Chamas Negras escrita por Benuzinha


Capítulo 8
Coração dividido




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Aos primeiros raios de sol do dia seguinte, Elisa foi acordada por alguém batendo na porta. Ainda sonolenta, ela se levantou, vestiu a túnica meio de qualquer jeito e foi atender a visita inesperada.

Uma pessoa vestida com um manto negro, com o rosto coberto por um capuz, a esperava do outro lado e Elisa sentiu um frio na espinha.

— Bom dia. Você é Elisa, não é?

— Sou eu mesma.

— Que bom.

A estranha figura baixou o capuz e Elisa viu que uma máscara cobria seu rosto.

— Sou Altair, amazona de Águia, o senhor Regulus me pediu para investigar sobre o paradeiro de seus amigos. – a mulher fez uma pequena pausa e continuou – Eu estou vigiando a cidade de Rodorio, para o caso de haver o um novo ataque.

— Ah, claro – o alívio a tomou e ela deu um passo para o lado. –Não quer entrar?

— Não, não posso perder tempo. Preciso me apresentar ao senhor Sísifo antes de retornar.

—Entendo. – Elisa a fitou, esperando.

— Seu amigo Thorgan está em Rodorio. Ele mandou uma carta – a mulher entregou a folha de papel dobrada para Elisa. –Infelizmente, do seu outro amigo não tenho notícias, presumo que esteja morto.

— Andrew... – Elisa olhou para a carta em suas mãos, impactada com as duras palavras da amazona.

— Isso foi tudo que pude conseguir. – Altair meneou a cabeça – Sinto muito.

A mulher se afastou e Elisa pensou que ela deveria estar acostumada a lidar com situações de morte como aquela, a julgar pela maneira que falara, praticamente sem emoção. Andrew estava com ela no dia do desabamento da hospedaria. Ainda podia lembrar da expressão em seu rosto enquanto ele tentava avisá-la do perigo.

A culpa por tê-lo levado para aquele lugar a consumiu. Ele não tinha completado 19 anos ainda, tinha tanta vida pela frente. Andrew, com seus cabelos compridos e louros, sempre amarrados com uma faixa de couro e o nariz torto após ter sido quebrado numa briga de taverna.O pesar a envolveu como uma nuvem pesada e o som de uma pessoa chorando muito cortou seu coração. Foi apenas quando um soluço sacudiu seus próprios ombros que ela percebeu que o choro vinha dela mesma. Aquele choro doído era por Andrew, pelos cavaleiros mortos, pela saudade que sentia de casa.

Até aquele momento ela tivera esperança de reencontrar os dois companheiros e, depois que aquela guerra acabasse, os três voltariam para casa e aquela história tão terrível se tornaria apenas uma lembrança distante e fantástica de sua viagem à Grécia. Agora, ela já nem sabia mais se o mundo ainda seria o mesmo, ou se ela e Thorgan sobreviveriam. Foi só depois de alguns minutos que Elisa conseguiu se controlar e finalmente ler a carta.

“Estimada Elisa,

Espero que esteja bem. Voltei há alguns dias de Atenas e descobri que Gaius foi destruída. Um morador de Rodorio me encontrou na estrada e me trouxe para cá. Fico muito feliz de saber que está viva. Estarei esperando por você aqui.Essa mulher chamada Altair me disse que não posso ir até onde você está e que você talvez não possa sair daí até essa guerra terminar. Infelizmente, não tive notícias do Andy. Cuide-se.

Do seu servo,

Thorgan.”

Aquela era definitivamente a letra de Thorgan.Estava mais bagunçada que o normal, o que significava que ele escrevera com pressa, decerto a amazona não lhe dera muito tempo. Ao ler aquilo, Elisa decidiu que falaria com Regulus e pediria a ele que a deixasse ficar em Rodorio. Se pensasse friamente, não havia nada que a prendesse ao Santuário, no máximo o hospital de Konstantinos. E ali, no recanto de Atena, no meio daquela guerra, ela muitas vezes se sentia realmente uma intrusa.

No entanto, meia hora mais tarde, à medida que se aproximava do único hospital do Santuário, outra preocupação a tomava. Era a primeira vez que veria Petros desde o encontro na noite anterior. E se ele decidisse acusá-la na frente de todos por sair à noite do Santuário para se encontrar com um espectro?

