Oblivion escrita por Camélia Bardon


Capítulo 9
Capítulo oito, ano dois


Notas iniciais do capítulo

Hoje temos uma explicação mais estendida do capítulo anterior. Consegui voltar a tempo esse mês. Deixei para o meio das mini-drabbles esse mês, senão ia ficar louca xD



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O primeiro dia de trabalho estava rendendo mais do que o esperado. As meninas eram incríveis, e eu não tinha do que reclamar. 

Muita coisa tinha mudado desde o último ano. Começando pelo fato de que havia transitado por um punhado de psiquiatras, mas sobre isso já contei. Podemos pular para a parte interessante onde eu saio da lanchonete na estrada de Cedar Valley e retorno para Austin.

Pois bem. Depois do desaparecimento d’O Garoto, as coisas desandaram. Eu não poderia focar em meus problemas quando dei lugar a outros piores. Em julho, tivemos uma ocorrência de assédio com Marla. Vendo que o sr. Jenkins não dava a mínima (deixando bem claro que não disponibilizaria as gravações e não tomaria partido em testemunhar) pois pensava que acabaria com a própria carreira, tivemos de tomar medidas drásticas. Resgatamos as gravações depois da lanchonete fechar.

O previsível? Fizemos a denúncia. O imprevisível? Fecharam o lugar por negligência da gerência. Marla e Joelle deram de ombros e com a experiência que tinham foram procurar outra coisa. Quanto a mim, também. Mas do meu jeito.

Encontrei May Thomas sem querer. Sempre fico resfriada no final do inverno, e sempre vou para o hospital ouvir a mesma baboseira de sempre. É uma rotina miserável, eu sei, mas o que posso fazer? De qualquer maneira, esse ano fiz a triagem com ela. Não sei que mania é essa de humanos sentirem-se confortáveis para se abrirem com desconhecidos, mas foi o que aconteceu. Contei como cheguei ali, e ela se compadeceu.

— Você sabe que, à essa altura do campeonato, até trabalho voluntário estou aceitando? — brinquei, assoando o nariz.

— Fala sério? — ela ergueu uma sobrancelha.

— Falo… por quê?

— Olhe, eu… estava realmente precisando de uma babá para minhas filhas. E você parece ser uma boa menina. Me afeiçoei a você. Você trabalha no ramo?

— Eu… sim, senhora. Qual é o caso?

Então ela me contou toda a história. Três crianças. A mais velha, de 13, a do meio de 7 e a mais nova com quase 2. Eis aqui a descrição literal: “dê um livro a Aimee, ouça Maddie e quanto a Daisy-Lynn… só não dê mamão a ela ou ela vai chorar por um dia inteiro”. 

Maisie Thomas era dedicada. Ir atrás de uma babá para que o filho pudesse estudar era digno de toda minha admiração. E ter criado dois filhos sozinha! É claro que aceitei. Eu não precisava de dinheiro. E… não sei. Algo me impeliu a ir em frente. A voz da minha consciência, talvez. Conheci as meninas antes, porque May queria ter certeza de que elas não seriam cuidadas por uma estranha por completo.

Mas então eu conheci o tal Adrien. Tinha algo nele tão familiar, eu só não sabia o que. Por outro lado, o jeito que ele me olhou foi indescritível. Um misto de hostilidade e curiosidade, quem sabe? Não consegui evitar de me sentir deslocada. Quer dizer, era meu primeiro dia. Se eu tivesse cometido algum deslize, adoraria ser informada para que pudesse resolvê-lo.

— Lou, a sra. Mason disse que vou precisar de cartolina e tinta guache pra aula de amanhã — a voz de Madeline me desperta do torpor. Solto um pigarro e indico com a cabeça para ela continuar. — Eu esqueci, será que você pode comprar e eu te reembolso do meu cofrinho depois?

— Ora, ora, a garota é empreendedora — eu rio, me deleitando com a cabeça criativa de uma criança. — Pode deixar, Maddie. Mas não precisa me reembolsar, é baratinho.

Ajusto o espelho retrovisor para observar ela abrir um sorriso banguela.

— Valeu, Lou!

