Chamas Azuis escrita por Caramelo


Capítulo 1
Parte 1 - Frio, Escuro e Tranquilo...


Notas iniciais do capítulo

Bem vindos ao primeiro capitulo de Chamas Azuis. Estou um pouco nervosa com a suas reações: se vão gostar, se não vão (espero que sim)... Sem mais delongas deixo vocês nas mãos da pequena Jane:



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O grande relógio de pendulo começa a soar no hall de entrada da mansão D'Lacy. O som ecoa por todos os lados como se nunca houvesse fim de forma amedrontadora. Esta tudo tão quieto e sem vida que se não fossem as badaladas poder-se-ia dizer que a mansão estava abandonada. Mas é claro que não estava. A "Magnifica  Mansão D'Lacy" jamais estava vazia mesmo quando não havia uma alma viva em suas salas, até mesmo nestes momentos algo sempre estava há vagar pelos corredores, algo que nenhum ser humano poderia ver mesmo se quisesse, exceto por mim. 

Enquanto desço a longa escadaria em formato de "S" observo atentamente cada detalhe e tento guarda-los em minha memoria, pois esta será provavelmente a ultima vez que desço estas escadas. Não há velas acenas nos castiçais ou no belíssimo lustre de cristais que pende do teto logo acima de mim. A única iluminação vem das janelas que dão para o jardim de rosas brancas na frente da mansão. A luz azulada da lua ilumina o ambiente prateado de forma que lembra o oceano.

Está frio. Sinto como se fosse congelar a cada passo descalço que dou no piso de mármore. A camisola branca com babados que visto também não ajuda muito para me aquecer. A cada sopro uma tênue nuvem de fumaça emana da minha boca. Sei que deveria ter me preparado melhor, mas foi preciso, pois não posso perder tempo, preciso sair daqui antes que alguém acorde e tente me impedir. Eu não posso mais aguentar... Sinto como se meu coração fosse sair pela boca. Estou com medo. Tento me manter tranquila, mas estou com medo. As vozes, as imagens, os rostos... Eles estão na minha cabeça, me assustando, me enlouquecendo e nunca vão embora.

Após descer a longa escadaria, dirijo-me à porta. Coloco as mãos na maçaneta e respiro fundo: é agora.

Giro-a rapidamente antes que desista e abro a porta abruptamente. O vento cortante do outono invade o hall e faz até mesmo com que o grande lustre balance suavemente de forma que posso ouvir o barulho dos cristais se batendo levemente. Vejo o labiríntico jardim a minha frente com as rosas brilhando em comparação ao verde escuro das folhas. Elas estão murchas e quase que despedaçadas, mas ainda as acho extremamente belas. As sombras e os seres noturnos parecem dançar enquanto vagam pelo jardim. Seria uma cena digna de pintura se não fossem seus rostos mortificados e suas vestes ensanguentadas. Tento não olhar diretamente para elas, pois elas gostam de serem vistas e ouvidas como sussurros doentios.

De repente passos começam a ecoar pelo hall. Não consigo discernir de onde vêm. Viro-me para olhar para trás ainda na soleira da porta e deparo-me com o rosto cinzento de um homem a me encarar. Grito imediatamente e caio para trás com o susto. O homem cinzento abaixa-se ainda me encarando com olhos mortos. Em seu pescoço há um corte por onde goteja algo gosmento que presumo que um dia tenha sido sangue. Rastejo para trás em pânico tentando não chorar. Os passos que ouvi antes continuam a se aproximar e obviamente não vinham do homem morto. Sinto os olhares dos outros espíritos do jardim focando em nós. Em menos de um segundo todos estão em cima de mim sussurrando palavras ininteligíveis. O sangue deles começa a pingar em minha camisola me deixando ainda mais apavorada. Estou cercada. O som horrível de suas vozes perdura em minha mente e tento tapar meus ouvidos. O sangue negro escorre por entre meus dedos e o horror toma conta de mim. Quero gritar e correr, mas não consigo. Neste momento uma voz ecoa pelo hall:

— Senhorita Jane! - grita uma mulher.

Imediatamente todas aquelas imagens desaparecem. Até mesmo o sangue que caiu em mim já não existe mais. Ainda atordoada olho para o alto da escada e vejo uma de minhas camareiras a me encarar. A ruiva segura uma vela em suas mãos o que destaca ainda mais sua cara de preocupação. Eu sei o que ela pensa, o que todos pensam, sobre a criança da mansão D'Lacy. Acham que sou maluca ou paranoica, uma criança perturbada. Já os ouvi conversarem pelos corredores. É por isso que os odeio.

