Chamas Azuis escrita por Caramelo


Capítulo 2
Ira e Lágrimas


Notas iniciais do capítulo

Após os acontecimentos do primeiro capitulo (que está mais para um prólogo), fiquem com o desenrolar da história de Jane e entendam um pouco mais sobre o que aconteceu.



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I

Levanto-me do chão frio de minha cela ainda um pouco tonta do pesadelo.  É sempre o mesmo. Não é bem um pesadelo, mas sim uma lembrança de oito anos atrás. Foi graças a esta fatídica noite que vim parar na "belíssima" cela do Hospital Psiquiátrico de Sword&Katherine. Isto mesmo, cela não quarto.

Depois de ter me jogado do alto do precipício da colina, meu pai atirou-se também para me salvar. Ele me tirou da água enquanto eu me afogava e alternava da lucidez ao delírio. Então me carregou até a praia colocando-me na areia um pouco mais afastada do mar. Lembro-me que quando abri os olhos a primeira coisa que vi foi seu rosto encarando-me, de como ele estava apavorado e ao mesmo tempo aliviado por eu ainda estar viva. Seus olhos de um azul tão claro quanto o céu de verão derramavam cachoeiras de lágrimas, os cabelos dourados quase brancos estavam encharcados pela água salgada e suas roupas de alta costura pareciam estar em frangalhos. Jamais havia imaginado que ele me seguiria ou que pularia do alto da colina apenas para me salvar. Isso não estava nem em meus pensamentos mais loucos e foi por isto que eu falhei.

Aquela noite tinha sido demais para mim. Antes de ter tomado a decisão tirar minha própria vida, eu estava andando pela mansão por volta das dez horas da noite, pois não conseguia dormir e estava a procura de meu pai para me consolar. Lembro-me que estava escuro e quase nenhum castiçal estava aceso, nenhum a não ser os do escritório dele. Eu vestia uma camisola branca de seda com muitos babados, tantos que lembravam um vestido de boneca, estava descalça, pois estava com preguiça de procurar meus sapatos, portanto não fazia barulho ao andar pelos corredores desertos da mansão. Quando me aproximei do escritório percebi que as luzes estevam acesas e a porta entreaberta. Coloquei a mão na porta e, quando estava prestes a abrir, ouvi a voz de minha mãe. O que ela fazia ali a esta hora? Ela detestava este lugar por ser desorganizado e deveras empoeirado. Algo muito estranho estava acontecendo...

Discretamente, comecei a espionar a cena que se desenrolava dentro do cômodo pela fresta da porta. Sentado encima de sua escrivaninha estava meu pai em seu longo casaco cinzento encarando o chão pensativo. Ele era um homem alto e pálido, não era muito forte, porém bastante inteligente. Um charuto aceso estava entre os dedos de sua mão direita, mas ele não o estava fumando. Minha mãe, ao contrario dele, andava de um lado para o outro enquanto roía as unhas de sua mão esquerda. Ela estava usando seu vestido rosa claro que possuía dezenas de camadas de um bordado branco que contrastava perfeitamente com seus longos cabelos prateados presos em um coque alto no topo da cabeça.

— John - dizia ela em tom preocupado -, amanhã será o aniversário de Jane...

Eles estavam falando de mim. Pensei em entrar para surpreende-los, porém algo me impedia de fazê-lo. Talvez o tom de voz dela ou o clima tenso entre os dois. Não sei dizer. O importante é que não tive coragem de interromper e essa foi a pior decisão que já tomei, pois se não tivesse escutado aquilo jamais teria feito o que fiz.

— Eu sei - meu pai respondeu no mesmo tom -, mas o que espera que eu faça?

— Qualquer coisa! - Ela ergueu os braços indignada com as palavras dele. - Você sabe que ela está doente e não faz nada! Ela só fala de mortos e fantasmas e a cada ano piora cada vez mais!

— Mais que inferno! - grita ele abruptamente assustando minha mãe que para imediatamente e o encara - Eu já sei disso! Jane está louca, e daí?

Encolho-me no corredor um pouco assustada também. Nunca havia visto meu pai daquele jeito e não estava gostando do desenrolar da conversa.

— Como "e daí"? - Ela zomba dele irritada. - Estamos falando de uma menina louca! Não posso mais continuar fingindo que nada está acontecendo. Até mesmo os empregados estão começando a comentar sobre a "criança perturbada dos D'Lacy". Imagine só quando a corte descobrir que temos uma menina maluca em nossa casa. Não dá mais para esconder esta criatura aqui.

