Campo de Girassóis escrita por Ash Albiorix


Capítulo 8
Sobre a primeira consulta




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Parte 2: Amarelo

Consulta #1

Doutor Luciano sentou na cadeira ao meu lado e eu sentei na cama, com alguma dificuldade. Estava nervoso, mas tentei não deixar transparecer. Jonathan saiu e agora estávamos só eu e ele no quarto.
— O que foi isso no seu ombro? - foi como ele começou.
— Uma briga.
Eu estava olhando pra baixo, como se não estivesse ali.
— Sobre o que?
— Sobre nada. Não foi bem uma briga.
Ele fez uma pausa, anotou algo. Aquilo estava me matando. Me senti sufocado, e respirei fundo. Ele começou a fazer perguntas sobre como eu me sentia normalmente e minha rotina e minha infância, e tudo que eu fiz foi evitá-las. Então ele se reclinou na cadeira, e disse:
— Você lembra do que aconteceu quando você chegou aqui?
— Não muito. Eu lembro de vomitar, e ai desmaiar.
— Mas você lembra de como você estava? Seu comportamento, digo.
Me esforcei pra capturar as memórias. Lembrei de ter gritado algo, eu estava nervoso.
— Irritado. Eu estava irritado.
— Você se lembra da primeira enfermeira que tentou se segurar, assim que você chegou?
Franzi a sobrancelha, me remexendo.
— Não, eu... -travei - não.
— Nicolas, você não desmaiou. Você foi dopado.
— O que? Por quê?
Estava começando a ficar nervoso.
—Porque você estava agressivo. Você gritou e empurrou a enfermeira, e se negava a ficar quieto. Por isso eu estou aqui. Por isso te doparam.
Senti minha cabeça doer. Eu não lembrava de nada disso. A ansiedade e o medo estavam crescendo em mim, mas fui interrompido:
— Sinto muito por trazer de volta o que aconteceu - ele comentou - mas eu preciso que você veja, que entenda, que aquilo não foi um comportamento normal, que você precisa de ajuda. E eu posso ajudar. Mas você precisa colaborar. Você vai colaborar?
Respirei fundo, derrotado. Me imaginei gritando e empurrando as pessoas, e fiquei feliz por não lembrar de nada.
— Vou.
— Muito bem. Agora me diz, como você se sente normalmente?
—Cansado. Eu me sinto cansado. Parece que nada vem fácil. Eu nunca consigo fazer nada.
— E por que não?
— Porque tudo parece pesado. E demais. Eu não sei explicar.
— Eu preciso que você tente.
Ele anotava enquanto eu falava, e eu quis saber o que.
— É como se as coisas fossem ou rápido demais ou lentas demais, mas nunca normais. Tem dias que meu corpo parece estar cheio de energia: eu não consigo parar. E eu não sei porque, não sei.
— Isso acontece com frequência?
— Sim. Quer dizer, mais ou menos, tem vezes que não. Tem vezes que eu fico dias sem dormir e completamente... - não consegui achar a palavra.
— Completamente o que?
— Descontrolado. Mas ai tem vezes, tipo agora, que eu me sinto normal. Talvez eu esteja muito dopado agora, não sei.
— Esses períodos de energia, quanto tempo você diriam que eles duram?
— Pouco. No máximo um dia ou dois.
— E o resto do tempo, você fica bem?
Eu tremia. Me sentia evidenciando toda minha disfuncionalidade.
— Não, não fico.
— E como você fica?
— Cansado. Parece que a energia me desgastou e eu precisasse recuperá-la de alguma forma.
Ele ficou alguns segundos sem perguntar nada, anotando. Quis dizer: o que porra que você tanto anota?, mas fiquei quieto. Me sentia horrível.
— Como você essas coisas afetam sua vida?
Lembrei de Rosana.
— Minha mãe me expulsou de casa. E eu fui expulso de umas três escolas, normalmente por brigas. Eu não sei o que acontece. - ri ironicamente - tem esse coisa da escada que eu faço quando a energia é demais. Eu subo e desço as escadas por horas. Sinceramente, acho bastante bizarro, mas não consigo evitar.
—Essas situações me parecem bem sérias. Como você nunca viu um médico sobre isso antes?
Abaixei a cabeça, pensando nas pessoas ao meu redor.
— Ninguém nunca quis. - falei baixo.
— O que?
— Ninguém nunca quis me levar.
Silêncio. Eu queria chorar e sair correndo.
Alguém, por favor, me tira daqui.
— Alguma pessoa da sua família apresenta alguma doença?
— Não que eu saiba. Meu irmão tem hiperatividade. Quando eu era mais novo, disseram que eu tinha também. Mas minha mãe ignorou, e... Bom, chegamos no que eu sou hoje. - falei, com um tom de raiva.
— Nicolas, eu não acho que você tenha hiperatividade. Talvez seja muito cedo pra dizer com certeza, mas eu tenho sim suspeita de que você tenha algo.
Essa parte não me surpreendeu, não mesmo. Eu sempre soube.
—Eu vou mandar você fazer alguns exames, e volto aqui pra conversar com você. Pode ser?
Suspirei. Queria dizer: me diz logo o que tem de errado comigo.
Mas só balancei a cabeça, concordando.