Assim que entrou, Melina a saudou como de costume, Konstantinos meneou a cabeça como sempre fazia e Petros...

Curiosamente, o colega de nariz avantajado e olhos castanhos não estava lá.

— Que bom que chegou cedo, Elisa. Petros pediu dispensa hoje. – Konstantinos praticamente a empurrou para a cozinha – Prepare bastante infusão de casca de sabugueiro e venha me ajudar a tirar os pontos da perna do cavaleiro ali e...

Conforme Konstantinos continuava ditando as ordens, Elisa sentia seu coração acalmar. Tudo parecia o mesmo por ali. Depois de fazer o que o médico pedira, ela foi ajudar Melina a levar o desjejum para os pacientes. Um deles chamou sua atenção. Uma amazona, a única que estava internada no local. Fora por meio dela que Elisa ficara sabendo da existência das mulheres que lutavam por Atena, também chamadas de mulheres-cavaleiros, que cobriam o rosto para ocultar sua feminilidade. Como seu rosto não podia ser visto por outros homens, Cibele ficava em um aposento separado e apenas Elisa e Melina podiam se aproximar quando ela tirava a máscara.

A guerreira, que fraturara um braço e duas costelas, já estava praticamente boa e faltava pouco para que pudesse ter alta.

— Não aguento mais ficar nessa cama. – resmungou a moça.

— Logo estará liberada. – Melina a animou.

— Dessa vez eu vou dar uma lição nesses espectros!

— Mas já vai querer se quebrar toda de novo! – Melina fez uma careta e as três riram.

Pouco depois do almoço, Elisa cortava alguns ramos de milefólio quando sentiu um cosmo conhecido e caloroso. Melina surgiu na porta da cozinha, bastante agitada.

— Elisa, o senhor Regulus está aqui! Ele quer falar com você.

— Regulus? – Elisa sorriu ao vê-lo entrar.

— Oi, Elisa. Lembra que uma vez eu disse que a levaria para ver Atena?

— Sim – ela assentiu.

— Eu consegui marcar uma audiência para você –ele a segurou pelo pulso e a guiou até o lado de fora.

— Que bom – ela tentou ocultar o nervosismo - Para quando?

— Agora mesmo.

— O quê? –a tentativa dela de se manter calma foi em vão – Agora? M-mas assim? Eu não tenho nem uma roupa mais formal.

— Atena não se preocupa com isso – ele riu – Desse jeito está ótimo. Eu já deveria ter levado você lá antes, mas com tantos acontecimentos da guerra, não houve tempo.

— Eu imagino. – ela murmurou, ainda tensa.

— Além disso, Sísifo veio me procurar... para falar sobre você.

— Sobre mim? – ela o encarou com incredulidade.

— Ele me disse que um rapaz foi até ele e contou que eu tinha trazido uma garota de fora do Santuário – Regulus não parecia muito feliz com aquilo. – E que não podíamos ter certeza da sua lealdade.

Petros... Só podia ter sido ele, pensou ela. Pelo visto, ele não falara nada sobre Kagaho ainda estar na floresta.

— Por isso – continuou ele – que eu marquei essa apresentação agora.

Depois que Regulus a levara para a aconchegante residência que habitava no momento, Elisa nunca mais passara pelo interior das Doze Casas. E agora, que estava numa situação bastante delicada, aquelas construções, que Regulus dissera ser parte da defesa da Santuário, lhe pareciam bastante intimidadoras, mesmo estando vazias. Eles passaram uma a uma pelas casas dos cavaleiros de ouro, o único caminho disponível até local onde Atena residia.

Quando chegaram aos aposentos do Grande Mestre, onde Regulus lhe dissera onde seria a reunião, Elisa sentia-se prestes a desmaiar, antes mesmo dele abrir a porta.

Sísifo estava lá, assim como outro cavaleiro de ouro que ela não conhecia e uma menina, que não devia ter mais de quinze anos. Essa menina era dona de uma aura inconfundível e ela não teve dúvida de sua identidade. Estava diante de Atena.

— Atena – Regulus fez uma reverência. –Sísifo, Shion. Essa é Elisa.

A pesquisadora também se curvou e olhou encantada para Sasha, a jovem Atena.

Sísifo se adiantou e parou diante dos dois.

— Regulus, então essa é a moça que você encontrou na floresta – não era exatamente uma pergunta.

