Pequenos Contos escrita por Tah Madeira


Capítulo 12
Memória (parte 9)


Notas iniciais do capítulo

Voltei....

Mais uma parte do conto, esse veio mais curtinho, mas cheio de carinho....

O próximo será o nosso último capítulo desse conto...

Boa leitura



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(Por Julieta)

 

Acordei com o pesadelo, ou assim eu julgava, até sentar e ver as marcas em meu corpo, estou em minha cama na fazenda, as lembranças do que ocorreu ainda estão embaralhadas em minha cabeça pedaços incoerentes, talvez inconscientemente não quero lembrar de tudo o que passou, de me ver novamente em uma situação tão vulnerável, tão subjugada e humilhada, faço força para não chorar, penso em Aurélio, se ele não tivesse chegado a tempo eu seria forçada, seria violentada, entraria em uma escuridão e se isso ocorresse eu não sei se teria forças para sair, Aurélio mais uma vez foi o meu salvador, lembro vagamente de Brandão me ajudar a resgatar ele, e sairmos para fora da casa, vagamente lembro que Aurélio me diz algo antes de eu perder os sentidos, mas foi tão baixo, um leve mover de lábios, e havia tanta coisa acontecendo em nossa volta, o fogo, as pessoas correndo, um caos, que não consigo lembrar o que era. Quando penso em levantar da cama e ir procurar por ele é o exato momento em que a porta é aberta. Rômulo entra.

— Olá dona Julieta,como está se sentido?

—Como se tivessem passado por cima de mim com um carro — esboço um sorriso, mas até para isso faço um esforço, quero demonstrar que estou levando aquilo numa boa, levando os momentos de angústia e medo para um outro lado da minha cabeça, outra hora eu lido com elas.

— Fora esses arranhões, e claro o trauma, a senhora não sofreu nada mais grave.— ele diz querendo ser otimista, mal sabe o quão profundo é o trauma, e que teria sido pior se Xavier tivesse êxito em seu feito, que será difícil por demais esquecer aqueles momentos de horror.

— E Aurélio, como ele está?— aquela a pergunta era a mais importante a ser feita.

— Dentro do possível bem, vocês dois inalaram um pouco de fumaça —o médico desvia o olhar e isso intriga Julieta— Consegui tem poucos minutos que ele deixasse o seu quarto, precisava descansar, aconselho vocês dois a voltarem a São Paulo, amanhã mesmo.

— Porque Rômulo? O desmaio dele agravou o seu estado? A sua memória — antes que o médico possa responder a porta é novamente aberta.

— Julieta — seu coração se acalma ao ouvir aquela voz, e seus olhos vão de encontro a ele.

— Aurélio —digo soltando o ar que prendi esperando a resposta do médico, levantei da cama em um pulo, ignorando o mal estar e a dor, e logo corri para abraçá-lo, seus braços envolvem o meu corpo e sem conseguir me controlar acabei por chorar, descanso a minha cabeça em seu ombro, esqueço a perda de memória, Xavier, o medo, até de Rômulo ali e o abraço forte, precisava daquilo, pouco a pouco as lágrimas vão cedendo, aspiro o seu cheiro, mas não é um bom cheiro— Você está cheirando a fumaça—ouço sua risada fraca, acompanhada de uma tosse.

—Você também — sinto ele cheirar meus cabelos.

— Senhor Aurélio, não deixei o senhor descansando? O que faz aqui?— Rômulo sorri para nós, tentando dar uma bronca, apenas olhamos para ele, com meu corpo ainda envolvido por seus braços.

 

(Por Aurélio)

 

— Sim, mas antes eu precisava ver como ela estava — meu corpo tomba de encontro ao dela, ao sentir uma tontura.

— Olha aí é disso que eu falo, o senhor precisa repousar.

— Vem deita aqui na minha cama.— Julieta me encaminha para lá, não posso recusar aquele oferta, eu sento escorado na cabeceira, ela ajeitou as cobertas sobre mim, ficamos nos olhando, tão profundamente, como posso ter esquecido.

— Vou providenciar algo para os dois comerem— Rômulo parece ter se sentido sobrando naquele quarto, saiu nos deixando sozinho.

