez de grão-de-bico, e ficou irritada. Caminhou até seu lugar usual de descanso, e, faça chuva ou faça sol, a sombra das folhagens espessas sempre era aconchegante. Comeu devagar, analisando com olhos de águia o movimento dos alunos que se dedicavam às matérias extracurriculares. Ela mesma tinha cursado dois períodos de desenho, até perceber que nada daquela aula poderia acrescentar conhecimento útil, e abandonou. Não precisaria encher um currículo – tinha uma vaga garantida no curso integral de artes, e, para ela, estava bem.

Já pela uma da tarde, os garotos da sua sala de aproximaram do ginásio, carregando suas bolsas e os uniformes. Suspirou. Hideo vinha na frente, sorridente. Usava uma bermuda e camiseta de mangas arregaçadas, o cabelo amarrado em um rabo baixo. Naruko gostava quando seu cabelo estava solto – os fios negros escorriam contrastando contra a pele branca, formando uma harmonia de cores e feições verdadeiramente harmoniosas. Encostada entre o tronco e uma mimosa, abriu o caderno, desenhando com lápis 2B. Rabiscava, distraída, conforme seus dedos se guiavam pela folha. Afastava o cabelo loiro e, quando esquentou demais, tirou a parte de cima do moletom laranja inseparável.

Por vezes, o tempo passava genuinamente rápido, e, por vezes, se arrastava. Naquela tarde, Naruko não viu as horas correrem, preenchendo folhas e mais folhas de rascunhos que seriam úteis depois. Foi quando percebeu, completamente assustada, que os garotos já se preparavam para ir embora. Ela estava atrasada!

Mergulhada em pavor, reuniu suas coisas como pode, enganchando a mochila no antebraço e levando o estojo dependurado nos dedos. Tropeçou, tentando não deixar nada cair. Algumas pessoas já passavam por ela, conversando animadamente. Gemeu internamente. Teria de correr para não trombar com ele.

— Espera! Naruko! – ouviu nas suas costas, e gelou. Era a voz dele, era a voz de Hideo, chamando por seu nome.

Cada célula de seu corpo, cada nervo, paralisou, mitigando com a maneira que seu nome pareceu deslizar por seu tom. Apesar da satisfação, não foi o suficiente para ela se virar. Não, aquilo estava fora de cogitação. Encolhendo os ombros, correu com toda a velocidade, passando pelo corredor em tempo recorde, escola afora, subindo a ladeira sem se importar que suas panturrilhas queimassem. Desacelerou apenas quando viu a travessa, e não ousou olhar para trás para ver se estava sendo seguida. Apoiou contra o muro, esbaforida, com os pulmões reclamando. Arfou, esticando as costas e os braços, que doíam de carregar todo o material.

Agachou com a mochila, guardando tudo em seu devido bolso, até que percebeu – faltava um caderno.

Aquilo não podia estar acontecendo!

Caiu sobre as pernas, gemendo. Abriu toda a bolsa, procurou em cada zíper, tirou suas pastas e revirou as folhas. Nada. Era o caderno menor, que estava usando para desenhar naquela tarde. Provavelmente escorregou quando tropeçou e teve que arrumar as outras coisas em seus braços. Parte de sua mente completou, contra sua vontade, o raciocínio que se recusava a ter – aquele também era o motivo pelo qual Hideo estava chamando-a –. Choramingou em voz alta, escondendo o rosto de ninguém, queimando até as raízes. O caderno estava cheio de desenhos do garoto, de perfil, rosto, corpo, poses, detalhes minimalistas. Definitivamente pareceria que ela era uma stalker indecente. Ele a odiaria, com certeza. Ficaria com nojo e assustado.

Aquilo era um pesadelo. O único dia em que descuidava da hora e o pior acontecia.