Deixo-a primeiro, e depois Aimee, mas com o mesmo pedido de não saírem da escola até eu chegar para buscá-las. Ou no máximo um dos irmãos delas. Com um suspiro, volto para o lar dos Thomas-Abbott com muito menos empolgação do que quando tinha o deixado. 

É com medo que abro a porta e encontro o garoto parado exatamente na mesma posição que o deixei, com exceção de que agora Daisy-Lynn tinha assumido seu lugar no colo do irmão, quieta como se entendesse a singularidade do momento.

Daisy-Lynn tem os mesmos cabelos castanhos do pai (cujo qual nunca havia visto, mas era o que May tinha me contado) e os olhos azuis reluzentes da mãe. Já Adrien ostentava uma linda pele cor de mel, cabelos cacheados quase pretos, e os olhos do mesmo tom. Toda sua aparência me exalava conforto. Mesmo quando ele volta o olhar para mim, com nítida antipatia.

— Já está de volta — comenta ele, mais para si próprio do para mim.

— Sim. Está com fome?

E, é claro, eu tinha que falar com ele como se fosse outra criança. Quase solto uma gargalhada com meu deslize. Por sorte, ele não repara e apenas nega com a cabeça. 

— Daisy já tomou café?

— Ainda não. Eu não… reparei nela, me desculpe.

Ergo uma sobrancelha, estendendo os braços para alcançá-la. Em resposta, ela se agarra a mim, como quem diz “cuide de mim, ele teve o ultraje de dizer que não reparou em mim!”. Sorrio para ela e Adrien volta a dizer:

— Por favor, não me considere um péssimo irmão. Eu só estava com a cabeça em outro lugar.

— Com o trabalho? Ou a faculdade?

— Talvez ambos?

Não me parece sincero. Dou de ombros para mim mesma e abro o armário de mantimentos para preparar o segundo café da manhã. Mesmo com ele dizendo que não estava com fome, me viro com o bule de café e entrego duas bananas na mão de Daisy, que solta um gritinho animado.

— Vamos amassá-las com gosto — instigo, e devo dizer que depois dessa o Hulk se sentiria orgulhoso de sua pupila.

— Eu sinto que te conheço de algum lugar — continua Adrien, e eu já não tenho mais certeza de que ele esteja pleno de consciência. — Você não?

Enquanto a água para o café ferve, atrelo Daisy-Lynn na cadeirinha. Ela bate com uma banana, ao passo que corto a outra em rodelas pacientemente. 

— Sim e não — falo depois de algum tempo. — Sim por ter a mesma sensação, mas… não por saber que nunca o vi na vida. Eu me lembraria.

— É claro. Eu devo ter me confundido. Desculpe. Acho que a pessoa que eu pensava tinha cabelo comprido.

Só? Sem insistência? 

Certo, eu cortei o cabelo acima do ombro esse ano. Mas só pode ser coincidência. Tem que ser. Eu não sou doida. Já repeti isso tantas vezes que perdi a conta.

Vendo que eu não lidaria com as bananas e o café simultaneamente, ele alcança a tigela do café da manhã da irmã, pondo-se a cortar a outra banana e praticamente voou para amassar as duas. Dou de ombros e procuro o café no armário, medindo a quantidade para a água e o bule.

— Devo estar parecendo um lunático, não é?

— Só um pouco — admito, sentindo o peso dos ombros aliviar um pouco. — Mas é como diz o clichê. As melhores pessoas são assim, não era isso?

— Isso foi o Chapeleiro Maluco quem disse. Eu adoraria ouvir a opinião da Louna Benoit.

Engulo em seco, adoçando o café.

— Não me lembro de ter mencionado meu sobrenome.

Adrien permanece impassível, ainda insistindo em ouvir qualquer outra frase que não fosse uma pronta ou tirada de um conto. Escolho as palavras com cuidado dessa vez.

— Eu não acho que seja um lunático. Mas o que acho é que você, por algum motivo, tem algum impasse comigo. E não gosto de quando não sei o que as pessoas tem contra mim. Se me nega comunicação, também nega o direito de reparação. Você me entende?

— Faz sentido. Mas garanto que não tenho nada contra você. Afinal, eu acabei de conhecê-la. Não tenho motivos. Certo?

Quase assovio de alívio novamente. No entanto, consigo me conter.