 

— Como você está?— perguntei, apesar de querer muito, tinha medo de tocá-la, ainda mais depois dos horrores que ela tinha passado, nem ousava pensar o que teria acontecido se demorasse um pouco mais a encontrá-la.

— Estou grata por você ter chegado a tempo— toca em meu rosto, minha mão cobre a sua— Obrigada, obrigada por me salvar, como você me achou?

— Eu recebi seu recado assim que cheguei na casa de Brandão, vim para cá o mais rápido que pude, ao chegar aqui Tião disse que você tinha recebido um recado meu, mas não mandei nenhum, desconfiei e preocupado fui para lá, mas antes de sair pedi a sua empregada que desse um jeito de avisar o Coronel, algo me dizia que tinha algo errado, quase na entrada da fazenda vi Dolores correndo ela disse que Xavier a trancou, mas ela conseguiu escapar — contar o faz reviver o que passou, principalmente para ela, que chora— Eu cheguei a tempo— sem me conter por vê-la tão frágil a puxo para os meus braços e a abraço forte, sua cabeça repousa em meu ombro, sua mão acaricia minha nuca, afago seus cabelos, como posso ter esquecido ela, nossos momentos, nem falamos disso ainda — Julieta — ela apenas resmunga sem sair do meu abraço, como quem diz estar ouvindo — O que você lembra quando saímos da casa? — ela se afasta um pouco.

— Você desmaiou, bateu a cabeça, eu tentei puxá-lo, mas não obtive muito sucesso, por sorte o Coronel chegou e me ajudou, havia muita fumaça, — ela pensa um pouco, fecha os olhos— É tão confuso, acho que depois de nossa saída eu devo ter apagado, tudo embaralhado, tão impreciso, na verdade não quero ter de lembrar do que ocorreu— parece que ela vai chorar de novo, deve ser difícil mesmo para ela, dado o seu passado.— O que eu preciso lembrar?

— Nada, está tudo bem — a puxei para meus braços de novo, não consigo mais mantê-la afastada de mim, ela esqueceu o que eu disse um pouco antes de ela desmaiar, não sabe que eu recuperei a memória, mas não vou obrigá-la a recordar o que passou, calmamente vou escorando as costas na cabeceira da cama, Julieta não se afasta, deve estar precisada desse contado tanto ou mais que eu, começo a traçar um plano em minha cabeça, como resolver aquela questão de contar para ela sobre a volta da memória.

— Com licença, mas o doutor mandou eu trazer comida para os dois. —nos separamos assim que batidas na porta foram ouvidas, Rute entrou com uma bandeja, trazendo sopa para nós dois — Ele disse que é para os dois comerem tudo, foi até a casa dos Beneditos, mas logo volta— logo se retira, comemos a sopa em silêncio, Julieta come menos que eu.

— Come um pouco mais m… — quase solto o “meu amor” que queria muito dizer, mas que iria denunciar logo para ela a verdade— Mais um pouco.

— Não tenho fome.— ela deixa a colher dentro do prato, a pego e coloco um pouco de sopa e levo até os lábios dela, Julieta sorri, pela primeira vez naquele dia vejo o seu sorriso, isso me trás um pouco de conforto.

— Aurélio, não preciso que me dê comida na boca, por quem me tomas? — fala com um ar de indignada.

— Você precisa se alimentar e se essa for a única maneira, por que não?— aproximo mais a colher de seu rosto — Vamos abra a boca, pensa em como Rômulo vai ficar orgulhoso de ver que comemos tudo— ela aperta os lábios fechando mais a boca, louca para rir — Vamos Julieta, apenas algumas colheradas— por fim ela cede e toma algumas colheradas, mas depois da sétima porção ela diz não aguentar mais e sei que diz a verdade.

— Vamos voltar amanhã para São Paulo, devemos ir ao médico, sua memória não voltou, essa nova pancada pode ter afetado algo mais, e os exames que tinha feito podem já estar pronto— ela diz enquanto coloco a bandeja sobre a mesa que há ali por perto, sei que está nervosa com algo.

— Sim podemos voltar amanhã logo pela manhã, nossos filhos já ligaram, não sei como souberam e tive que fazer um esforço enorme para convencê-los que estamos bem.— sento na beira da cama, ela me olha fundo.