— Onde está querendo chegar com isto? - Meu pai levanta-se enquanto joga o que restou do charuto no chão e a encara de forma amedrontadora.

— Você sabe muito bem onde quero chegar. - responde ela aproximando-se dele - Vamos acabar logo com isto... Não precisamos viver com esta criança. Pense bem, ela nunca poderá ter uma vida normal, será sempre assombrada por essas alucinações... Ela só serve para manchar a o nome da família.

— Como pode falar assim dela? - O rosto do meu pai se contrai de desgosto e ele se afasta dela caminhando em direção a uma das estandes cheias de papeis. Ele apoia a braço esquerdo em uma prateleira e volta a encarar minha mãe de forma rígida. - Ela só tem sete anos. É uma criança ainda... Como pode falar assim de sua própria filha?

— Aquilo não é mais minha filha - afirma a mulher de rosa com firmeza - Aquela criança me assusta!

— Pense no que está dizendo, droga! - Ele se exalta novamente - Que tipo de mãe fala algo assim sobre sua própria...

— Não ouse repetir que aquela coisa é minha filha! - Grita ela interrompendo-o e caminhando decididamente em sua direção.

— Mas... - Meu pai parece mais decepcionado do que bravo. - Amanhã é seu aniversário de oito anos... O que quer que eu faça?

— Eu não sei. - Ela dá de ombros. - Envenene o bolo, de cianureto para ela beber, a jogue do alto do penhasco da colina... Seja criativo, mas apenas se livre dela.

Coloco minhas mãos na boca para evitar um grito. Minha respiração está pesada. É isto que minha mãe quer? Ela não me ama? Eu a assusto por que vejo fantasmas? Eu devo morrer?

— Você enlouqueceu, Janine? - Meu pai grita com um ódio evidente em seu olhar e minha mãe que estava prestes a tocar seu ombro direito, se afasta rapidamente. - Não vou deixar que faça mal a Jane!

— Não temos escolha! - Ela insiste. - Não podemos interná-la em um manicômio, assim todos vão saber que nossa filha é maluca! Podemos dizer que ela era uma menina fraca que adoeceu e morreu, não podíamos fazer nada para salva-la. Além disso, se a matássemos estaríamos fazendo um favor a ela! Vamos acabar com a dor que ela sente, com o medo. Se isto continuar ela só vai viver uma vida infeliz...

Neste momento afastei-me da porta. Havia lagrimas em meus olhos e meu peito doía sem parar. Eu não podia acreditar no que havia escutado, porém estava certo. Tudo que passava pela minha cabeça eram as palavras frias de minha mãe. E para mim que era apenas uma criança assustada o amor deles era tudo... E se eu não podia ser amada, o que restava? Foi aí que decidi acabar com tudo e a pior noite da minha vida teve inicio.

Mas agora isso já faz muito tempo...

II

Tento não pensar mais no passado enquanto me alongo para tirar as dores de minhas costas por dormir no chão de pedra do Sword&Katherine, ou como todos aqui dentro costumam chamar: S&K. Olho para as paredes lisas e escuras da cela e fico imaginando quando tempo demorará para que a enfermeira venha me buscar para o almoço (que está mais para café da manhã já que é servido às nove horas). Já está de dia. Sei disto apenas porque a cela de no máximo 2 m² tem uma pequena janela no alto quase que encostando no teto. Esta tem grades bem reforçadas para que eu não consiga passar por ali mesmo se quiser. Não é possível ver nada por ela além de um mínimo pedaço de céu, mas ainda consigo ouvir o canto dos pássaros algumas vezes ou o farfalhas das folhas quando venta e isto me tranquiliza um pouco. Não há sequer um móvel aqui. Costumava ter uma cama, porém eu perdi este privilégio por mal comportamento...

De repente ouço as batidas violentas na porta de metal indicando que a enfermeira já chegou. Depois o som das trancas sendo removidas. Então a porta abre revelando o rosto carrancudo da mulher loira e corpulenta de quarenta anos que entra pegando-me pelo braço e me puxando para fora da cela.

— Vamos logo, garota! - diz ela com a voz grossa e rígida. Ela solta meu braço e faz sinal para que eu a siga.

— Bom dia para você também, Grizelda - respondo debochadamente enquanto tento acompanhar seus passos rápidos pelos corredores do S&K que levam até o refeitório.

Ela apenas me ignora e continua a me guiar. Não é que eu não saiba o caminho, ela está aqui apenas para impedir que eu faça outra tentativa de fuga fracassada, pois desde que cheguei aqui tudo o que faço é tentar sair. Eu e Grizelda nunca nos demos bem, mas presumo que não seja pessoal já que ela não se dá bem com ninguém aqui. Ela não gosta que eu a chame pelo primeiro nome, porém o faço apenas para irrita-la.