Resignada, se arrastou pela rua, até sua casa, onde poderia afundar com dignidade e nunca mais aparecer na escola. Entrou, deixando a mochila e os sapatos, sem cumprimentar sua mãe. No quarto, jogou-se de bruços na cama, sentindo vontade de chorar. Apertou o rosto, imaginando que, naquele exato momento, Hideo estaria mostrando os desenhos da garota estranha para seus amigos – ele tinha tantos –.

Pensou em ligar para Sakumo. Ele sempre sabia o que dizer. Provavelmente lhe daria um sermão, mas também a tranquilizaria com alguma piada infame, e a faria acreditar que não tinha, definitivamente, acabado com sua reputação, que já não era das melhores.

Foi assim que passou o resto do dia e também a noite. Dormiu mal, com pesadelos que incluíam Hideo zombando dela, e outro em que as outras pessoas eram gigantes e ela, uma anã. Foi assustador – por pouco não acordou gritando, banhada em suor. Quando o sol atravessou seu quarto, ensaiou um discurso convincente para que sua mãe lhe deixasse faltar. Não adiantou – foi obrigada a se trocar e ir para o colégio, mesmo depois das ameaças e das súplicas.

Estava um caco. Vestia sua calça militar laranja – ela gostava muito daquela cor subestimada na palheta – e uma camiseta branca simples, o cabelo despenteado e sapatos fechados. Tinha olheiras e uma careta desolada. Quando Sakumo a encontrou, na porta da sala, tomou um susto, acompanhando-a até sua carteira e a vendo afundar.

— O que, em nome de Deus, aconteceu com você? – perguntou, exasperado, sentando-se na sua frente e virando o tronco.

— Minha vida acabou. – murmurou, abafada pelos braços – Simplesmente acabou. Estou perdida. Depois de hoje, vou pedir transferência para a América e morar com meus avós.

— Você não pode estar falando sério. – Sakumo ainda não sabia se era uma brincadeira extremamente dramática ou um decreto. Naruko ergueu os olhos, fitando a expressão pragmática do amigo, que fitou no fundo de seus olhos opacos.

— Deixei meu caderno de desenho cair ontem a tarde. – explicou, estremecendo ao lembrar do fatídico acontecimento.

— Ah, não me diga mais nada. – o entendimento cruzou o rosto de Sakumo, e seus olhos verdes cintilaram de solidariedade – Já imagino o que aconteceu.

— Minha vida acabou! – choramingou, voltando a afundar. Sentiu os dedos do amigo acariciarem seu couro cabeludo em um afago sincero.

— Não é tão ruim assim. Você deseja bem! – tentou consolar – Tudo bem, ele já chegou e não parece estar bravo. Não tem policiais, então ele não te denunciou por perseguição. – Naruko ergueu os olhos o suficiente para lhe fuzilar – Tudo bem, tudo bem. Opa, ele está olhando aqui. – mergulhou mais profundamente, lamuriando palavras desconexas – Calma, calma. Vai dá tudo certo. Temos aula de literatura hoje, a professora vai ficar lendo qualquer coisa e você pode ficar aqui, escondida. Vamos embora assim que acabar. – propôs, e Naruko assentiu, agradecida.

Sakumo se virou quando a mulher entrou, pedindo para que todos se sentassem. Começou a interpretar, monótona, uma poesia qualquer, enquanto Naruko continuava com a cabeça enterrada, com medo de se levantar. Sentia pares de olhos fixados em suas costas, mas não saberia distinguir realidade das paranoias que estava cultivando. De qualquer maneira, seria melhor não arriscar.

O sinal tocou, estridente, e Naruko foi a primeira a se levantar, carregando a bolsa intocada e deixando os olhos baixos. Correu para a saída, sem esperar por Sakumo. Misturou-se aos alunos do segundo ano, agradecendo por estar disfarçada. Alcançou os portões rapidamente – mas agradeceu rápido demais. Estava desacelerando com uma mão forte e de dedos compridos segurou seu cotovelo, virando-a. Assustada, tropeçou alguns passos para trás, girando.