— Aurélio, não lembrou de nada?— demoro a responder, planejo algo e não queria falar assim, mas também não queria mentir, novamente batidas na porta e Rômulo entra.

— Vejo que se alimentaram, muito bem — ele se aproxima dela e encosta a mão em sua testa — Nada de febre, isso é bom — agora sua mão está em minha cabeça — E aqui sinto um pouco mais quente— me dá dois comprimidos — Acho que isso deve resolver e para a senhora fui até em casa buscar essa pomada, vai ajudar com os machucados das pernas, se permite gostaria de aplicar.—Julieta concorda, mas fica vermelha quando ele ergueu o lençol e mostrou a extensão das marcas que Xavier deixou na pele dela, Julieta tenta cobrir as pernas e olha para mim, percebo que é por minha presença que ela fica envergonhada.

— Vou levar a bandeja lá para baixo — antes que qualquer um dos dois fale algo, deixei o quarto.

 

( Por Julieta)

 

 

— Obrigada Rômulo — ele ajeita os lençóis sobre mim.

—Sinto muito por tudo que aconteceu Dona Julieta, Xavier foi um crápula, acho que não tem palavras para definir o que ele foi— era a primeira vez que ouvia o nome dele, um frio passa por minha espinha.

— O que aconteceu com ele?

— Ao tirarem o corpo dele de dentro da casa, tinha muito pouco que eu pudesse fazer, foi encaminhado ao hospital mais próximo, e não sei do seu estado. Amanhã devo ter mais informações.— eu apenas concordo, sem nada dizer, não saberia controlar a raiva que tem dentro de mim ao lembrar daqueles momentos, Rômulo percebendo meu silêncio continua.— Mas a senhora fica despreocupada, se ele sobreviver não vai sair impune disso tudo, apesar de saber do todo o ocorrido, o delegado Baltazar quer falar com a senhora, avisei da sua partida logo cedo, ele pediu para passar lá, será mera formalidade, não se preocupe— conversamos mais um pouco, ele passa alguns cuidados que vou precisar ter por causa dos pequenos ferimentos que ficou, mais algumas cicatrizes em mim, mas aquelas eu tinha vencido. Rômulo se despede e sai.

Com dificuldade por conta das dores, levanto eu vou até o espelho, e me deparo com uma visão da antiga Julieta, aquela que um dia eu fui, aquela que era forçada, torturada e violentada por Osório, a marcas em meu pescoço, sinto o cheiro da fumaça em mim, e mesmo sabendo que fui banhada, parecia sentir o cheiro horroroso de Xavier em mim, lembrando muito o mesmo cheiro do seu falecido e odioso marido, comecei a puxar as mangas da camisola, rasguei o tecido todo, e caminho para o chuveiro, precisava lavar meu corpo, tirar de mim aqueles odores, aquela sujeira de cima de mim, passava o sabonete e esfregava, mas parecia que quanto mais eu me lavava, mais o cheiro eu sentia, sem forças deixei meu corpo tombar no chão, as lágrimas se misturando com a água.

 

(Por Aurélio)

 

—Você precisa contar a ela que recuperou a memória.

— Eu sei Rômulo, eu julguei que ela tinha lembrando que eu disse antes de desmaiar, mas não, Julieta não registrou o que eu disse, eu irei falar, de uma maneira especial, acabei de falar com Ema, e estamos organizando tudo

— Está bem, não a deixe nessa agonia, ela precisa de um pouco de felicidade depois de tudo o que aconteceu.

— E ela terá meu amigo, ela terá — tenho uma boa ideia para isso, mal sabe ele, e Julieta muito menos, nos despedimos ele foi embora e eu subi as escadas.

—Julieta — entrei no quarto e não a vi na cama, apenas a camisola que vestia jogada no chão, peguei o tecido e me assustei ao vê-lo despedaçado, corri até a porta do banheiro e estava fechada, bati e a chamei —Julieta, abre, por favor.— mais uma batida e novamente a chamei, sem resposta e perto de arrombar a porta, ouço seus passos e a maçaneta girar, ela está pálida, cabelos soltos e molhados, vestiu outra camisola, mais escura que a outra, mangas longas e justa, nessa não há decote, quase chega ao seu pescoço, sei que é por causa das marcas que antes ficavam visíveis, tenho vontade correr e abraçá-la forte, mas sei que depois do que ela passou um movimento errado meu pode desencadear outras coisas.