Jonathan entrou assim que Doutor Luciano saiu. Ele parecia preocupado.
— Como foi?
Eu suspirei, deitando e escondendo a cara com o travesseiro. Queria sumir.
— Sem essa. - Jon falou, puxando o travesseiro e rindo, numa disputa de força. Soltei, e o Jonathan se desequilibrou pra trás. Me permiti soltar uma risada, ainda que meio desanimada.
Sentei e apoiei os braços no colo. Apesar do clima agradável, eu tinha perguntas que não se calavam.
— Por que você me ignorou essas semanas?
Seus musculos se tensionaram involuntariamente; eu o peguei de surpresa.
Jonathan respirou fundo, sentou e abaixou a cabeça.
— Rosana não quis deixar eu atender. Ou te procurar.
Eu conseguia sentir a culpa em sua voz.
— E você simplesmente obedece? - falei, soando mais agressivo do que pensei.
— Nick...- ele falou, baixo, levantando os olhos. - Eu... Me desculpa, ok? Eu só... Ela disse que seria pro seu bem.
— Desde quando ela se importa com o que é melhor pra mim? Eu não entendo essa sua necessidade de aprovação.
Ah não. Me arrependi no momento que as palavras saíram da minha boca. Jonathan tinha essa mania, ele queria ser perfeito: o aluno perfeito, o filho perfeito, o irmão perfeito. E eu sabia que esse era seu ponto fraco.
— Desculpa. - falei, arrependido.
— Tudo bem, você ta certo. - ele me olhou, as sobracelhas arqueadas. Parecia que ia chorar. - Eu não entendo também. Eu não sei o porquê obedeci a ela, ok? Mas eu senti tanto sua falta. - seus ombros se encolheram e ele desviou o olhar do meu. - Eu sinto tanto sua falta lá em casa. Quando eu ouvi que você tava no hospital eu só precisei vir aqui te vir, eu tive que vir.
A voz de Jonathan tinha um tom leve de quem segurava o choro, e eu não queria que ele soltasse. Sabia que eu choraria também.
Era uma das primeiras vezes que eu o via assim, vulnerável: sem se preocupar em ser perfeito. Só sendo ele.
— Eu também senti sua falta. Promete que vai me atender.
Jon piscou e as lágrimas escorreram, pra então limpar com a mão.
— Prometo, eu prometo.
Ele estava sentado olhando pra baixo, e seu cabelo longo estava caindo no rosto.
— Cara, você precisa cortar esse cabelo. - falei. Jonathan riu, mas a risada se transformou num soluço. Ele abaixou a cabeça de novo, não queria que eu o visse chorar.
— Vem aqui. - falei baixo, como se fosse uma armadilha. Mas ele só arrastou a cadeira mais pra perto, perto o suficiente pra eu o abraçar e o apertar contra meu peito, como ele fez comigo tantas vezes.
Era a primeira vez que eu tinha chance de retribuir.
Encostei a bochecha no cabelo de Jon, e conseguia sentir seus soluços balançando seu corpo. Eu tinha tantas perguntas.
O que foi? Por que? A maldita da Rosana fez algo?
Eu sabia que tinha algo mais, eu sentia. Conhecia Jonathan o suficiente pra saber que precisa de muita coisa pra fazer o garoto desabar. Entretanto, lá estava ele, soluçando em meus braços, pela primeira vez na vida.
—Nick? - ele falou, baixo, o choro parando.
— O que?
— Eu te amo.
—Eu também te amo.
Então ele se desvencilhou do meu abraço, mexendo os ombros. Soltou uma risada amarga e fungou, limpando o rosto na blusa. Deixei minhas perguntas pra depois, eu também não estava lá muito bem pra conversar.
Ficamos em silêncio por um tempo, até que uma enfermeira foi tirar sangue meu. Virei o rosto pro outro lado pra não olhar.
Estava anoitecendo, e meu telefone tocou.
Isabelly.
Meu coração acelerou ao atender.
— Ta bom, você não foi pra escola e não tinha ninguém em casa. Me diz que você ta vivo. - falou, assim que atendi, e eu não sabia se seu tom era de brincadeira ou de preocupação.
— Eu to vivo, Isabelly...
— Bom saber.
— Mas eu to no hospital.
— O que? Por quê?
— Longa história.
— Você ta com quem?
— Martha. E meu irmão.
— Você ta bem?
— To sim. Amanhã de manhã eu to em casa.
Ela pausou uns segundos.
— Não sei se consigo esperar até amanhã pra te ver. - brincou. - Você acha que tem espaço pra mais um aí?
— Pra você? Sempre.
Jonathan soltou uma risada audível.
— Isso foi seu irmão?
— Foi.
— Eu vou adorar conhecer ele.

