A Cidade de Prata escrita por Matheus Braga


Capítulo 4
Capítulo III




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A madrugada ia alta e a lua cheia destacava-se orgulhosa no céu. Um friozinho gostoso descia da Serra do Curral e espantava o sono.

— E aí, o que você acha? – Daniel perguntou.

Estavam sentados diante do cruzeiro da Praça do Papa, um dos pontos mais altos de Belo Horizonte, e observavam a cidade totalmente iluminada mais abaixo. O jantar pago por Rômulo havia sido delicioso, mas não o suficiente para satisfazê-los. Assim, acabaram rumando para a praça para comer um hambúrguer.

— Não sei, não. – Lucas emendou, limpando os cantos da boca – Achei isso tudo muito... fantástico.

O arqueólogo deu outra mordida em seu sanduíche.

— Como assim? – Ele perguntou de boca cheia – Você acha que é invenção dele?

— Eu não diria invenção. – O assistente respondeu depressa, ajeitando os óculos – Mas sei lá... Como eu disse lá no restaurante, eu só acho que é algo grande demais para ainda não ter sido descoberto.

Daniel terminou de engolir o que estava mastigando antes de responder.

— Mas não é exatamente assim que acontecem as grandes descobertas? Por acaso? – Ele começou a gesticular com a mão direita – Não foi assim com o exército de terracota de Xian? Ou o Homem de Tollund? O templo de Angkor Wat? A gruta de Lascaux? Ou a...

— Tudo bem, eu já entendi. – Lucas interrompeu-o – O que eu quero dizer, Daniel, é que aquela região da Bahia já é bastante habitada. Barreiras é uma cidade muito grande, e os arredores dela também são...

— Mas o Rômulo mencionou a região a nordeste de Barreiras. – O arqueólogo cortou o amigo – Se você olhar no mapa, aquela região específica entre Barreiras, o lago de Sobradinho e o Parque Nacional da Serra das Confusões, no sul do Piauí, ainda é muito pouco habitada. O máximo que há por lá são vilarejos pequenos. Como ele mesmo disse, sabe-se lá o que ainda podemos encontrar por ali.

Lucas estava fitando-o.

— Você comprou mesmo o discurso dele, não é?

— Não é que eu “comprei”. Mas é que eu... – Ele vacilou, abrindo um sorrisinho estreito e balançando a cabeça – Você sabe como eu sou curioso.

— É, eu sei.

— Eu gostaria de ir até lá. – Daniel confessou – Quer dizer, recebemos um convite do próprio Rômulo Orleans. Ele nos apresentou uma oportunidade incrível e se ofereceu para bancar a viagem. Mesmo que não dê em nada, será uma tremenda porta aberta para o financiamento de futuras pesquisas, para nós dois. – Um brilho diferente e intenso surgiu nos olhos dele – E se, de fato, houver algo lá para ser descoberto... Cara, será o auge das nossas vidas.

Lucas terminou de comer seu hambúrguer, pesando a fala do amigo.

— Não apenas te tornaria provavelmente o arqueólogo mais famoso do Brasil, como também te renderia facilmente sua tese de doutorado. Até um pós-doutorado. Sem falar no marketing que será gerado para a fundação Orleans. – Ele comentou, olhando para o nada – Se de fato houver algo lá, vai dar muito o que falar.

— E não pense só em mim, Lucas. – Ele passou o braço direito pelos ombros do amigo – Você já está quase formado. Se aquela cidade estiver mesmo lá, poderia te render um TCC fantástico. Talvez até inspirar a sua dissertação de mestrado. Quer dizer, seria algo tão grande que as possibilidades seriam quase infinitas.

O assistente concordou com um movimento de cabeça, sentindo-se até um pouco contagiado pelo entusiasmo do outro. Uma trovoada longínqua se fez ouvir por trás das serras a despeito do céu limpo. Daniel e Lucas se viraram na direção do som, mas não viram nada além do céu estrelado.

— Você está com pressa para chegar em casa? – O arqueólogo perguntou, ainda olhando para o topo da serra.

— Não. – O amigo respondeu – Por quê?

Daniel se pôs de pé, limpando a calça e encarando o outro com certa intensidade, parecendo um tanto animado.

— Vamos para o meu apartamento. Preciso te confessar uma coisa.

Lucas chegou a abrir a boca para questionar, mas achou melhor ficar quieto. Estava aos poucos começando a sentir a mesma curiosidade que instigava seu amigo. Decidiu apenas acompanhá-lo.

Daniel morava em um apartamento no bairro Fonte Grande, em Contagem. Tão logo chegaram lá, os dois amigos seguiram direto para a área de churrasco que o arqueólogo havia construído no terraço. Enquanto ele se sentava numa banqueta e abria seu notebook sobre a bancada de mármore, Lucas já se adiantava para abrir o armário e tirar de lá alguns pães de alho para assar.

— Já que, pelo visto, vamos virar a noite, melhor providenciar os aperitivos. – Ele comentou.

— Está certo. – Daniel concordou – Quando acabar aí, sente-se aqui comigo.