Enquanto sigo a mulher amargurada observo o cinza nas paredes que já está se descascando há muitos anos. É possível ver os tijolos de algumas delas através do fino reboco e há inclusive buracos em algumas celas. O piso é o mesmo por todo o prédio que é deveras grande. Este lugar parece sempre estar prestes a desabar, mas é claro que ninguém se importa. Nem tudo aqui é assim tão horrível, pelo menos para alguns, para aqueles que se comportam e é claro que não estou entre eles.

Chegamos até o refeitório e Grizelda me manda entrar. Todos os pacientes aqui vestem as mesmas roupas: para os homens uma calça cinza com um casaco longo e surrado na mesma cor, quanto as mulheres, um vestido cinza em um tom mais escuro que cobre apenas até nossos tornozelos com mangas soltas que vão até nossos pulsos e a gola até o pescoço; nos pés ambos usam sapatos de coro marrom e meias compridas até os joelhos. Todos parecem muito iguais, exceto por mim. Graças a aparência bastante característica os D'Lacy eu me destaco em meio a este mar cinzento com meus cabelos encaracolados e prateados que lembram a lua. Desde que vim para cá os mantenho sempre trançados para que não chamem muita atenção, mas obviamente não ajuda muito.  Quando era pequena todos diziam que me parecia muito com minha mãe, mas hoje não sei ao certo já que fazem anos que não me vejo no espelho. Na verdade, acho que isto é bom, pois tenho medo de olhar e ver a imagem dela me encarando de volta.

Caminho até a fila de pessoas que está esperando para ser servida por uma das cozinheiras no balcão que separa a cozinha do refeitório. Grizelda se afasta e junta-se aos outros enfermeiros que circundam o lugar observando os outros pacientes comerem de forma que lembram guardas de prisão mantendo os detentos em ordem. Pego um dos pratos de cerâmica que estão em um pilha conforme a fila avança para perto do balcão. A mulher de cabelos negros a minha frente parece tremer enquanto carrega seu prato. Seu nome é Eleonor, se não me engano.

— Vo... Você está bem? - pergunto receosa.

— S-SIM - ela responde rapidamente um pouco alto demais.

A fila avança mais um pouco e chega sua vez de ser servida. Sei que ela está mentindo, mas antes que eu tenha a chance de dizer mais alguma coisa, suas mãos tremulas deixam o prato escorregar no momento em que a cozinheira serve uma colherada da mistura da panela. O prato bate no chão de pedra tão forte que se quebra no meio e espalha comida por todos os lados. O som estridente chama a atenção de todos e o enfermeiro mais próximo vem até nós.

— M-me des-desculpe... - a mulher responde em pânico.

— Olha o que você fez, sua imunda! - ele fala em tom de ódio - A sala de Correção não foi o suficiente para você? Quer voltar para lá?

— N-Não! - exclama a mulher ainda mais aterrorizada.

O enfermeiro de cabelos negros e nariz achatado a segura pelos cabelos soltos e embaraçados e a joga contra o chão encima dos cacos. Sua mão direita começa a sangrar e presumo que ela tenha se cortado na queda. Seu choro baixo e agudo ecoa pelo refeitório que jaz em silêncio. Todos encaram aquela cena medonha e, como sempre, ninguém interfere.

— Limpe isto! - grita enquanto chuta o estomago dela fazendo-a se contorcer de dor.

Somente quando ele faz isto percebo as finas linhas de sangue nas costas do vestido da mulher. Era por isto que ela estava tremendo. Ela acabou de sair da sala de Correção... O rosto dela está pálido e os lábios em tom lilás, parece que a qualquer segundo ela vai desmaiar. Tenho que fazer alguma coisa! Esta mulher já sofreu demais.

— PARE! - grito com todas as forças - Não vê que a está matando? Por favor, pare!

— Cale a boca! - ele ordena sem nem mesmo olhar para mim enquanto continua a espancar a coitada indefesa. - Isto é uma lição para todos vocês! Se comportem ou terão que pagar!

Não posso deixar isto continuar! Já vi cenas como está acontecerem aqui, porém nada tão brutal quanto isto. Ele vai mata-la! Tenho certeza.

— Ela já aprendeu a lição! - insisto - Por favor...