— Eu precisava de um banho— sua voz é quase um sussurro, seu não estivesse atento a ela, não sei se teria ouvido, seus olhos estão vermelhos, ela chorou, caminha devagar até a cama— Rômulo já foi?

— Sim — a ajudei a deitar na cama, não sei o que fazer, ela parece mais frágil do que antes, permaneço em pé— Julieta, está tudo bem?

— Não, agora não, mas vai ficar— sei que ela segura o pranto, estou a ponto de esquecer os meus planos.

— Posso fazer algo para te ajudar?— sento na cama, quase levanto a mão para tocar em seu rosto, como sinto falta disso, mas sua voz reprimir o movimento.

— Fica comigo essa noite— ela toca em minhas mãos e naquelas palavras recebo a sua fragilidade como um presente, pois sei que desejo a ter em meus braços mais do que ela mim, que as noites dormindo juntos são as melhores. Sentido suas mão frias, pego mais um cobertor, estiquei sobre a cama e suavemente me deito ao seu lado, pouco a pouco ela encosta a cabeça sobre meu peito, sei que ela gosta de deitar ali, limito muito os meus atos para não assustá-la, mas e desse modo que eu ansiava tê-la.

Ela repousa calmamente, doeu ao ver os arranhões em seu pescoço, não tanto ao ver os machucados em suas pernas, ela lutou, lutou bravamente para não viver de novo o seu passado em seu presente, reviver os horrores que um homem impõe a uma mulher, nessas situações sentia-se mal ao ser da mesma espécie. A observo dormir, zelo por seu sono, algumas vezes se debate, choraminga algo e busca os meus braços e quando os encontra só então sua respiração volta a ser tranquila, sua cabeça encosta mais em mim, seus dedos se apertaram mais em volta de meu corpo, consigo sentir suas unhas na minha pele, como se tivesse medo ao me soltar, parece que mesmo em sonhos quer ter a certeza da minha presença, como pude esquecer nós dois, esse amor que sinto tão forte a ponto de apertar meu peito, como conseguir esquecer o quanto corri atrás dela e mesmo com a forma relutante dela eu não desisti, a conquistei passo a passo, como posso ter esquecidos os beijos trocados, os carinhos compartilhado e os momentos vividos, sinto ter sido um pouco tolo por ter, mesmo que por alguns dias, perdido a nossa história.

Julieta novamente se agita em meus braços, noto gotículas de suor em sua testa, coloquei a mão sobre ela, não está quente, não há indícios de febre, apenas calor, pois a abraço forte sobre as cobertas, a afastei um pouco, não muito, não quero nunca mais a soltar. Tirei o cobertor de cima de nós, deixei jogado em nossos pés.

Olhei em seu rosto, consigo perceber certo alívio, toquei suas feições, suas bochechas, que ficam rosados quando está envergonhada, aquele nariz empinado e que fazia questão de erguer em meio a uma discussão, aquelas sobrancelhas que se erguiam levemente em meio às conversas, desço meus dedos até seus lábios, que agora já tinham a cor de sempre levemente corado, que ficavam vermelhos após os nosso beijos, delineio com meu polegar e mesmo dormindo ela abre um pequeno sorriso, sua pele reconhece meu gesto, mesmo desejando muito beijá-la, não podia, não dessa forma.

Apesar de ter ficado um breve tempo sem as memórias, não posso deixar de sentir um tanto de orgulho pela forma como ela se portou diante dessa adversidade, roubando palavras e afetos que eu lhe dei, acabei por sorrir ao lembrar que até beijos ela ousou furtar, beijei sua testa .

— Aurélio— ela resmunga em seu sonho, sua mão vai em meu pescoço, ainda dormindo se agarra a mim. 

— Estou aqui— beijo sua bochecha, e bem baixinho eu completo — Meu amor.


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Notas finais do capítulo

O que Aurélio está aprontando.... Palpites???



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