Ali estava o rosto de seus pensamentos, que tinha evitado o dia todo. Lindo e ofegante. Usava uma calça reta de alfaiataria e tênis esportivos – como ele conseguia parecer um modelo da Vogue daquela maneira? –. A franja, um pouco maior que a altura das têmporas, grudava na testa, e ele a fitava ansioso.

— Es-pera… – arfou, e Naruko quis se enterrar até o pescoço como uma avestruz – É Naruko, não é? – perguntou, diretamente em seus olhos, e a garota engoliu em seco, já sentindo os dedos tremerem. Se tentasse sair correndo, tropeçaria de cara na primeira sarjeta, isso se conseguisse fazer seus pés se moverem satisfatoriamente. Não tinha saída.

— E-E-E-E-Eu- – gaguejou, o rosto em brasas. Que enternecedor – Eu-eu-eu...

— Você deixou isso cair ontem. – ele estendeu o caderno, Naruko reconhecendo a capa personalizada com cores aquarela. Conhecia seu conteúdo, e sentiu, seriamente, que desmaiaria. Os longos e elegante dedos estavam pairados à sua frente. Ele era mais alto do que imaginava – São ótimos desenhos. Você é muito talentosa. – Naruko não conseguiu distinguir o tom afável e sincero, porque sua mente reproduziu a frase de forma completamente zombeteira. Trêmula, envergonhada e a beira de lágrimas, demorou para se mexer. Forçou seu braço a obedecer seus comandos, e, com um movimento rápido e brusco, puxou o caderno de sua mão, sem tocá-la, e se virou, correndo.

Talvez ele a tivesse chamado, mas seus ouvidos estavam mergulhados em água. Apertou o caderno contra o peito, nervosa, os pés adormecidos. Por um milagre ela não caiu. Correu até a próxima esquina, quando parou, encostada em um muro, respirando tão profundamente quanto conseguia. Seus pulmões ardiam, e suas mãos estavam sem cor – toda ela tinha migrado para seu rosto, porque ela sentia calor. O vexame de ter sido tão mal-educada não foi maior que a percepção de toda a cena. Hideo a chamando, tocando seu braço. Que toque macio ele tinha. Assim como seus pensamentos mais tórridos tinham imaginado. Sua voz era grave e aveludada. Porém, pensar que ele tinha mesmo folheado o caderno, visto seus rabiscos dele, era o ápice do que poderia aguentar. Engolindo em seco, enxugou duas lágrimas teimosas e quentes.

— Oi, Naruko! – Sakumo apareceu do seu lado, também arfante, e preocupado – Calma! Estou aqui. – a puxou com rapidez, engolindo-a em seus braços. A garota tremia um pouco. Tinha visto a cena de longe. Durou menos de dois minutos, mas sabia que tinha sido uma eternidade para ela – Não foi tão ruim, foi?

— Ele viu os desenhos. – choramingou, abraçando o amigo, totalmente retraída.

Sakumo suspirou. Brincar com ela era uma coisa – a timidez de Naruko deixava sua autoestima baixa de verdade, principalmente quando tinha que falar com alguém. Ele sabia de seu potencial, mas também sabia dos seus sentimentos. Hideo era tudo que fantasiava desde os treze anos, aquela tinha sido a primeira vez que ele falara diretamente com ela.

Juntos, caminharam até sua casa, e passaram o dia se afundando em doces e assistindo filmes policiais – Naruko não aguentaria ver uma comédia romântica naquele estado –. Sakumo dormiu em sua casa também – no quarto de hóspedes que já tinha uma escova de dentes só para ele –, e ficaram conversando até a madrugada.

— Talvez essa seja sua chance de finalmente falar com ele. – o garoto sussurrou, virando-se para ela. Estava deitados em sua cama, de ponta cabeça, olhando para o teto e mastigando balas contrabandeadas da cozinha. Toda a casa estava silenciosa.