O assistente não levou mais do que 5 minutos para acender a churrasqueira e colocar os pães sobre a grelha. Pegou também um salaminho que estava no frigobar e cortou-o, depondo-o numa pequena travessa com algumas rodelas de limão. Feito isso, voltou até a bancada e sentou-se de frente para o amigo.

— E aí? – Ele soltou, mordiscando um pedaço do salaminho e cruzando os braços sobre o mármore.

Daniel ergueu os olhos do notebook e encarou-o.

— Me prometa que não vai rir.

Lucas piscou.

— Tudo bem.

— Nem fazer piadinhas.

— Ok. – O assistente franziu as sobrancelhas.

O arqueólogo suspirou, escolhendo as palavras.

— O Rômulo não é o único que tem interesse pelo Manuscrito 512. – Ele disse, pausadamente – Quando eu ainda era estudante, eu tinha como um dos meus hobbies estudar os manuscritos mais famosos do mundo. Montei vários estudos, apenas por diversão, sobre os Manuscritos do Mar Morto, o Manuscrito Voynich...

— E o Manuscrito 512. – Lucas completou, rindo de canto.

— Exatamente. – O outro concordou – “Tropecei” na história do Manuscrito enquanto lia sobre fábulas e curiosidades da história brasileira numa revista. Na época eu estava meio bitolado com essa coisa de descobrir novas civilizações e me entupia de leituras como O Mundo Perdido, As Minas do Rei Salomão e O Templo do Sol.

O assistente fazia um movimento de concordância com a cabeça enquanto apoiava o queixo com a mão direita.

— Isso explica sua atitude durante o jantar com o Rômulo. Você estava algo entre o intrigado e o curioso.

Um sorrisinho estreito surgiu nos cantos da boca da Daniel.

— Exatamente. – Ele espalmou as mãos no ar, num gesto de surpresa – É que, sei lá, não dá pra acreditar que algo que tanta gente achou que fosse apenas um mito tenha mesmo a chance de ser real e que seremos nós dois que iremos investigar.

Lucas acabou sorrindo também, compartilhando do ânimo do amigo.

— Tudo bem, mas e aí? O que você conseguiu juntar com seus “estudos” sobre o manuscrito? – Ele estimulou-o a falar.

Daniel piscou.

— Você não achou estranho eu...?

— O quê? Montar estudos sobre isso? Claro que não. – O assistente emendou, cortando-o – Acho que todo mundo faz isso ao menos uma vez na vida. Passa a gostar de algo e pesquisa tudo a respeito. Além disso, meu hobby era muito mais estranho. Eu costumava enterrar ossos de galinha e lagartixas mortas no canteiro de couve da minha avó para escavar depois com escovas de dente.

O arqueólogo chegou a formular um comentário a respeito, mas deu de ombros e achou melhor deixar para lá. Concentrou-se em seu notebook e voltou a falar.

— Enfim. – Ele prosseguiu – Quando comecei a me aprofundar na história do manuscrito 512, percebi que estavam mais preocupados em chegar até a cidade do que saber quem a construiu. – Ele olhou nos olhos do amigo – Supondo que ela exista, óbvio.

Lucas concordou.

— Ok.

— Por isso, usei a própria narrativa do manuscrito para tentar encontrar algum indício a respeito disto. Quer dizer, isso e mais uma tonelada de material sobre arquitetura histórica. No fim das contas, acabei chegando à conclusão de que pode se tratar de uma cidade de origem romana. – Ele abriu um arquivo no notebook – Bom, vou fazer um resumão. Na chegada à cidade, o documento retrata o seguinte: “não achamos nenhum outro caminho senão o único que tem a grande povoação, cuja entrada é por três arcos de grande altura; o do meio é maior, e os dois dos lados são mais pequenos”. – Daniel ergueu os olhos para o amigo – Pela descrição, podemos deduzir que o narrador está falando de um arco do triunfo. É uma das formas de construção mais influentes e características da Roma Antiga. Normalmente era um arco único com um ático entalhado, mas os últimos imperadores ordenaram a construção de arcos triplos, como o Arco do Triunfo de Orange, na França. O arco central era maior e os laterais eram menores, como foi descrito aqui.

Lucas franziu a testa, sacando seu celular e pesquisando o referido Arco no Google Imagens.

— Ah, sim.

— Mais à frente, temos a descrição da estátua na praça. Aquela que o Rômulo nos mostrou. – Daniel continuou – Eu também supus que se tratasse de uma representação do imperador Augusto. Por ser considerado o fundador do império Romano, não é difícil encontrar homenagens a ele nas antigas colônias romanas. – Ele voltou os olhos para o notebook – Ainda na descrição da praça, também é citado: “em cada canto da dita praça está uma agulha à imitação das que usavam os romanos, mas algumas já maltratadas, e partidas, como feridas de alguns raios”. Algumas poucas fontes que eu encontrei citam a colocação de “agulhas” em praças e terraços de edifícios romanos. Sabe, colunas pontiagudas.

— Como obeliscos. – Lucas emendou.