— Elisa estava sendo atacada por um espectro – Regulus respondeu.

— Mas não foi esse o motivo de tê-la trazido para cá, foi?

— Não.

— Certo – Sísifo falou, sem dar a Regulus a chance de continuar e voltou seu olhar para Elisa – Por favor, Elisa, conte-nos sua história.

— Bom - ela retorceu as mãos e se adiantou um passo. - Tudo começou quando eu cheguei no vilarejo de Gaius...

Elisa contou tudo que acontecera antes de seu primeiro encontro com Regulus.

— Entendo... – Sasha murmurou, pensativa.

— E você não conhecia esse espectro de Benu antes? – Shion, o cavaleiro que Elisa ainda não conhecia, foi quem se pronunciou.

— Não,eu nem sabia que ele era um espectro. Para ser sincera, eu sequer imaginava o que poderia ser um espectro.

— E você disse que esse Kagaho, o mesmo que invadiu o Santuário e lutou contra o Cavaleiro de Touro num combate violento, a ajudou, inclusive salvando sua vida, sem nem mesmo conhecê-la – Shion continuou, muito sério.

— Eu sei que parece estranho – Elisa se esforçou para manter a voz calma.–Nem eu mesma sei por que ele resolveu me tirar daqueles escombros, mas desde aquele dia, eu passei a ter uma dívida de gratidão com ele.

— E depois que veio para o Santuário, você nunca mais teve contato com ele? – Sísifo fez a pergunta que Elisa temia.

— Na verdade, eu tive sim. – ela respondeu, num impulso.

— O quê?! – dessa vez foi Regulus que perguntou, incrédulo – E por que não me falou nada?

— Eu queria dizer – a culpa inundou a voz dela. – Mas não tive coragem, porque... eu não queria correr o risco de vocês se enfrentarem.

— Pelos céus, Elisa – ele meneou a cabeça, agora fazia sentido para ele o porquê de terem questionado a lealdade dela. – E onde você encontrou com ele?

— Na floresta – ela o fitou com um pedido de desculpas no olhar. – À noite.Algumas vezes.

— Algumas vezes – Sísifo repetiu, seco.

— E o que estava fazendo encontrando com um espectro do exército inimigo? – Shion perguntou, já com certa impaciência.

Regulus parecia não ter o que dizer para defendê-la e Atena a olhava de uma maneira indecifrável.

— Nós somos amigos – ela respondeu com firmeza.

— Ele é um espectro – Sísifofalou um pouco mais brando. – Espectros não têm amigos.

— Ele não é mau – insistiu ela. – Ele é diferente. Eu vi os outros espectros e sei que o Kagaho não é como eles.

Sísifo e Shion estavam prestes a rebater, mas Sasha interveio antes.

— Você parece ter mesmo sentimentos muito fortes por esse espectro.

— Atena... – Elisa se aproximou da deusa, ignorando Sísifo e Shion que se colocaram instintivamente em guarda e se ajoelhou perante ela – Eu juro que não estou do lado de Hades. Eu pedi ao Kagaho que não lutasse contra você, mas ele não me escutou – ela falou, angustiada. - Eu não quero que Hades vença essa guerra, mas também não quero ver o Kagaho morrer.

— Elisa, por favor, se levante – Sasha estendeu a mão e Elisa a obedeceu.– Vejo que é uma situação difícil para você. Mas entenda, é perigoso para ambos continuar nessa situação.

— Eu sei – Elisa murmurou, cabisbaixa.

— Imagino que, com a nossa investida contra o castelo de Hades, ele tenha saído das cercanias do Santuário e ido para lá também. – Sísifo comentou.

— Sim, ele me disse que provavelmente não participaria ativamente, mas que iria mesmo assim.

— De fato, não participou. Bem, Shion, Atena... – ele fez uma pequena pausa – Regulus, vocês acham que devemos colocar alguém para investigar a presença desse espectro na floresta?

— Não acho que seja necessário – Shion respondeu. – Provavelmente ele não é o único espectro cercando o Santuário.

— Além disso, temos que nos concentrar em encontrar um meio de chegar ao castelo no céu – Sasha se pronunciou – Eu concordo com Shion.

Atena olhou para Regulus e ele a anuiu, concordando. Aquilo fez Elisa sentir uma onda de alívio, por saber que não haveria um confronto com Kagaho.