— O que faz aí? - continua ela sem a menor cordialidade enquanto desce as escadas - Volte já para o seu quarto! Se o Sr. D'Lacy a vir...

— NÃO! - grito enquanto levanto-me e a camareira se assusta com tal atitude - Fique longe de mim!

Dito isto, começo a correr jardim a dentro. Ainda consigo ouvi-la gritar meu nome inutilmente enquanto passo por entre as roseiras para cortar caminho até o portão. Sinto os espinhos arranhando-me e meus pés descalços cortarem nas solas . As flores que restavam agora jazem no chão despedaçadas e amassadas deixando um rastro nítido por onde passo.

As imagens dos mortos começam a voltar conforme eu avanço e tentam me segurar, empurrar e me fazer tropeçar pelo caminho. O terror não para, o medo não cessa. Preciso continuar! Preciso dar um fim nisto...

EU NÃO AGUENTO MAIS!

Ao chegar no portão os fantasmas começam a me encurralar e balanço as grades em desespero tentando abrir, mas é claro que está trancado. Com lagrimas nos olhos tento me controlar e começo a escala-lo para fugir das figuras horríveis que me cercam por todos os lados e se acumulam ao meu redor. Quando encontro o topo do portão dou uma ultima olhada para a mansão e vejo luzes se movendo no interior iluminando as janelas escuras. Provavelmente a camareira está acordando todos e informando sobre minha fuga.

Um pouco tremula apreso-me a passar para o outro lado, porém, ao fazer isto, minhas mãos escorregam das grades úmidas pelo sereno noturno. A queda não é longa, porém foi o suficiente para que me fizesse bater violentamente com as costas no chão. Mordo os lábios para não gritar enquanto respiro lentamente para não chorar. Levanto devagar enquanto tento limpar precariamente a terra úmida que grudou na camisola. Sinto minhas costas arderem perto dos ombros e presumo que tenha me arranhado, porém não tenho tempo para ficar me lamentando. Em breve um grupo de busca virá me procurar por isso tenho que sair daqui o mais rápido possível.

Recomponho-me da melhor forma que posso e tento não pensar nas almas pútridas que continuam a me seguir. Elas passam através das barras do portão como se elas nem existissem. Os rostos inexpressivos encaram-me enquanto se aproximam mais e mais e então os sussurros voltam para me atormentar. São cada vez mais intensos. Fecho os olhos segurando as lágrimas.

Ignore. Não pense. Não chore.

Abro os olhos e encaro a floresta alaranjada a minha frente. Ela está vazia. Não há mais nada ao meu redor. Os mortos se foram, os sussurros cessaram, porém o medo ainda não se foi. Respiro fundo antes de voltar a correr em direção as árvores altas e esguias.

Corro o mais rápido que posso por entre os galhos sem me importar se me arranham ou rasgam a camisola. As folhas cor de caramelo soltam dos galhos e caem logo acima de mim grudando em meus cabelos prateados que estão soltos e bagunçado devido à fuga improvisada. Meus pés doem como nunca doeram antes e a cada passo sinto como se houvessem agulhas me espetando. Mas está tudo bem, logo isso tudo vai acabar.

Vejo a clareira que leva ao penhasco da colina onde o terreno da Mansão se localiza. A floresta se abre conforme avanço como se soubesse exatamente o que quero. Abro um sorriso aliviada por apenas um instante, porém isto dura pouco, pois assim que chego na clareira ouço o galopar dos cavalos atrás de mim. Não demora muito para que gritos chamando meu nome também possam ser escutados. O grupo a minha procura se aproxima cada vez mais, preciso agir logo.

O penhasco esta logo a minha frente, já posso até mesmo ouvir o som do oceano batendo contra as pedras lá debaixo. Alcanço sua beirada no mesmo instante que o comboio chega a clareira.

— JANE! - ouço a voz familiar de meu pai a me chamar.

Viro-me para encara-lo. Ele desce de seu cavalo negro sem tirar os olhos de mim enquanto faz sinal para que seus homens não interfiram. Seus cabelos de um dourado quase branco parecem brilhar iluminados pela lua cheia desta noite e parecem destoar de seu rosto assustado. Por que ele está aqui? Não queria que ele visse isso, não era para acontecer deste jeito. 

— Querida - ele começa aproximando-se cautelosamente -, venha para cá...

— Não se aproxime! - ordeno interrompendo-o abruptamente.

Ele para no mesmo instante. Consigo ver a tensão de seus músculos e o olhar apavorado estampado em seus olhos azuis.