Ele apenas me ignora e se prepara para acertar mais um golpe, porém eu o impeço. Seguro fortemente o prato em minhas mãos e o atiro em direção a cabeça do homem sádico. Ao se chocar contra ela, deixa um corte profundo logo acima do olho esquerdo. O sangue começa a escorrer e a manchar ainda mais o piso já encharcado com o sangue da mulher flagelada. O prato que atirei cai no chão e, ao contrario do de Eleonor, se estilhaça em dezenas de pedaços que voam para todos o lados. Todos, inclusive eu mesma, ficam chocados com minha atitude. O grande homem que surrava a mulher, agora quase inconsciente, volta sua atenção e raiva para mim. Só então percebo a estupidez do que fiz.

 

III

— Eu sinto muito! - respondo imediatamente ao homem cheio de ódio que se aproxima de mim freneticamente.

— Eu vou matar você, sua puta maldita! - o enfermeiro grita enquanto disfere seu primeiro golpe contra mim.

Fecho os olhos poucos segundos antes de seu punho acertar meus lábios no canto direito tão violentamente que sou jogada contra o balcão e bato com as costas na parte de madeira. Seguro um grito enquanto me encolho tentando me proteger o máximo possível do próximo golpe, mas é inútil.

— Quem você pensa que é? - ele vocifera enquanto agarra minha trança e me força a encara-lo - Aqui você não é ninguém! Todos vocês não passam de ratos dementes!

Ele acerta meu estomago com um soco, logo em seguida meu peito e depois meu rosto. De novo e de novo. Sinto como se estivesse quebrando de dentro para fora. Quero chorar, quero gritar, mas não posso. Não vou dar este gostinho a ele. Esta não é a primeira vez que sou espancada aqui e duvido muito que será a última. Como ele disse: aqui eu não sou ninguém. E isto não se aplica apenas a mim. Todos que vivem aqui, incluindo os funcionários, são a escória, o lixo que a sociedade quer que seja descartado. Este manicômio não é como os outros. Não há visitas de parentes, quartos confortáveis ou cuidados médicos. O S&K existe apenas para prender aquelas pessoas que não deveriam estar vivas. Pessoas como eu. A pequena Jane Marie D'Lacy já está morta para as pessoas fora daqui. Para eles eu morri naquela noite em que me joguei do penhasco.

Os golpes furiosos do enfermeiro continuam até que eu não tenha mais forças para me manter de pé. Ele solta minha trança, agora quase que desfeita, e me deixa cair no chão. Tento inutilmente me levantar, mas meu corpo dói tanto que mal consigo me mover. Me preparo para receber os chutes dele em minhas costelas, porém alguém o impede de continuar.

— Já basta, Hector. - Ouço a voz de Grizelda se pronunciando. Ela fala calmamente enquanto caminha até nós. - Deixe estas duas comigo agora. Vá limpar este sangue em sua cabeça e tratar de seus ferimentos.

— MAS... - O enfermeiro tenta protestar, mas é interrompido pela loira.

— Elas já aprenderam a lição - continua Grizelda -, deixe que os Repressores se encarreguem do resto.

— Sim, senhora - responde ele um pouco relutante, porém a obedece e deixa o refeitório rapidamente.

— Vocês dois - ela aponta para dois enfermeiros próximos -, me ajudem com essas duas. O resto de vocês volte a comer o show acabou.

Todos a obedecem imediatamente, afinal ela não é só uma simples enfermeira.  Grizelda Askarce é a diretora da ala de contenção máxima do S&K. Da ala onde estamos agora, onde estou presa desde os oito anos.

Os dois homens aproximam-se e cada um deles ajuda uma de nós a levantar do chão. Um deles me segura em seus braços e me ergue quando percebe que não consigo ficar de pé. Meu corpo inteiro dói e sinto sangue escorrendo pelos meus lábios e nariz. As mechas do meu cabelo que soltaram da trança caem levemente sobre meu rosto e ficam grudentas ao terem contato com o sangue fresco. Eu me sinto fraca e tonta como se fosse desmaiar a qualquer segundo, mas não posso fazer isso. Eu preciso ser forte, tenho que aguentar, pois as pessoas fracas não sobrevivem neste lugar.

— O que devemos fazer com elas? - pergunta um dos enfermeiros.

— Elas quebraram as regras, precisam ser disciplinadas - responde Grizelda ainda em seu tom tranquilo, porém ríspido -, levem-nas para a sala de Correção.


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Notas finais do capítulo

Este foi o segundo capitulo de Chamas Azuis espero que tenham gostado.

Fiquem a vontade para deixar criticas e sugestões.

Obrigada por lerem. S2



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