— Obrigada. Podemos começar de novo, então?

O sorriso que ele abre é diferente dos anteriores. Pulou a fase melancólica e agora indicava talvez frivolidade. Eu avaliaria depois. Por enquanto, me concentro em sua mão sendo estendida em direção à minha. Que rústico. Não tendo outra opção, eu a aperto como uma boa texana.

— Podemos. Como fez o café?

— Forte e doce — respondo, no automático.

Ele sorri, soltando a mão e indo cheirar o café.

— Forte e doce. Boa escolha.

 

Depois de tomar café, ficamos os dois (e mais o notebook) brincando com Daisy-Lynn na sala de estar. Mesmo que soubesse a história, escutei-o contar novamente sobre a oportunidade de entrar numa universidade. Adrien ia me contando que já havia entrado em contato com o reitor, e que este ainda retinha a vaga de sete anos atrás. Isso significava que ou Adrien era mesmo brilhante ou muito querido. Ou ambos. É quase palpável, visto como é amoroso com a irmã e gentil comigo.

A nuvem de estranheza inicial passou sobre nós como uma chuva de verão. Logo estávamos conversando como se nos conhecêssemos há mais tempo do que realmente era. Me senti confortável para contar sobre o café, já que amanhã ele poderia não estar mais em casa para conversar comigo liberalmente. No entanto, o poupei sobre o tópico “minha loucura”. Ninguém precisava saber disso.

— Nunca pensou em estudar? — pergunta ele, casualmente.

— Até já pensei, para ser sincera. Mas nunca nada me fez sentir o amor que você tem pela astronomia. E, se não for para entrar de cabeça…

— Seria perda de tempo. Totalmente compreensível.

Voltei meu olhar para ele, franzindo a testa.

— Parece que conheço você a anos, sabia?

— É — ele sorri, brincando com o elástico de cabelo. — Acho que eu tenho uma cara muito amigável. Não sei o porquê, mas todo mundo se sente confortável para falar de qualquer coisa comigo.

Não evito a risada. Não estava esperando algo do gênero. Mas então reparo o duplo sentido da frase e gaguejo:

— Desculpa, não queria te encher com isso…

— Não! Não foi uma crítica. Foi um comentário à toa. Pode falar o que quiser.

Assinto com a cabeça, desviando o olhar.

— É que… estou tão acostumada a censuras que, quando elas não vêm… é estranho. Entende?

— Se dissesse que entendo, estaria mentindo — Adrien me encara, o olhar curioso. Pelo que entendi, disse algo novo para ele. — Família?

— É… família.

Noto estar divagando, então checo as horas, como de praxe. Agradeço silenciosamente por estar bem próximo do horário de buscar as meninas. Em seguida, Daisy-Lynn cambaleia até nós, com seus passinhos curtos e sorriso banguela. Não consigo evitar um sorriso junto ao dela, e nem seu irmão.

Fico pensando se algum dia terei filhos. É a primeira vez que tenho contato tão próximo com alguma criança e, por incrível que pareça, estou amando. É claro que não sou a May. Não os vi crescer. Mas é impossível passar tanto tempo com crianças tão incríveis e não sair com pelo menos o coração mais quentinho.

— Quer ir comigo buscar as meninas? — convido.

— Eu adoraria. Mas estamos saindo mais cedo, é de intenção?

— Ah, é. Madeline me pediu cartolina e tinta guache… 

Ele fez que sim com a cabeça, jogando a cabeça para trás para soltar uma gargalhada sincera. 

— Isso que ela te pediu com antecedência. O dia que ela te pedir faltando cinco minutos você vai ver o que é correria.

— Ah! Me sinto muito mais tranquila agora, muito obrigada!

Após pegar Daisy-Lynn no colo e levar a louça para a pia, ele atira a chave d’O Carro em minha direção. Seu sorriso malicioso me parece terrivelmente atraente.

— Mil perdões, mas… essa casa tem de tudo, menos tranquilidade.

Ergo uma sobrancelha, identificando o tom de desafio implícito em sua voz.

— Que bom, porque eu sempre gostei de uma confusão.


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Notas finais do capítulo

E aí, que que cês acham que rola no Dia do Amor ao Desconhecido de 2017?
Até mais ♡



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