— Você não viu, eu não consegui dizer uma palavra. Foi humilhante. – confidenciou, no mesmo tom – Fiquei gaguejando igual uma louca, e sai correndo. Ele nunca mais vai querer olhar na minha cara. Vai ficar comentando com os amigos sobre como eu sou uma stalker obcecada com as costas dele. – bufou.

— Você recebeu alguma notificação do Instagram? – ela balançou a cabeça negativamente – Post no Facebook? Twitter? – todas negativas – Então ele não contou para ninguém. Talvez ele só queira falar mesmo com você. – Sakumo tinha um bom ponto.

— Ele só quer ser educado. – murmurou, mais para si mesmo, não deixando que nenhum sentimento indevido crescesse em seu peito. Bastava imaginar ela e Hideo em uma conversa para que suas bochechas atingissem tons escarlate iguais ao cabelo de sua mãe.

Naruko, pelo menos, dormiu mais leve naquela noite. Talvez desse para conter a situação e dar a volta por cima sem perder muito da sua dignidade. Hideo logo esqueceria daquilo, e voltaria a agir normalmente. E ela poderia voltar a sua rotina de invisibilidade. No dia seguinte, e no outro depois dele, e na segunda-feira, a garota não frequentou seu lugar de descanso. Pensou ser melhor evitar o ginásio, por enquanto, e aceitou almoçar no refeitório com Sakumo – ela quase implorou para voltar para suas árvores.

Estar entre todos aqueles adolescentes hiperativos foi um teste para sua ansiedade. Não tinha problemas com as festas executivas da empresa de seu pai, ou dos chás da tarde com as senhoras da organização voluntária que sua mãe frequentava – agora, estudantes? Aquilo era outra coisa. A maioria deles não se dignava a notar sua existência, mas alguns paravam para cumprimentar Sakumo, e, consequentemente, a ela. O mais próximo que chegou de uma saudação foi uma tentativa de falar, e o que saiu no lugar foi meio que um guincho assustado.

Pois bem, ela conseguiu aguentar por uma longa semana. Na quarta-feira que se seguiu, escapou com seu pote de comida para o doce frescor da vegetação. Recostou tranquilamente contra o tronco mais afastado, onde conseguia ver dentro do ginásio, mas não pelas janelas. Não importava. Nada mais de Hideo, por ora. Se concentraria em desenhar e aproveitar a solidão bem acolhida. Claro que nada a impediu de espiar vez ou outra pelo corredor ou para os aparelhos de musculação, mas não o avistou. Tentou evitar que aquilo não a incomodasse.

Estava rabiscando um esboço colorido quando alguém fez sombra contra o sol.

— Então é aqui que você se esconde. 

Ah, não pode ser.

Congelou. Não figurativamente, mas como se seus pulmões tivessem virado pedras de gelo, porque o ar não circulava mais por seus membros. Todo o sangue concentrado subiu imediatamente para seu rosto, enquanto suas mãos ficavam mais pálidas e mais trêmulas. Deixou o lápis escorregar, caindo na grama fofa. Olhou para cima, apenas para confirmar o dono daquela voz grossa e humorada. Ele estava ali, parado, com a mão nos bolsos e um sorriso largo. Naruko sentia que aquele sorriso poderia aquecer o mundo – isto é, se não estivesse completamente paralisada.

Imediatamente começou a sentir o suor escorrer por sua nuca. Pensou fingir um desmaio – ele nunca cairia naquilo, era uma péssima atriz –. Sua expressão deveria estar hilária, porque ele desfez o riso e franziu a testa, parecendo preocupado. Abriu a boca, mas era óbvio que nenhuma palavra sairia dela. Pensou em sair correndo, mas não iria longe. Tropeçaria nos próprios pés e sairia rolando direto para o pronto socorro. Restou apenas continuar sentada, imóvel como uma estátua, seguindo seus movimentos com os olhos arregalados.