— Está bem - continua ele -, eu vou ficar aqui, mas quero que em troca você venha para cá. Certo, pequena?

— Eu... Eu não posso - respondo com a voz tremula quase que engasgando para não chorar, porém as lágrimas são inevitáveis - Você não entende... Mamãe está certa... Eles nunca vão me deixar em paz... Eu só tenho uma escolha... 

Dito isto, o desespero em seu rosto tornasse terror. Ele sabe o que isto quer dizer, o porquê de eu estar aqui na borda do penhasco a meia noite de hoje... Hoje é meu oitavo aniversário. Pessoas normais teriam uma festa, presentes... Mas não eu. Cada aniversário é pior que o anterior e tudo por causa deles. Dos fantasmas... A cada ano eles ficam mais próximos de mim. Suas vozes mais altas, suas imagens mais nítidas e seus toques mais físicos. Por isto estou aqui. Para acabar com esta sina antes que ela acabe comigo.

Os outros homens começam a se agitar, porém ninguém avança. Ninguém exceto as formas cadavéricas que começam a surgir por entre eles. Os rostos cinzentos recém saídos da floresta aproximam-se em passos lentos e suaves, é como se estivessem flutuando até mim. Desta vez são tantos que mal consigo discernir suas formas que misturam-se a medida que se aproximam.

— Minha princesa - o tom de pânico é nítido em suas palavras -, eles não existem! Estão apenas em sua imaginação. Por favor, filha, venha para cá... Eu não posso perder você...

Ele abre os braços chamando-me para um abraço, um conforto, porém as formas que se aproximam de mim me apavoram demais e não consigo avançar um passo em sua direção. Estou com medo. Não posso viver assim. Não quero viver assim!

— Como pode dizer isso? - pergunto gritando em desespero - Eles estão na sua frente! Veja, por favor , veja! Eu estou implorando...

Encaro-o esperando uma confirmação, desejando. Se ele ver também talvez isso não precise acabar assim, talvez possamos enfrentar juntos, talvez eu não esteja louca. Talvez, talvez... Mas nem todas as histórias tem um final feliz.

— Filha - suplica ele uma última vez -, não há nada.

Estas palavras soam como facadas. Esta era minha última redenção, minha última esperança. As lágrimas param de escorrer de meus olhos enquanto percebo que não há como evitar mais. Ninguém jamais acreditará em mim, pois só eu posso vê-los. Nem mesmo meu pai acredita...

Os mortos agora estão quase encima de mim e seus sussurros começam novamente a invadir minha cabeça, porém, desta vez, as palavras estão claras. Todos dizem apenas uma coisa: Pule.

— É... - digo calmamente enquanto as mãos frias tocam meu peito inclinando-me suavemente para trás em direção ao precipício - Agora não há mais nada.

Dito isto, todas as formas desaparecem e finalmente meu corpo desliza oceano abaixo. A última coisa que vejo é a imagem de meu pai tentando inutilmente me alcançar enquanto grita algo que jamais saberei. Então esta cena é substituída enquanto caio pelo céu negro noturno coberto por milhões de estrelas que brilham sem cessar, certamente a visão mais linda que já vi. Por um instante, tudo parece ter desaparecido, toda dor, toda tristeza e pela primeira vez em minha vida não sinto medo.

A pressão do vento logo é substituída pelo choque contra a água. Meu corpo quase imóvel começa a afundar aos poucos na imensidão escura e então ouço um barulho abafado como outra coisa batendo violentamente contra a superfície. A água salgada começa a entrar em minha boca. Não consigo respirar. Apenas sou levada cada vez mais para baixo... Tudo é frio, escuro e tranquilo. Fecho os olhos.

Sinto algo me agarrando como estivesse sendo carregada. Talvez a correnteza? Então meu corpo parece imergir da água. Estou muito fraca. Não consigo entender o que está acontecendo. De repente meu corpo encontra algo que parece areia. A água salgada arde em meus pulmões e não consigo me mover. Está tudo tão confuso... Ouço as ondas colidindo umas as outras um pouco distantes. Algo está pressionando meu peito...

Levanto-me rapidamente enquanto a água sobe até ser expelida pela minha boca. Cuspo misturas de bile e sal enquanto engasgo tentando recuperar o folego. A primeira coisa que vejo ao abrir meus olhos é a imagem ensopada de meu pai encarando-me aliviado e um pouco ao longe o mar encontrando a praia. 

Então eu acordo.


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Notas finais do capítulo

Então, o que acharam? Deixem comentários se quiserem, isso muito importante para mim.



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