— Elisa – Sísifo voltou o olhar para ela – Creio que o melhor seja enviá-la para Rodorio por enquanto.

— Mas Sísifo... – Regulus olhou para o tio.

— Será melhor que ela fique lá, antes que mais pessoas desconfiem de sua lealdade a Atena e isso cause problemas. Além disso, eu tenho subordinados cuidando do vilarejo e ela ficará segura – ele voltou a olhar novamente para ela. – E também me disseram que tenho um conhecido seu em Rodorio.

— Sim...

Elisa assentiu e olhou para Regulus. O Cavaleiro de Leão se aproximou e, embora estivesse sério de um jeito pouco usual, ele colocou a mão em seu ombro, em sinal de apoio.

— Uma amazona de minha confiança a levará amanhã de manhã – Sísifo falou em um tom de voz que indicava que por ele o assunto estava encerrado.

— Então eu levarei Elisa até lá embaixo. – Regulus olhou para Atena.

— Pode ir, Regulus – Sasha se aproximou de Elisa e segurou suas mãos com afeto.– Fiquei feliz de conhecê-la. Alguém com quem o Regulus se importa, também importa para mim.

Diante de tamanha gentileza, Elisa, que não vira o quanto Regulus corara com as palavras da deusa, ficou sem palavras e tudo que pôde fazer foi agradecer com todo seu coração.

— Obrigada, Atena! Foi uma honra poder conhecê-la.

Ela fez uma referência para Atena e voltou-se para os dois cavaleiros.

— Sísifo, Shion. Obrigada por me ouvirem e me darem a chance de contar a minha história. E aqui, diante de todos vocês – ela se ajoelhou – eu ofereço meu juramento de lealdade a Atena.

Mais tarde, quando deitasse em sua cama, Elisa não saberia dizer muito bem porque fizera aquilo. Contudo, naquele instante, as palavras saíram de sua boca como que por vontade própria.

— Obrigada, Elisa. – Sasha sorriu.

— Aceitaremos seu juramento. – Sísifo falou, muito sério – E esperamos que faça juz a ele.

— Obrigada.

Ela e Regulus finalmente saíram e Elisa sentiu como se um peso tivesse desaparecido de seus ombros. No entanto, agora era com Regulus que ela teria que lidar.

— Regulus, eu...

— Por que não me contou? – havia uma mágoa mal disfarçada na voz do jovem cavaleiro.

— Eu não tive coragem. Me desculpe, Regulus.

— Você não precisa pedir desculpas. – ele resmungou – Eu não sou nada seu. Mas você correu um perigo enorme indo até a floresta sozinha para se encontrar com esse espectro.

— Não diga isso! – ela parou e o fitou com determinação. – Você é meu amigo! E eu também devo minha vida a você, Regulus.

— Eu apenas cumpri meu dever. – retrucou ele.

— Não, você fez muito mais do que isso. Você me trouxe para o Santuário, cuidou de mim, conseguiu uma casa para eu ficar. Eu nunca te agradeci por tudo que fez por mim.

— E mesmo assim me escondeu uma coisa tão importante.

— Eu errei... Eu devia ter falado, mas... Eu tive medo que você ou outro cavaleiro fosse atrás dele.

— Mas você sabe que em algum momento fatalmente teremos que lutar com ele, não sabe? – Regulus recomeçou a andar.

— Mas eu não quero que seja por minha culpa.

— Elisa... você é muito complicada. – foi a vez dele suspirar – Eu nunca fui muito bem em entender as pessoas, mas você é mais difícil de compreender que as outras.

— Você ficou chateado comigo?

— Bom, você me deixou com a maior cara de tacho na frente dos outros – ele fez uma careta.

— Eu não podia mentir para Atena – ela ergueu as mãos.

— E para mim, podia? – ele olhou de lado para ela.

— Bom, você nunca perguntou. – ela deu de ombros.

— Elisa! – ele exclamou, indignado, mas um pequeno sorriso em seus lábios o traiu.

Conforme continuavam conversando na direção da casa de Elisa, ela se tranquilizou ao ver que o amigo a perdoara. Mas outra inquietação surgia em sua mente. Como ficaria sua vida fora do Santuário? E o mais irônico era que, naquela mesma manhã, aquilo era justamente o que ela queria.


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