— Por favor, não fuja de novo! – ele se agachou, deixando o rosto na altura de seus olhos, e Naruko sentiu-se presa naquelas pérolas. Não tinha como ir, mesmo que quisesse – Eu só quero conversar. – pediu, com uma careta ridiculamente fofa. Procurando não envergonhar a si mesma mais ainda, limitou-se a assentir devagar, duas vezes, deixando o caderno de lado junto com o estojo – Tudo bem. – acomodou-se virando para ela, com as pernas cruzadas, abraçando os joelhos – Eu achei seu caderno de desenhos naquele dia, e, como você saiu correndo, eu guardei para te entregar. – Naruko instantaneamente deixou o rosto cair, encarando os próprios dedos, deixando o cabelo solto escorrer pelos ombros, como uma meia cortina entre eles – Você desenha muito bem. – repetiu o mesmo daquele dia, e Naruko ponderou se ele poderia estar sendo mesmo sincero. Não conseguia pensar direito com Hideo tão perto – Não fiquei bravo, juro. Até gostei. Tinha alguns ângulos meus muito bons. – arriscou uma brincadeira, mas sua risada solitária morreu no ar. Naruko continuava estática, respirando com dificuldade – É Naruko Uzumaki, né? – esperou por uma resposta que não veio – Bom, só queria dizer que gostei dos desenhos. Se estou atrapalhando, posso ir embora.

Naruko não pensou muito quando sentiu a cabeça inteira virando-se com um estalo, as costas eretas e os punhos apertados. Foi instantâneo, quase instintivo. Não queria que ele fosse embora. Hideo parou de falar quando seu olhar se encontrou com os olhos azuis intensos. Surpreso, ele esperou, sustentando o contato visual. A garota, no entanto, parou, sem dizer nada. Se tentasse, começaria a gaguejar até assustá-lo. Sabia que seu rosto deveria estar bastante vermelho, e Hideo esperava, paciente, impassível. Vamos lá, Naruko, você vai mesmo desperdiçar a única chance que o destino já te deu? Foram dois anos! Ele está do seu lado, sentado, esperando uma resposta. Eu sei que você consegue.

— E-E-E-Eu-

Misericórdia, é o melhor que consegue fazer?

Hideo esperou, com expectativa. A garota respirou fundo, engolindo o bolo e apertando os dedos. Tentou se controlar, mesmo que tremesse mais que vara verde.

— O-O-Obrigada... – o fato de ter saído uma palavra entendível já era motivo de comemoração. Soltou o ar preso, e Hideo exibiu um sorriso estranho, como se ela tivesse dito um discurso inteiro. Era constrangedor.

— Por nada! – ele pareceu mais à vontade, soltando as pernas e apoiando contra os cotovelos – Você desenha há muito tempo? – perguntou, puxando assunto, e Naruko, que já estava surpresa, agora se sentia pasma. Começou a ponderar se não era uma ilusão muito bem feita de sua mente. Ele esperou, sem apressá-la, e, com todo o esforço que conseguiu encontrar em seu eu interior, respondeu:

— D-D-Desde o-os – bufou, apertando os olhos e voltando a abri-los – T-três a-anos. – certo, agora ela queria se bater.

— Uau, isso é incrível! Eu era terrível com desenhos, mesmo com giz de cera. – Hideo agia como se ela não tivesse que repetir cada letra pelo menos duas vezes. Ela não estava entendendo seu propósito com aquilo. Não eram amigos. Mesmo assim, ele ainda não tinha saído correndo. Ela esperou – Tudo bem, eu sei que você não é de falar muito. – sem responder verbalmente, Naruko ergueu a sobrancelha o mais alto que pode, cética, e ele soltou uma sonora gargalhada. Ficou inteiramente satisfeita por ser melhor com expressões do que com frases – Alguma coisa me disse para insistir um pouco mais. Não sei, tem algo em você que é... interessante. – terminou, parecendo analisá-la.