— Exatamente. – O arqueólogo concordou, sem desviar os olhos da tela – Logo a seguir vem: “pelo lado direito desta praça está um soberbo edifício, como casa principal de algum senhor de terra; faz um grande salão na entrada”. Por estarem falando de um edifício adjacente à praça principal da cidade, supus que se trate de um fórum. Eles eram marca constante nas cidades romanas e tinham em comum o grande salão da entrada.

O assistente empertigou-se, demonstrando interesse. Daniel prosseguiu:

— No parágrafo seguinte diz: “sobre o pórtico principal da rua está uma figura de meio relevo talhada da mesma pedra e despida da cintura para cima, coroada de louro; representa uma pessoa de pouca idade, sem barba, com uma banda atravessada, e um fraldelim pela cintura”.

— Eu vou arriscar. – Lucas se pronunciou – Pela coroa de louros, eu diria que também é a representação de um imperador.

O outro assentiu.

— Provavelmente um busto. Pela descrição não dá para dizer quem é a figura retratada, mas há algum tempo visitei um museu no Rio de Janeiro com um busto em mármore semelhante ao descrito aqui no manuscrito. Pessoa jovem, sem barba, coroada de louros e com uma túnica atravessada de banda, mas a plaqueta abaixo dizia apenas “Desenterrada nos arredores de Roma em escavação realizada a custeio da princesa Isabel”.

O assistente fez que sim com a cabeça, se levantando para ir até a churrasqueira virar os pães que estavam sendo assados.

— Então, se trataria mesmo de uma cidade romana.

— Tudo indica que sim. – Daniel concordou – O problema é que não existe nenhuma prova concreta disso. Aqui diz que encontraram até uma moeda de ouro nas ruínas de uma das casas da cidade, mas não existe nenhum outro registro documentado dela.

— Uma moeda? – Lucas questionou, voltando até a bancada e comendo um pedaço de salaminho – De que tipo?

— Deixe-me achar a descrição dela por aqui. – Daniel rolou o arquivo na tela do notebook – Aqui está. “Um dinheiro de ouro, figura esférica, maior que as nossas moedas de seis mil e quatrocentos: de uma parte com a imagem, ou figura de um moço posto de joelhos, e da outra parte um arco, uma coroa e uma seta”.

O outro permanecia atento. Quando o arqueólogo finalizou, ele se levantou e procurou um pedaço de papel e uma caneta em sua mochila.

— Repita, por favor. – Ele pediu.

Daniel repetiu a descrição da moeda citada no manuscrito e Lucas rapidamente desenhou um esboço da mesma no papel à sua frente.

— Moedas sempre são achados muito interessantes. – Ele comentou, ainda rabiscando – Estátuas podem ser esculpidas nas mais diversas épocas dentro de um mesmo império, mas a cunhagem das moedas é bem mais específica, pois nos mostra a época em que ela foi forjada e, em alguns casos, até a região por onde ela circulou.

Daniel teve um ligeiro sobressalto.

— Não sabia que você entendia de numismática.

Lucas devolveu com um sorrisinho cretino.

— Você não é o único que tem hobbies, meu amigo. – Ele virou o desenho da moeda para o amigo – O arco com a coroa e a seta é conhecido em denários romanos entre 100 e 300 d.C. Já o cunho do moço de joelhos é parcialmente documentado em portos fenícios sob domínio romano na época do imperador Sétimo Severo. – Ele franziu o cenho – Só acho estranho o manuscrito citar uma moeda de ouro. Os denários com esses cunhos eram feitos de prata. As moedas de ouro mais famosas do império romano eram o áureo e o soldo, mas nunca descobriram nenhum deles com desenhos como os que você descreveu.

Daniel estava com uma expressão de legítima surpresa estampada no rosto.

— Impressionante.

Lucas empurrou o desenho da moeda para o amigo, fingindo-se de esnobe.

— Mas e aí? O que você pretende fazer com todas essas informações?

— Bom. – O outro pensou um pouco – Amanhã temos a reunião com o pessoal do Rômulo, não é?

— Sim.

O empresário os havia convidado para uma reunião no escritório da Fundação Orleans para tratar sobre a expedição que ele queria montar.

— Pois bem. – Daniel continuou – Vou apresentar este estudo e ver o que eles acham. Pode até ser que já tenham descoberto algo desse tipo também. O Rômulo tem recursos muito além dos nossos.

— Verdade.

— Mas pelo menos demonstra nosso interesse no assunto. – Ele ergueu uma sobrancelha – Muito melhor do que chegar lá de mãos vazias.

— Com certeza. – Lucas assentiu – E é um estudo bacana, Daniel. Mesmo tendo sido feito sem um propósito profissional ou acadêmico, você se empenhou muito. É muito válido compartilhar com eles.

O arqueólogo ia agradecer o elogio, mas ouviu um crepitar mais alto vindo da churrasqueira.

O pão de alho tá queimando, caralho!

Se levantaram e correram para a churrasqueira, e acabaram não conversando muito mais sobre o Manuscrito naquela noite. Pão de alho está acima do Bem e do Mal e era algo bem mais interessante para se focar naquele momento.


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