Então eu passei o endereço pra Isa e, minutos depois, ela estava a caminho. Jonathan começou a me fazer perguntas do tipo:
— Você gosta dela? É obvio que gosta, não sei porquê to perguntando.
— Como assim?
— Quer dizer, você quer beijar ela?

Essa era uma boa pergunta. Gosto de ter Isa como uma amiga. Mas eu queria beijar ela? A possibilidade nunca tinha passado pela minha mente, mas, agora que passou, não saía mais.
Quando Isa chegou, seus cabelos rosas cacheados e sua roupa em tons amarelos, a blusa marcando suas gordurinhas adoráveis, eu sabia as respostas pras perguntas de Jonathan. Claro que sabia.

Eu estava bem. Quase feliz. Nós três conversamos e ela e Jonathan se deram bem. Era quase a sensação de ter um grupo de amigos.

Só faltava Gabriel.

— Jon? - chamei - Você tem visto Gabriel? Eu não falo com ele há tempos. Ele sumiu.
Jonathan engasgou, como se tivesse sido pego de surpresa. Antes que eu tivesse tempo pra processar a reação estranha dele, Doutor Luciano entrou no quarto, junto com Martha. Os dois carregavam uma expressão séria e eu sabia que não ia gostar do que estava por vir.
Doutor Luciano falou com os dois e sorriu pra mim, mas logo seu rosto mudou.
— Tecnicamente, por enquanto, Martha é sua responsável legal, isso significa que eu já conversei com ela, e agora é hora de conversar com você.
Me endireitei na cadeira, como se a bolha que eu estava vivendo fosse estourar a cada momento.
Ele me perguntou se eu preferia que Jon e Isa ficassem ou saíssem. Eu quis que ficassem. Jon é meu irmão e Isa... Não sabia nem explicar a confiança que criei nela. A garota, instintivamente, procurou minha mão e segurou, e nenhum dos dois prestou atenção nisso na hora.
— Nicolas, - ele falou - eu conversei com Martha e com uma equipe de profissionais, e a gente acha que sabe o que você tem. É bom lembrar que não é nada certo e que eu vou precisar observar mais seu comportamente pra fechar um diagnóstico, mas você precisa começar um tratamento urgente, então não pude ter muita calma.
Apertei a mão de Isa. Naquela momento, fui apresentado a duas palavrinhas que, depois de terem saído da boca de Doutor Luciano, não sairam mais da minha vida: transtorno bipolar.


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