Naruko deixou-se ficar surpresa. Não sabia qual das partes a deixava mais atônita – ainda era difícil assimilar que Hideo Hyuuga estava sentado bem ao seu lado, falando com ela –. Ou o fato de um garoto a achar interessante o suficiente. Ou ele estar insistindo. Naruko não teve muitas pessoas assim em sua vida, e, talvez, fosse por esse motivo que sua personalidade tivesse se desenvolvido tão introspectiva. A timidez repelia, a gagueira afastava e o medo a isolava. Talvez fosse exatamente aquilo. Talvez ela precisasse que alguém insistisse.

Ela esquadrinhou seu rosto. A pele lisa e sem manchas, branca, contrastando com os olhos lilases. Teve vontade de desenhar aquela cena exata, como o sol batia contra seu perfil e deixava-o mais brilhante. O pescoço alvo e longo, os ombros largos e o trapézio sobressalente. Os braços flexionados, as pernas dobradas. O cabelo solto, caindo por seus ombros, e a franja, ligeiramente menor, atrás das orelhas. Hideo era realmente bonito. E, por algum motivo que Naruko genuinamente não entendia, ele queria tentar. E, se ele não tinha fugido ainda, então ela poderia mesmo deixar algumas barreiras cair.

— Go-gosto d-de te ve-ver t-treinar. – claro, não tão rápido. Vermelho até o talo, cruzou os dedos, relaxando um pouco os ombros. A vergonha não desaparecia de uma hora para outra, e suas bochechas não parariam repentinamente de queimar, mas ela já não queria mais sair correndo.

— É impressionante conseguir ver algo daqui. – brincou, apontando para os galhos maiores que tampavam a visão da janela do alto. Naruko não aguentou e soltou uma risada baixa, mantendo o sorriso escondido. Ele retribuiu, e, bem, ela queria muito ter desenhado aquele sorriso.

Foi assim que aconteceu.

Depois daquela tarde, Naruko, sentindo que ia mesmo desmaiar, correu para ligar para Sakumo e contar o que tinha acontecido. Ele riu com cinco minutos ininterruptos e – depois de se recuperar do soco levado – pareceu estar bastante feliz pela amiga. Zombou um pouco, contudo, estava mesmo contente. Elogiou sua coragem por ter se deixado tentar, e deu alguns conselhos para ela não derreter toda vez que se encontravam.

No dia seguinte, ela repetiu o ritual, ficando sob a árvore e vendo-o treinar com outras pessoas alguns golpes de um esporte que não sabia o nome. No entanto, pouco antes das três horas, ele apareceu, com a bolsa a tiracolo e rosto pingando suor. Parou à sua frente, assustando-o.

— Vamos? – chamou, sugestivo, e Naruko, totalmente sem reação, arrumou seu material e se pôs de pé, seguindo-o a uma distância considerável – Eu sei que você mora perto de casa. Nós podemos fazer esse caminho, se você ainda quiser me esperar. É bom ter alguém com quem conversar enquanto ando.

Ele tagarelava, muito. Foi uma das primeiras coisas que ela notou. Era bom, porque compensava o silêncio que se instalaria, se dependesse dela. Assentia muito, fazendo sons com a garganta e expressões com o rosto. Estas eram mais fáceis. Revirar de olhos, sorrisos e olhares de dúvida alimentavam o diálogo quase monologar. Hideo não parecia se importar – estar com ele era ter o céu sempre aberto, com sol. Era confortável.

Se repetiu no outro dia, e no outro, até que, quando Naruko ia para o ginásio almoçar, já esperava pelo momento seguinte, e por suas conversas diários. Falavam de tudo – Hideo falava, na verdade. Ela concordava, e, em raros momentos de inspiração, comentava aos trancos, sobre algo que gostava. Além de comunicativo, Hideo também tinha vários gostos diversificados. Fora o óbvio gosto por esportes e atividades físicas em geral, Naruko descobriu que Hideo gostava muito de desenhos animados e história, colecionando pilhas e mais pilhas de catálogos e enciclopédias dos mais variados temas. Ele não gostava de ser tão alto, e sua cor preferida era o azul petróleo – Naruko se surpreendeu apenas com o fato dele saber diferenciar tons –. Todas essas peculiaridades apenas foram acrescentadas à lista já grande que ela detinha, e, por passar muito tempo quieta, ouvindo, podia observar mais de perto. Afinal, Naruko gostava de observar Hideo.

Ele mexia as fendas do nariz ao falar, ligeiramente. Suas mãos gesticulavam sozinhas, e tinha uma cicatriz em formato de meia lua atrás da orelha. Suas roupas eram caras, feitas a mão, mas ele gostava de dobrá-las nos tornozelos e nos cotovelos, porque a alta-costura incomodava. Seu cabelo era liso e bastante fino, por isso o aspecto de cascata que tanto fascinava-a.

Todas essas pequenas coisas foram descobertas durante dias de conversa. Estava mais para monólogo, mas Hideo não se cansava de ficar parado em seu portão, para continuar determinado assunto ou terminar uma história que tinha começado no caminho. Eles começaram a voltar juntos, e, fielmente, Sakumo esperava em seu quarto, pronto para piadas e fofocas. Cada dia que se passava, Naruko ficava mais intrigada. Ela não era forçada a falar, e, mesmo com o estômago em borboletas, a familiaridade com que tratava o garoto tornava-se maior e mais confortável. Almoçavam as vezes, sob o arvoredo, antes dos treinos. Depois, Naruko continuava observando, e, só as vezes, Hideo acenava entre uma pausa e outra – ela quase sempre retribuía –.

— Eu também tenho uma irmã menor, mas meu contato com o público feminino se restringe basicamente a crianças. Eu sou um desastre – aham, eu acredito muito nisso. A primavera estava chegando ao fim, e mesmo assim Hideo aguentava horas sob o sol para que continuassem conversando. Tantos dias haviam se passado que Naruko sequer ligava mais para a hiperventilacao decorrente da proximodade do garoto de seus poros.

— E Sasuko? – Naruko recebeu um sorriso tão proeminente que ela só foi compreendê-lo mais tarde, refletindo sozinha.

— Sasuko? Ela é minha melhor amiga. – respondeu, descontraído, fazendo Naruko semicerrar os olhos de descrença.

— Não namoram?

— Namorar? – Hideo riu aquela risada que fazia Naruko querer se esconder, de tão contagiante. Não entendeu o bom humor extremo de uma hora para outra – Eu não namoro a Sasuko, isso é humanamente impossível. Ela é impossível. – revirou os olhos – Além disso – pausa – eu estou interessado em outra pessoa. – oh, oh. Ali estava. O sorriso que fazia Naruko se lembrar porque estava apaixonada.

Aquela foi a primeira vez.

Naruko entrou apressadamente em seu quarto, com a feição perdida, e Sakumo já a esperava, jogado no divã. Ela se deitou no tapete, com um semblante quase ridículo, que fez o rosado se perguntar se algo havia acertado sua cabeça.

— Está com cara de idiota. – comentou, esperando por uma resposta atravessada, mas tudo que recebeu foi um acenar sinistro.

— Seria possível Hideo Hyuuga estar interessado em mim? – um minuto. Dois minutos. Sakumo se sentou abruptamente.

— Calma, calma, muita calma. Isso é sério? Ele disse que está interessado em você? – seu tom de voz ergueu algumas oitavas, parecendo ofensivamente duvidoso, mas Naruko sequer conseguia ficar brava, por sua mente viajava milhas dali.

— Foi o que pareceu. – virou-se pela primeira vez, com um sorriso que oscilava entre a descrença e a felicidade extrema.

Sakumo ficou as duas horas seguintes dividindo-se entre monologar animado, e enumerando motivos que confirmavam que aquilo, sim, era possível. Não deixou de se gabar pela ideia de deixar o cabelo solto – aquilo não tinha nada a ver com ele –, mas ele ainda não gostava das calças de moletom laranjas. Não importava. Naruko só conseguia pensar naquele sorriso torto perfeito.

No dia seguinte, estava sentada em seu lugar usual, esperando pelo fim do treino, até que Hideo se materializou ao seu lado, jogando-se cheio de suor e testosterona. Naruko tentou não se deixar afetar, porque era algo que acontecia muito, principalmente quando se distraia. Tampouco escondeu o desenho em seu colo. Mesmo não desenhando os traços faciais, até mesmo um cego saberia dizer de quem eram aquelas omoplatas.

— S-saiu mais cedo. – comentou. Aquilo também vinha acontecendo com frequência. Em uma crise de consciência, percebeu que não era justo que somente Hideo se esforçasse para aquela estranha amizade acontecer. E, ainda que não superasse completamente a timidez, ele não a assustava mais, apenas o sentimento crescente em seu peito.

— Aproveitei que estava distraída. – alfinetou, apoiado contra a árvore. Esperou alguns segundos, em silêncio – Está me desenhando de novo?

— Não seja tão convencido. – murmurou, com um meio sorriso, e o empurrou com os ombros em um impulso de coragem que partia unicamente de seu corpo, enquanto sua mente derretia.

— Naruko. – chamou, e ela desviou os olhos para encará-lo. Doce erro. Seu rosto estava perto, verdadeiramente perto, com as íris peroladas encarando-a intensamente. Em um lapso qualquer, pensou que jamais conseguiria desenhar o fogo daqueles olhos, porque sempre se perdia antes que pudesse gravá-los. Sua boca entreaberta parecia mais vermelha depois do treino – Estive pensando em fazer algo, mas estou com medo da reação de uma pessoa. – nesse momento, o coração de Naruko já falhava todas as batidas possíveis e imagináveis.

— Quem? – sua voz não passava de um sussurro silencioso, e era ainda mais difícil quando recebia lufadas de ar quente tão perto de seu rosto.

— Seu namorado. – o ar da dúvida deve ter transpassado seus olhos, porque ele complementou logo em seguida: – Sakumo. – Naruko realmente não soube de onde veio aquela risada no momento mais inoportuno que poderia existir, mas seus lábios se abriram sozinhos, deixando o riso trêmulo escapar por eles.

— N-nós não somos namorados. – ela nunca tinha visto aquele sorriso antes, mas parte de si ficou preocupada que os cantos de seu rosto rasgassem. Estava tão perto que ela via as pequenas marcas de uma possível barba rala despontando. Nada mais importava.

— Era tudo que eu precisava que você falasse.

Naquela tarde, Naruko tinha observado Hideo, como estava acostumada. Sentada contra o tronco de uma árvore, seu tronco todo estava virado, e o caderno de esboços continuava em suas pernas suspensas, com o estojo do lado. Ela sentia o rosto vermelho, em brasa, as mãos tremelicantes e suadas. O peito palpitando, a mente nublada incapaz de completar um raciocínio decente. Curiosamente, porém, ela não precisou dizer nada para sentir aqueles sintomas.

A partir daquele dia, todas as tardes, pouco antes das três horas, Naruko guardava suas coisas, mas ela não ia embora. Ficava esperando, sentada, porque, quando acabava de observar Hideo Hyuuga, ele vinha em sua direção, sentava-se bem próximo e a fazia sentir como se tivesse dito mil palavras para mil pessoas desconhecidas – e não precisava falar nada.


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Notas finais do capítulo

Não para de acompanhar não que ainda tem um capítulo extra!



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